Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
05/01/2009 01h23
HOMENAGEM AOS 50 ANOS DA REVOLUÇÃO CUBANA
Coloco hoje aqui, matéria que a minha amiga Angélica Torres, poeta e jornalista, publicou em 1999, logo após sua visita a Cuba. O texto é muito expressivo e revelador, pois consegue romper com a visão estereotipada da mídia em geral. Além disso, oferece-nos significativas informações sobre a revolução --sem deixar de lado revelações importantes sobre a literatura cubana. Com vocês a bela reportagem da Angélica.  
                                                   
Cuba Vive!
Sob o esfacelamento do apoio econômico dado pela Rússia e a aparente decadência de um dos conjuntos arquitetônicos mais belos do mundo, a vida em Havana palpita ao som da salsa, do bolero e do tango; dos movimentos literários, debates e críticas; dos festivais de teatro, cinema e dança, demonstrando o vigor intelectual de um povo que, mesmo ilhado, humilhado perante o mundo, não se dá por vencido e continua a lutar pela sua soberania cultural
 
 
ANGÉLICA TORRES
 
 
O papa e sua comitiva, que se despedem hoje de Cuba, têm know how de sobra e podem não ter se sentido como o brasileiro e o visitante em geral que têm chegado à Ilha pelo vão da abertura do regime, com o coração aos sobressaltos, a preparação da ida pontuada por uma ansiedade mais esquisita do que os de outras viagens ao desconhecido. Já no avião da Cubana de Aviación, no entanto, ocorre a primeira, e necessária, sintonia: singeleza, despojamento, artesania nas instalações, nas refeições, no atendimento de bordo, sintetizam a medida e o padrão que esperam pelo visitante em terra firme.
À chegada no Aeroporto José Martí, o recado estampado no alto do prédio reafirma e justifica o estado sui generis em que se encontra o país: Créemos en la Revolución. É, na verdade, a primeira das muitas frases e palavras de ordem que se vai ler nos muros, monumentos e outdoors espalhados por toda a Ilha. A impressão é a de estar pisando em terreno universitário, rebelde, destemido, entre cenários e histórias de sonhos e revoltas e, sobretudo, de resistência.
Um mundo muito novo aos olhos do forasteiro e já muito velho (foi a segunda terra avistada por Colombo) sai detrás de uma cortina, no máximo, de fumaça, e não de ferro – a não ser pelos antigos cadilacs ainda inteiros e pelos nervos do cubano – e se mostra muito próximo do brasileiro. Há quem diga que “o cubano é o baiano que deu certo”: um misto de exotismo e calor humano, serenidade e hospitalidade, gosto pela vida, tenacidade, latinidade e, principalmente, bom nível de educação e dignidade pairam no ar daquela ilha do Caribe.
É o resultado do socialismo caliente do comandante Fidel Castro, sobrevivendo a duras penas de suas paixões e conquistas, equívocos e descaminhos, fazendo de Cuba um gueto mas, ao mesmo tempo, um país que insiste em se construir sem a exploração imperialista desde o final do século passado – quando ainda era uma colônia espanhola –, a partir da revolta que teve como slogan o famoso Cuba Libre e, entre seus líderes, o poeta e herói José Julian Martí, morto cedo na batalha. (Leia matéria na pág. ao lado).
 
