Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
26/05/2006 13h21
Carta ao Gustavo
Em primeiro lugar quero agradecer a deferência e o privilégio de ter sido escolhido como interlocutor. Em segundo quero deixar claro o seguinte: quem sou eu para concordar ou discordar de um trabalho ao qual você se dedica com tanto entusiasmo e através do qual parece ter efetuado tantas descobertas?
O aspecto mais importante da literatura, da arte e de toda e qualquer ação humana é, a meu ver, a revelação e ampliação das nossas percepções; o refinamento da nossa alma; a garimpagem das minas subcutâneas -- ou subterrâneas. Acho maravilhoso esse processo de enriquecimento. E ele é tão legítimo que ninguém nos pode roubá-lo. E são essas coisas -- momentos de descoberta, alegrias gratuitas do contemplar, do fazer e do não fazer - que acabam constituindo e configurando o nosso ser, essa entidade de luz e sombra exposta a todas as vicissitudes e virtualidades do tempo.
Claro que eu só posso opinar - não sobre o seu trabalho (que gostaria de receber e ler) - mas sobre esse re-sumo de idéias que colocaram você na trilha de Eliot. E Eliot no teu caminho. Suponho que só esse contato com um grande poeta já é capaz de realizar verdadeiros milagres na vida da gente.
Lembro-me do Jorge de Lima, poeta que me conduziu aos limites de mim mesmo --e isso qdo eu era ainda bastante jovem. Depois de mergulhar em seus poemas, eu me senti renovado e revitalizado. A palavra mais justa, na verdade, seria encantado ou alumbrado. E isso abriu vertentes e nascentes que jamais secaram. E jamais deixaram de me acompanhar nessas tarefas que a vida põe e impõe a nós.
Sempre fui grato a essas grandes personalidades humanas que, de um jeito ou de outro, buscaram desentranhar de si esse apelo obscuro em favor da luz e da beleza. Sei como é sacrificial desimcumbir-se dessa missão. Ficar diante da máquina de escrever, longe das pessoas, sentindo o pulsar do próprio pulsar e lutando com as aparições e desaparições - não têm nada de glamoroso.
Acho que esse trabalho é muito parecido com aquele desempenhado pelo pianista. No dia da apresentação, do recital ou do concerto, tudo parece uma festa. Mas para chegar até lá quantas horas não foram gastas, diariamente, para que aquele fugaz e grande momento pudesse existir? Felizmente - ou infelizmente- todos os desejos e todas as inclinações humanas exigem isso: dedicação, cuidado, concentração, amor.
Confesso ter muita dificuldade em perceber com clareza e eficiência tudo aquilo que é esboço, croqui, rascunho. Talvez seja até um certo preconceito --claro que inexistente entre nós. O certo é que gostei da idéia de alinhar o poema do Eliot com o Ulisses, do Joyce, e A Montanha, do Mann. E gostei, mais ainda, da referência que você faz ao fato de as 3 obras terem muita coisa em comum--ao mesmo tempo em que elas não têm quase nada em comum.
Aprecio muito essas colocações paradoxais. Acho isso estimulante e instigante.
E não sei ao certo porque motivo - inconsciente ou inconsequente - o verso que abre o poema "Abril é o mais cruel dos meses" detona em mim emoções iniciáticas -- e fundas -- que vão desembocar na condição humana. E, talvez, nos limites do conhecimento, que só nos deixa entrever "um feixe de imagens fraturadas" onde ressurgem "árvores mortas que já não mais te abrigam" e o canto dos grilos "que já não mais te consolam". E em meio a isso tudo, sinto "a tremenda ousadia de um momento de entrega que um século de prudência jamais revogará. Por isso, e por isso apenas, existimos."
Shantih shantih shantih

Publicado por Rubens Jardim em 26/05/2006 às 13h21

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