Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
26/05/2007 13h07
GRACIAS A LA VIDA, POESIA
Estou aqui junto de ti, Poesia, como se estivesse dentro do ventre da minha mãe, esperando a hora da partida para um outro lugar. E já faz tanto tempo que eu cheguei que é impossível nomear cada emoção. Ou descrever cada sensação. Acho que já senti tudo de todas as maneiras --como queria o Pessoa. Já recebi também as bençãos tísicas do meu velho e querido bardo Manuel Bandeira. Já guardei também todas as palavras do Drummond em baús familiares e em meu coração aberto --mas lacrado de menino. Vivi --e revivi-- a intensidade e a grandeza do Jorge de Lima, em um ano épico e inesquecível de minha vida. Tive também o privilégio de ir até Duino para recompor --no mais fundo e no mais denso de mim-- a lembrança de que nada é mais mudo do que a boca de um deus. E ainda estive--não uma, mas duas vezes-- na exterioridade da Casa de Nietzsche, em Sils Maria --.(onde ele ocupava, na verdade, apenas um quarto--e sem calefação). Mas foi nesse lugar, espaço sagrado, que nasceu aquele sonho de um além-do-homem. Nunca me esqueço também daquele companheiro generoso de todos os homens, poeta Ferreira Gullar --que fez o Poema Sujo (que de sujo só tem o nome) --e é um dos melhores e dos mais abertos à encantação e à busca de identidade do homem brasileiro.
E tenho que me lembrar ainda de Shopenhauer--aquele dos Aforismos e das Dores no Mundo; e de Henry Miller, que entre outras coisas foi um dos grandes exemplos de ser humano libertário, complexo e abrangente. E tenho de dizer ainda que eu sempre me entusiasmei muito com as nossas apresentações na Catequese Poética. Fossem elas realizadas em Teatros, Praças, Livrarias ou Bares. Sair do livro e se expor nesses lugares causava-me emoções de toda a ordem. É que estar junto das pessoas, nessas circunstâncias, --e naquela época de grande cerceamento das liberdades --tinha algo a ver com resistência, com luta, com fé e esperança.
Mais ainda: ter visto e ouvido o Bell, no Teatro de Arena, nos anos 60, foi uma das vivências mais marcantes e emocionantes da minha vida. Acho que encontrei ali, naquele espaço e naquele poeta jovem e gesticulante-- e já com indícios de futuro amigo e irmão--a perpectiva do trabalho mais gratificante e enriquecedor de todos os que já fiz. É a partir daí que se desenrolam e se desenvolvem em mim -- os nós de mim mesmo: a dura aprendizagem do poema--e do poeta. Mas ao mesmo tempo, nascia aí o grande vínculo do amor e a conjugação de um mesmo verbo que só me fez crescer em percepções, em palavras e significados. Foi a partir daí, da Catequese, que eu reencontrei, nas praças e nos colégios, a minha legítima inclinação e o nascedouro da poesia. E foi através do Bell, esse exemplo notável de sacerdotal dedicação, que tudo se cumpriu. Finalmente, o povo junto do poeta e o poeta junto do povo. Nada mais eu queria em minha vida. Mas é claro que o poeta em mim --como missionário da revelação e da palavra-- jamais ficou tão engrandecido. Ainda assim busquei e busco os ritmos, as imagens e as palavras --em disposição de luta. E essa busca é interminável.
É óbvio que não creio que ninguém seja mais poeta do que eu. Pelo menos nesse sentido de estar apto e aberto à revelação, ao espanto e ao poder encantatório da palavra. É bom deixar claro que isso não significa que eu me considere um excelente poeta. Sei que sou um poeta menor--mas sempre consegui penetrar nas palavras eficazes dos grandes poetas.Ou seja: sou capaz de me emocionar e aprender com as próprias--ou impróprias palavras-- o próprio ou impróprio caminho. Apesar disso, tenho claro o significado de que todos os poetas foram e são necessários --para ampliar a possibilidade humana de sentir e de perceber os nascimentos, as mortes e as mudanças. Será que é possível a existência de qualquer sociedade ou de qualquer comunidade sem a presença de um poeta? É claro que o poeta é um ser indispensável em qualquer sociedade e em qualquer comunidade. Até porque o poeta é o único ser humano capaz de traduzir as tonalidades e as pulsações humanas históricas, as contradições, os dilemas e as questões de cada época. Acho mais:.acredito que a existência de todo poeta é necessária para oxigenar a palavra e as relações humanas que sempre se deram e se dão pelas palavras --e, certamente, quase que só através delas. Nenhum poeta jamais quis diminuir o horizonte do vivenciável. Todo poeta tem um vínculo com o sagrado e com o profano--e seu desejo maior é ampliar todas as possibilidades de crescimento da fraternidade entre os homens. É por essa razão que cada ser vivente tem uma responsabilidade com o divino e o demoníaco, enfim com aquilo que sempre nos habitou e acha-se entranhado e oculto entre o indizível e o não expressável . E, talvez o poeta seja uma presença indispensável exatamente por isso. Ele tenta nos falar sempre de uma casa que foi a nossa casa, de uma infância que foi a nossa infância, de um pai que foi nosso pai, de uma mãe que foi nossa mãe, de um irmão que foi nosso irmão, de uma namorada que foi a nossa namorada, de uma mulher que foi nossa mulher, de um filho que é nosso filho. Mas todo poeta, embora possa não tocar nessas questões, de forma direta, acaba mostrando, através da sua indignação e de seu desejo de uma sociedade solidária, um profundo respeito por si mesmo e pelos outros. E é por isso -- talvez unicamente por isso-- que o poeta seja uma estilhaço, um vidro quebrado, uma sapato apertado em busca do caminho fraterno e dos gestos que poderiam consolidar a restauração dos significados e dos signos entre as pessoas. Não existem poetas subservientes. Do mesmo modo que não existem flores nascidas em floriculturas. O poeta só nasce por necessidade imperiosa, urgente, inadiável de todo e qualquer aglomerado humano. E é por isso que para cada palavra, colhida e recolhida no espanto de emoções tão pessoais (que implicam ritmos, sonoridades e significações ainda desconhecidas pelo próprio poeta e por qualquer pessoa) a vida se mostra em sua essência absurda, caótica, contraditória , banal e necessária, difícil e fácil de ser renovada e aceita em plenitude.. Ainda assim, como disse o Chris,--existe um pai no chão e um pai no céu..E é diante dessas questões, que implicam os nossos entendimentos iniciais da vida e da morte, que tudo se dá. Ou você é construido assim --insolvente, pouco palatável e estranho à sua época. Ou você tenta anular um compromisso antigo , radical com a vida, radical com o trabalho, radical com o amor--e você se torna um pateta defensor de receitas e de purês morais.
Ainda assim, o certo mesmo é que jamais conseguiríamos caminhar, guerrear, nascer,e amar se não tivessem existido poetas como Dante, Camões,Pessoa, Jorge de Lima, Novallis, Drummond, Bandeira, Lindolf Bell, Ferreira Gullar, inaugurando palavras e instalando o estranhamento diante de cada flor, de cada horizonte, de cada gesto, de cada palavra, de cada rosto, de cada gesto humano.
A vida é mesmo essa coisa tão curiosa--e, quem sabe, sem fim-- que até o velho e competente Guimarães Rosa acabou perguntando: a vida se ata com barbante? Essa imagem, que nem tem a pretensão de um verso, captura e expressa, em seus desvãos e em seus abertos e fechados falares, muito mais do que tudo que eu poderia ter dito e não consegui dizer..

Publicado por Rubens Jardim em 26/05/2007 às 13h07

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