 
                                                El Período Especial
 
Hoje, Cuba Vive! é o slogan que melhor traduz el período especial, expressão com que os cubanos apelidaram a fase de resistência pós queda do muro. Está estampado num outdoor à saída do Aeroporto de La Habana, originado da manifestação de apoio maciço dos habaneros ao governo de Fidel, realizada em julho passado no Malecón, a longa avenida à beira-mar. Há poucos metros dali, três anos antes, quando os balseros povoavam as manchetes dos jornais, um grupo de contra-revolucionários atirava pedras nos fidelistas, atiçando o povo a se colocar contra a situação de penúria do país.
Ao saber da baderna, Fidel foi ao Centro de Habana Vieja dizendo que queria receber a sua cota de pedradas, pois se Cuba estava naquele estado o primeiro responsável era ele. Com ajuda dos trabalhadores e do povo, sem usar de força, ele conseguiu controlar a situação. “Não considero Fidel um ditador e sim um governante que consegue o que quer com seu poder de persuasão, seu carisma e sua inteligência”, diz o cubano Pablo José Sainz, 33 anos, doutorando da Universidade de Brasília, ao relembrar o fato também registrado numa das Salas del Período Especial, no Museu da Revolução.
Reconhecido como um dos homens mais importantes da História mundial, Fidel Alejandro Castro Ruz, 72 anos – filho de um latifundiário espanhol com a empregada da família – sustenta há 39 anos o título de herói revolucionário e líder máximo da maior ilha caribenha, um território pouco maior do que Pernambuco, com 11 milhões de habitantes – 66% brancos, 12% negros e 22% mestiços –, distante a 190 km de Miami. Sua economia, limitada à indústria açucareira, tabaco e rum, a partir de 1993 encontrou no turismo a tábua de salvação para enfrentar o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos desde 1962 e agravado pela lei Helms-Burton, de 1996, e impedir o colapso da Revolução com o fim do apoio soviético em 1989. 
 
                                        Entre o dólar e o peso cubano
 
Hoje, Cuba mantém convênios de colaboração com mais de 114 países do mundo. A competente rede espanhola de hotéis Meliá, instalada na praias de Varadero, Havana e outras localidades, atrai divisas de turistas italianos, canadenses, espanhóis, alemães, franceses, mexicanos, argentinos, ingleses, nesta ordem de freqüência. O período especial levou o estado cubano a adotar cerca de 15 reformas econômicas entre 1993 e 96, entre elas o decreto-lei (de 93) que fixou as regras para o exercício do emprego por conta própria e o número de atividades que podem ser efetuadas nessa modalidade.
Por essa via surgiram os paladares, restaurantes em casas de família, que podem atender no máximo 12 clientes. O nome foi tirado da novela brasileira em que a personagem de Regina Duarte tinha uma pensão chamada Paladar. Os supermercados também já são realidade cubana. Ali são vendidos os produtos extra-libreta, que é a lista das produtos da cesta básica distribuídos à população a preços desprezíveis. No Cubalse, próximo à embaixada da Rússia e tido por eles como o melhor, as mercadorias são vendidas em dólar (“divisa” para o cubano), a preços que competem com os de Brasília (azeite Carbonell 500mg. a US$ 6,10; whisky Grant’s 1 litro a US$ 10,80; miojo Maggi a US$ 0,80; biscoitos Triunfo água e sal a US$ 1,40, por exemplo).
A entrada sorrateira das manhas capitalistas no único reduto socialista do Ocidente cria disparates surpreendentes para o cidadão que se vê entre as duas moedas correntes, o dólar e o peso cubano. Ainda assim, não tem sentido dizer que o salário médio do cubano é de US$ 15,00 (considerando o valor do dólar no câmbio negro), já que não dá para representar em dólares o custo de vida da população. Alimentos básicos, produtos de higiene, gastos com transporte e consumo de cultura, por exemplo, custariam milésimos de dólares. A casa própria, nessa perspectiva, sairia a US$ 1,5 por mês, porque segundo norma do governo, o máximo a ser pago pela família é 10% do valor do salário ao longo de 30 anos. Educação – obrigatória até a conclusão do segundo grau – e saúde médica e odontológica custam zero dólares para todos, sem exceção.
 
          
                                       David contra Golias
 
O que o papa viu na Ilha, entretanto, não foi apenas a abertura econômica permitida pelo comandante e alardeada com euforia e ironia pela imprensa capitalista. João Paulo II pôde ver de perto as conquistas sociais obtidas por um governo que, mesmo em luta titânica contra o poderio absoluto do vizinho adversário, apresenta estatísticas de Primeiro Mundo (veja quadro).
 
