Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
19/06/2009 10h45
POESIA PARA MIM NUNCA FOI UNIVERSO PARALELO, O LADO DE LÁ; É SÓ A MANEIRA QUE ENCONTREI DE COMBATER A DISPERSÃO
Ele já se declarou místico por hereditariedade, humorista por ironia, sádico por desabafo e poeta por angústia constante. Sabe de cor o Poema em Linha Reta, do Álvaro de Campos e a Ode ao Burguês do Mário de Andrade. Escreveu A Poliflauta de Bartolo(1960), O Signo e a Aparição(1961), A Tarde e o Tempo(1964-prêmio Governador do Estado de São Paulo), Carta de Marear(1966 prêmio Governador do Estado de São Paulo), Poemas Reunidos(1974 - prêmio da APCA), Círculo Imperfeito(1978 - prêmio Gregório de Mattos Guerra), Subsolo(1989 - prêmio APCA), Lição de Casa & Poemas Anteriores (1998) e Noite Nula (2008). Estamos falando de Carlos Felipe Moisés, poeta da chamada Geração 60, professor universitário de literatura, crítico literário e tradutor de livros inesquecíveis como O Poder do Mito(de Joseph Campbell e Bill Moyers) e Tudo o que é sólido desmancha no ar (de Marshall Berman).
Conheço Carlos Felipe Moisés desde os anos 60. Mas nunca estivemos muito próximos. Só recentemente é que nos tornamos amigos. O que me honra e estimula muito. Pois Carlos é daquelas pessoas generosas e sérias que possuem um profundo interesse e entendimento do fenômeno poético—mas não abdica do senso de humor. Além disso, ocupa, com humildade e serenidade, um lugar de importância e destaque no quadro da poesia brasileira contemporânea.
Sobre o seu trabalho poético já se manifestaram escritores e poetas significativos como José Paulo Paes, Wilson Martins, Álvaro Alves de Faria, Moacir Amâncio, Cláudio Willer, Antonio D’Elia, Álvaro Cardoso Gomes, Anderson Braga Horta e outros. É considerado um expert em Fernando Pessoa. E escreveu um livro, Poesia não é difícil, que é simplesmente indispensável e magnífico: desmonta preconceitos e ilumina o fenômeno poético, falando dessa coisa viva, revolucionária e apaixonante que é a poesia. Com vocês, a palavra expressa e expressiva do belo poeta que é Carlos Felipe Moisés.

Cavalo alado

Foi como ervas e arrancaram-no.
Hoje pasta absorto em campo sombrio
(perdido vôo, exílio nefasto) e
lambe cicatrizes de ferida nenhuma.
 

Às vezes relincha, reclina
o dorso à procura de um rasto,
resto de fome clandestina,
mas não rasteja: ergue a fronte
e sopra dardos de fogo no horizonte.
 

O pouco do nada que lhe coube
é muito. O peito chora sem lágrimas
enquanto a cauda e a mansa crina
ondulam (brisa leve, pranto
alheio), rolando nas dunas
e nas ervas que foi, entre urzes.
 

Arrancaram-no mal raiou a madrugada.
Hoje pasta absorto entre sombras,
se alimenta da noite e sabe
que eterno dura. Mais nada.
 

(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
 
Mário de Andrade em San Francisco

para Roberto Piva & Cláudio Willer
 
1.

Dez horas da noite.
Percorro os meandros do Chinatown em San Francisco
e entre becos de névoa e olhares aflitos
é a ti que procuro
-- São Paulo, comoção da minha vida --
na voz de Mário, teu poeta,
subindo e descendo as ladeiras de angústia
de uma cidade que anseia pelo mar.

Dez horas da noite.
Meus pés,
que já pisaram as ruínas de Yucatán
e a medina de Marraquech,
o cais de Amsterdã
e o deserto de Alcácer-Quebir,
chegam cansados à Union Square, no coração de San Francisco,
e este chão morno coberto de pombos me acolhe
como se eu pisasse a rua Lopes Chaves em noite de crimes.

Dez horas da noite.
A culpa do insofrido, onde está?
Ali, Mário, põe a máscara!
O rei de Tule jogou a taça ao mar,
vendaval a levou -- e hoje,
troféu cravado na torre mais alta da Golden Gate,
banhada em luar,
ela anseia pelo Oriente onde, dizem, o sol reside.

