Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
31/05/2006 23h57
TRES MOMENTOS
ANA MUSA
Desmisturado de tudo, de todas as outras pessoas --eu só enxergava a ela e a mim. O resto passava a inexistir. Tudo era uma viagem a um novo existente que persiste em viver, lá dentro, nos esconderijos da gente. Igual poesia que nunca vai deixar de ser acontecimento súbito --mas com fundas remarcações do passado.
Espaço da infância é a inocência. E espaço do adulto, o que é? Fronteiras, demarcações, limites postos e impostos a tudo. Coração de adulto não mistura amores.É excludente. Ou esse ou aquele. Só pode um. E tudo isso muito bem marcadinho, com etiquetas, rótulos e até gavetinhas. Mas no real mesmo não será isso que fornece alimento ao estropiado e estropiante sentimento de posse?
Se deixássemos o amor solto, como um passarinho fora da gaiola, será que ele desistiria de nós?
Amor deveria mesmo é poder voar que nem qualquer passarinho. Ir pra lá riscando o céu. Voltar pra cá bicando o papel. Mas o amor também não tem nada a ver com a nossa idéia do amor. Do mesmo jeito que a vida, amor não cabe em nenhum entendimento. E se ele existe --tão fundo e fundante-- é pra mostrar que em seus domínios ninguém domina nada.
Ninguém vence a brutalidade do amor. Nem ditadores, nem democratas, nem homens comuns passaram incólumes por este tumulto do indecifrável. Por isso é necessário seguir a recomendação do poeta Drummond -- e amar até a nossa falta de amor. E na secura nossa, amar a água implícita, o beijo tácito e a sede infinita.
ANA MUSEU
A museologia não é, em você, uma função, um trabalho, uma profissão. É o teu jeito de conhecer. É a tua forma de se relacinar com a realidade. Não existem separações entre a Ana museóloga, a Ana mulher, a Ana mãe, a Ana amiga e a Ana filha. É tudo uma coisa só --misturada e amalgamada.
Preservar, guardar e cuidar não são técnicas aplicadas aos objetos ou documentos rotulados com o status de "preserváveis". Você preserva, guarda e cuida de tudo aquilo que passa por tua vida. É da tua natureza cuidar da folha de uma árvore, dos velhos bilhetinhos das crianças. E de tantas outras recordações e até de roupas cansadas de ficar no guarda-roupa.
Você não abandona nada. Você não deixa nunca de voltar aos tempos de antes. Aos lugares de antes. As pessoas de antes. Seu tempo não é quando --como disse um poeta. Seu tempo é ontem, anteontem, hoje.
Por isso reuni aqui, neste álbum, estas memórias espalhadas --mas nunca empalhadas. Pois acho que elas continuam tão vivas em você quanto em mim. Até porque nós compartilhamos o incompartilhável. Nós dividimos o indivisível. Nós confessamos o inconfessável.
Estou e sou feliz por viver com você, também hoje, ontem e anteontem. E acho que amanhã também, pois apesar da idade vir, sobrevir --e com ela as rugas e outras marcas do tempo -- estamos colhendo o sereno da serenidade, o curioso da curiosidade, o generoso da generosidade.
Só espero que a paz continue sendo o chão propício ao florescimento de tudo aquilo que já vivemos e desvivemos juntos. Pela concreção da primavera. Pelo fluir e pelo confluir. Pela integridade do nosso ser. Por uma fruição cada vez mais comum. Pelo solo e pelo subsolo. Pelo supersolo. E por esse chão inicial que nos ajuntou para sempre.
ANA MULHER
Descobrir teu corpo. Desvelar esse novelo. Fio a fio -- filiá-lo às suas origens. E ser. Ou ter sido esse chamado dentro dele. Cruzamento de vozes. Quantas vezes? Absurdos soluços ecoando. E eu fragilizado diante dessa catedral de símbolos ancestrais. Assustado ainda por estar aqui recompondo, no chão movediço, os sinais e as sinas desse encontro. Partida: parte ida e vinda. De mim. Por mim. Pra mim. E nós aqui, exilados de nós, assumindo o indecifrável do destino. Então era isso que me reservava a vida: essa abrangência súbita. Insular. Peninsular.
Selvagerias impulsionando instintos na selva escura. Na sala clara. E eu, incivilizado, caçador ou caça, derretendo o punhal do instante --no instante. E mais adiante tua forma coagulada em meu sangue. Teu corpo impregnado de deuses e adeuses. E eu querendo atravessar esse através. Penetrar nesse mistério e fixar inscrições nesse portal. Plantar-me aqui, nessa dimensão curva e recurva, onde se encontram as relíquias de dizer e silenciar. Ou lá, nos seus dentros --densos, escuros e nublados. Ou aqui, nesse recorte que teu corpo fotograficamente impõe ao meu olhar. Doação ilimitada em incontáveis dramas. Tramas confusas de ondas no mar ausente. Mapa do existir nesse teu corpo de abstratas serras. Profunda vontade de anular essa luta com as palavras. Quisera mesmo, ainda e sempre, possuir-te neste descampado. Livre de roteiros, no gozo puro, sem alvará, nem tortura. Como se fossemos, ainda, duas crianças espiando tudo.

Publicado por Rubens Jardim em 31/05/2006 às 23h57

Site do Escritor criado por Recanto das Letras