Relatório final de 1997 (Unicef)
 
         Adultos alfabetizados (%)
Cuba: 96          EUA: 99     Brasil: 83
       Mortalidade infantil (por 10 mil)       
Cuba: 10          EUA: 08     Brasil: 44
        Expectativa de vida (idade)
Cuba: 76          EUA: 76     Brasil: 67
      Imunização vacina Tríplice (%)
Cuba: 100       EUA: 94      Brasil: 75
 
A educação é um dos maiores patrimônios do Estado – sem contar com os avanços da medicina, outra fonte de divisas, reconhecida internacionalmente. Toda atenção e o melhor esforço são dirigidos à criança. Há um professor para cada 13,6 alunos; 280 professores ambulantes para atender domiciliarmente 500 crianças com problemas físicos-motores. São 11.115 universitários e 560 mil graduados universitários. Há 9.048 técnicos; 30.585 trabalhadores em unidades de Ciência e Tecnologia; 14.908 mulheres em pesquisa científica. No período crítico, entre 1991 e 96, foram concluídos nove centros de pesquisa, entre eles o de Plantas Produtoras de Vacinas, o de Imunologia Molecular e o de Ressonância Magnética Molecular.
João Paulo II também pôde constatar que o criticado comunismo de Fidel Castro não corresponde ao que ele conhecia do praticado no Leste europeu. Segundo a pesquisadora política do Ministério das Relações Exteriores em Havana, Patrizia Herrera, 51anos, que estudou por cinco anos em Moscou, “não temos nada a ver com os russos. Eles se rivalizam desde entre dois colegas de faculdade até as mais altas instâncias políticas. Aqui, podemos não ser do partido mas apoiamos as medidas do governo. Somos um povo solidário, que reconhece os benefícios do socialismo e que não quer perdê-los”.
Nas urnas - As eleições nacionais, realizadas há duas semanas, comprovam o que a pesquisadora diz. Lá, onde o voto não é obrigatório, 98, 35% dos eleitores legitimaram o governo revolucionário do comandante. Votos nulos, em branco e ausentes representaram apenas 6,56% - para gana da comunidade cubana de Miami e, com certeza, perplexidade da Casa Branca.
Assim, mostrando como se dá a volta por cima, essa semana a Ilha cedeu lugar a um missionário cristão em seus pedestais reservados a revolucionários ateus. Lá, conta-se a piada que, há alguns anos, os cubanos assistiram assustados uma procissão de fiéis levando no andor a Virgem da Caridade do Cobre, padroeira do país. Desacostumados com essas coisas, um cutucou o outro e perguntou apontando para a santa: “Quem é aquela companheira?”!
O fato é que a visita do papa, mal ou bem, deu chance também ao mundo de poder ver mais da realidade do país e da obstinação assombrosa do líder Fidel Castro. Seu povo, por natureza, alegre, festeiro, sentimental, namorador, hospitaleiro, de nobreza guajira (caipira, campesina), luta para poder viver em paz – e a seu modo. Pois, que o Santo Papa e os santos guerreiros Che Guevara, protetor da América Latina, e José Martí, digam: ”Assim seja”.
 
                        Poesia e rebeldia no prato do dia cubano
A força de uma poética revolucionária centenária vincou a alma do povo cubano e inspirou a revolução comandada por Fidel Castro e seus seguidores. A poesia do líder José Martí ainda hoje é fonte de citação viva em livros de literatura e escolares, em museus, muros, monumentos. Seus escritos rebeldes podem ser encontrados nas feiras das praças à venda por US$ 8, em média (para o forasteiro). Seu retrato é visto em vários lugares. Está na galeria de célebres da Bodeguita Del Médio – o restaurante em Havana Velha onde Ernest Hemingway bebia seu mojito favorito – , mas também no cenário do filme Morango e Chocolate, sucesso do cineasta Tomáz Gutiérrez Alea.  
Martí permanece “em cartaz” como um pop star cubano, como el Che, rimando poesia com rebeldia, lado a lado com poetas do início do século, como Nicolás Guillén (1902-1989) e Dulce María Loynaz (1902-1997), e os cultuados das gerações da revolução fidelista, como César López Reina María Rodriguez.                                               
Dulce María Loynaz, recém-falecida aos 95 anos de idade, está entre os mais respeitados escritores da Ilha. Deixou uma obra de voz personalíssima na literatura cubana. Transitou com maestria pelo ensaio, romance e jornalismo, além da poesia. “Yo quería tus ojos claros para prenderlos en mi pelo negro con un alfiler de oro” / “Eu queria teus olhos claros para prendê-los em meus cabelos negros com um alfinete de ouro” (de Finas Redes). Seu estilo sóbrio, seu impecável manejo do idioma rendeu-lhe o Prêmio Cervantes, em 1992.
César López, além de crítico literário e um dos estudiosos da obra de Loynaz, é contista e poeta várias vezes premiado. “El ser que mutilasteis, asasinos, era en resumen todo el possible!” / “O ser que mutilastes, assassinos, era, em resumo, todo o possível!” (de Consideraciones, Algunas Elegías). Formado na Espanha, serviu como diplomata na Inglaterra até a dissolução da União Sovética. “Voltei, então, para Havana, porque este é o meu país e entendo que é aqui que tenho que viver”, diz, com simplicidade, de sua solidariedade e seu patriotismo.
Reina María Rodríguez, como César López, coleciona vários prêmios literários –   Julián del Casal, Prêmio de la Crítica e da UNEAC (leia matéria) –, destacando-se pela estranha beleza de seu universo poético entre a nova geração de poetas cubanos. “Hay ruido e minha oreja es un girasol recién cortado” / “Há ruído, e minha orelha é um girassol recém-cortado” (de Para un Cordero Blanco, prêmio Casa de las Américas, 1984). No último dia 15, Reina Maria, 45 anos, foi novamente premiada com o Casa de las Américas pelo livro La Foto del Invernadero.
Em tempo: a poesia musicada da Ilha também tem raça. Silvio Rodriguez, tido como o melhor poeta da música cubana e Pablo Milanês, o amigo e parceiro de Chico Buarque, admirado entre o público brasileiro (Yolanda; Canción por la Unidad Latinoamericana), são referências de alta qualidade, onde a Revolução também encontra eco. Os dois compositores e intérpretes são os fundadores, em essencial, do grande movimento chamado Nueva Trova, originado da Trueva Tradicional que é de suma importância para a cultura cubana.
 
                                                    União dos artistas
 
Herdeiro da verve revolucionária de Martí, Nicolás Guillén é das vozes mais fortes do modernismo de língua espanhola e foi trincheira constante da Revolução, desde a vitória do exército rebelde de Fidel Castro, em 1959. “Un caballo de fuego sostiene tu escultura guerrillera entre el viento y las nubes de la Sierra”, escreveu em Che Comandante (veja boxe). Além dos 14 livros publicados, o poeta que nos anos 30 alçou o discriminado, humilhado negro cubano, à condição de protagonista, usando a sua própria ritmia, legou uma trincheira especial para o artista cubano ao fundar, em 1961, e presidir até 1981, a União dos Escritores e Artistas de Cuba (Uneac), como conseqüência do I Congresso de Artistas da Revolução. Hoje, a Uneac, continua sendo um dos focos de resistência da produção cultural da Ilha, com atuação heróica, admirável, incansável mesmo no mais crítico período da Revolução: o fim da década de 80 e os primeiros anos 90.
Se o cubano passou a pão e água – quando tinha pão, naquela fase –, a Uneac, instituição autônoma, amargou dieta não menos dura mas sobreviveu aochamado período especial “com entusiasmo”, afirma seu presidente – o compositor, musicólogo e flautista José Loyola Fernández, 56 anos, autor do livro En ritmo de Bolero. “De 1991 a 93 não publicávamos nada, só folders com três ou quatro poemas, porque não havia papel”, conta Francisco Sacha, 47 anos, presidente da União dos Escritores. “Mas, se não podíamos publicar livros”, continua Sacha, “fazíamos leituras, encontros, para as pessoas se conhecerem, trocarem suas produções. Não podíamos gravar discos, mas fazíamos concertos, shows, eventos. Fazíamos arte comunitária: se a comunidade não podia ir ao teatro, o teatro ia ao povo, ia ao campo”, enumera o escritor, que virá ao Brasil em março para lançar o livro de contos A Ilha Contada, pela Editora Página Viva, em São Paulo.
Produções - Com a recuperação gradual da economia cubana, a Uneac voltou a documentar as produções e a dar prêmios para músicos e escritores (em oito gêneros literários). Os livros e as revistas (de música, Música Cubana, e literárias, Gaceta de Cuba e Unión) são editados com singeleza gráfica em papel de embrulhar pão, agora em tiragens de mil exemplares. Nos áureos anos 70 e 80, imprimiam 25 mil exemplares, tanto prosa quanto verso, “e esgotava sempre”, afirma Sacha, “porque o cubano é ávido por leitura”.
Festivais de bolero, música contemporânea e cinema-rádio-TV, e colóquios internacionais, como os dois de novembro último, sobre poesia latino-americana e sobre a obra dos Beatles, são outras frentes de ação da Uneac. “Temos relações próximas com Paul McCartney e com George Martin, que sempre nos dizem que virão à Ilha; mas ainda não vieram”, revela o eterno beatlemaníaco Francisco Sacha, depois de cantarolar um trecho de Good Day Sunshine.
Instalada num sobrado do lindo bairro de Vedado, com área externa ampla o suficente para, sob árvores, promover seus inúmeros eventos, como as Noites de Bolero aos sábados, a União dos Escritores e Artistas de Cuba, que é apenas uma das organizações culturais da Ilha, tem também o papel de mitigar os problemas pessoais de seus membros, acrescenta o crítico de artes plásticas, Roger Avila, 38 anos, que tem, com a poetisa Reina María Rodriguez, uma filha de oito anos chamada Elis, em homenagem à nossa Elis Regina.
 
A palavra negra
A comunidade afro-cubana tem um legítimo representante de sua voz: o poeta Eloy Machado, ou El Ambia no dialeto Efik. Operário de construção, El Ambia escrevia seus versos em pedaços de papel que, por meio do comandante Efigenio Amejeiras, companheiro de guerrilha de Fidel, foram parar nas mãos de Nicolás Guillén. “Onde trabalha esse homem?”, quis saber o poeta e então presidente da União dos Artistas (Uneac).
“Esse homem de idade indefinida, andar ligeiro e vestimenta peculiar, ‘a Thiago de Mello’, mora em sua poesia. Seus textos são viagens de volta às origens. Transpiram rumba e tambor ‘para que a raiz não morra”, define o jornalista cubano Sahily Tabares. Nos anos 80, os seus poemas foram publicados pela Uneac. “Desde então, essa é minha casa”, conta El Ambia, que atualmente comanda um espaço reservado às artes afro-cubanas na programação de eventos da Uneac.
No seu programa Peña del Ambia ele apresenta grupos e artistas de variadas tendências, dialetos e seitas religiosas africanas que, como no Brasil, convivem com o sincretismo (santeria) e, em menor escala, com o cristianismo que o papa foi abençoar. O culto Abakná e o dialeto Efik dão base poética à sua busca de identidade: “Tenho pouco estudo, mas uma longa trajetória. Passei muita fome nos tempos de (Fulgêncio) Batista, quando dormia com minha mãe pelas ruas, fugindo da polícia, para não irmos parar na Puríssima, lugar para onde eles levavam os indigentes”.
Seu poema Soy Todo, em que diz “sou o poeta da rumba”, foi musicado em versão clássica pelo atual presidente da Uneac, José Loyola Fernández. Gravado por Los Van Van, uma das bandas mais populares do país, a canção atravessou a perigosa fronteira e virou hit entre a comunidade negra de Nova York. Outro poema seu está no CD Tu Querida Presencia, intitulado Maferefún Che, gravado por vários músicos e poetas cubanos em homenagem a Guevara, às vésperas do enterro, em outubro, de seus restos mortais em Santa Clara.
Amigo de Pablo Milanês e da bailarina Alícia Alonso, El Ambia se orgulha, também, em falar de sua amizade com Glauber Rocha, ao tempo em que o cineasta brasileiro foi a Havana para montar Deus e o Diabo na Terra do Sol.

 
Che Comandante
 
Poema de Nicolas Guillén
 
Não porque tenhas caído
tua luz é menos alta.
Um cavalo de fogo
sustenta tua escultura guerrilheira
entre o vento e as nuvens da Sierra.
Não porque calado és silêncio.
E não porque te queimem,
porque te ocultem sob a terra,
porque te escondam
em cemitérios, bosques, páramos,
vão impedir que te encontremos,
Che Comandante,
amigo.
 
Com seus dentes de júbilo
a América do Norte ri. Mas logo
revolve-se em seu leito
de dólares. Coagula-se o riso
em máscara,
e teu grande corpo de metal
sobe, se dissemina
pelas guerrilhas como abelhas,
e teu ancho nome ferido por soldados
ilumina a noite americana
como uma estrela súbita, caída
em meio a uma orgia.
Tu o sabias, Guevara,
mas não o disseste por modéstia,
por não falar de ti mesmo,
Che Comandante,
amigo.
 
Estás em toda parte. No índio
feito de sonho e cobre. No negro
revolto em espumosa multidão,
no ser petroleiro e salitroso,
no terrível desamparo
da banana, e na grande pampa dos couros,
e no açúcar e no sal e nos cafezais,
tu, móvel estátua de teu sangue como te derrubaram,
vivo, como não te queriam,
Che Comandante,
amigo.
 
Cuba te sabe de memória. Rosto
de barbas que clareiam. Marfim
e azeitona em pele de santo jovem.
Firme a voz que ordena sem mandar,
que manda companheira, ordena amiga,
terna e dura de chefe camarada.
Vemos-te cada dia ministro,
cada dia soldado, cada dia
gente franca e difícil
cada dia.
E puro como um menino
ou como um homem puro,
Che Comandante,
amigo.
 
Passas em teu desbotado, roto, esburacado traje
de batalha.
O da selva, como antes foi o da Sierra.
Desnudo, o poderoso peito de fusil e palavra,
de ardente vendaval e lenta rosa.
Não há descanso.
 
Saúde, Guevara!, ou melhor,
daqui de nossa longínqua América, espera-nos.
Partiremos contigo. Queremos
morrer para viver como tu morreste,
para viver como tu vives,
Che Comandante,
amigo.

(Tradução: Angélica Torres e Glória Cardell)

Clicando neste link http://www.youtube.com/watch?v=ArwR6Sok71Y  você poderá ouvir a voz do poeta Nicolas Guillen dizendo o poema acima, enquanto as imagens mostram o traslado dos restos de Che.
http://www.youtube.com/watch?v=po09lcDxXIA clicando neste link você poderá ouvir Hasta Siempre Comandante na interpretação do Buena Vista Social Cluib.

Publicado por Rubens Jardim em 05/01/2009 às 01h23

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