Dez horas da noite.
Vem, Mário, vou mostrar-te San Francisco,
cidade esculpida em bruma a oriente do Oriente, onde a Primavera existe e se ergue do mar todo ano, ofertando presságios e desassossego,
ladeira abaixo
ladeira acima.
Aqui os corações são arrastados pelos bondes sapateando nos trilhos como o nosso dlem-dlem Santana! ei-ô! rumo à Voluntários da Pátria
ou às madrugadas arrepiadas de frio do largo de São Bento
mas aqui os bondes arrastam nossa aflição Powell St. acima, depois pelo
Embarcadero até o Fisherman’s Wharf e por fim nos despejam
na Ghirardelli Square,
de onde avistamos nossos sonhos,
catedrais ancoradas no cais impossível,
e a Primavera mais terrível
cobre de flores nossos ombros pensos --
arlequinal!
comoção de nossas vidas!

2.

A noite agora não é mais criança.
A cidade assolada em neblina acolhe os deuses da madrugada e nos vê
passar.
Não é nossa Londres das neblinas finas, onde as rolas da Normal esvoaçam
entre os dedos da garoa,
mas é a cidade que nos abrigou com sua Primavera incandescente e guiou
nossa vagabundagem por labirintos de espanto, numa noite iluminada pelo desespero de náufragos e rainhas exiladas.
Foi aqui,
naquele bar imundo da O’Farrell quase esquina com a Market, em meio ao
cheiro azedo e oleoso de tantas noites mal-dormidas, depois da
milésima cerveja, depois de esgotarmos todos os versos bem
amados, que sabíamos de cor,
foi aqui,
naquele canto escuro que Allen Ginsberg it’s too long that I have been alone, it’s too long foi-se chegando irritado e implorou come Poet, shut up & eat my word e você o embalou no colo e depois sonhou que tinha
vomitado a cidade de San Francisco no oceano azul.
Foi aqui
que Leadbelly, o negro desdentado, sentou-se à nossa mesa e nos ensinou a chorar em uníssono com seu banjo prodigioso e você lhe ensi-
nou os passos da dança que todos sabíamos e ele então, com
outro brilho nos olhos, voltou a nos chamar irmãos e nos desejou alegria e você o abençoou.

Depois,
arrancamos de cada rua os fantasmas que ali se abrigavam e derruba-mos todas as pedras que se acumularam no caminho
e as mãos sangradas e famintas finalmente descobrimos que San Francisco
(Alexandria, você sabe, a Tebas impossível que nunca pudemos
pisar) é uma cidade viúva de segredos e os fantas-mas que aí
avistamos são os nossos próprios fantasmas, para sempre per-
didos

-- como teu coração paulistano,
Mário,
que um dia você enterrou no Pátio do Colégio
e ali estava, quente e vivo,
entre as ruínas da O’Farrell quase esquina com a Market,
dedilhando um blues sem esperança
-- como tua língua,
que você um dia guardou no alto do Ipiranga,
para cantar a liberdade, saudade,
mas esta já não foi possível encontrar mais, não.
Por isso também nos perdemos e nos achamos,
comoção de nossas vidas!

3.

Depois
rolamos nosso sono em delírio, pelas ruas,
e em nossos olhos ardia
a lembrança daquilo que nenhum de nós sabia.
Depois,
diante do cais, em Lands End, os braços abertos em cruz,
você gritou para o abismo em frente,
ou sussurrou para as almas encolhidas de medo:
-- A noite vem do mar cheirando a cravo!
E por um instante
o baiano poeta Sosígenes bailou entre nós
naquela madrugada em San Francisco,
mas logo regressou a seus castelos em Belmonte.
No fundo das águas havia dragões e havia sereias
e ao longe, e-eh-ô!, Boi Paciência e o Irmão Pequeno.
Cada rua era um rio que o mar desenhara na terra
e a lua enorme
uma ânfora plantada na torre mais alta da Golden Gate.

-- Garoa do meu São Paulo,
garoa sai dos meus olhos!
E a garoa caía em San Francisco
ou em Londres das neblinas finas.
Depois
rolamos nosso sono em delírio pela Mission St., como um rio,
de leste a oeste cruzamos toda a cidade,
à procura do sol,
guiados pelo cheiro do mar,
mas o cheiro do mar nos levou para longe do mar.
-- Água do meu Tietê,
onde me queres levar?
Rio que entras pela terra
e que me afastas do mar...
Nessas águas Boi Paciência se afogou,
que o peito das águas tudo soverteu.

Você queria um porto seguro na terra dos homens,
por isso perguntava pela culpa do insofrido
e suplicava:
-- Garoa, sai dos meus olhos!
Por isso
você desceu ao léu da corrente do rio
e entrou na terra dos homens ao coro das quatro estações
mas não me ensinou o caminho
ou não aprendi a lição.

Ao regressar,
teus olhos eram só preguiça e mágoa,
teus olhos bailavam no ar,
o ar de mansa maresia dos mares de San Francisco,
teus olhos bailavam no ar a grandeza de todas as glórias
e teu coração entoava:
-- Estou pequeno, inútil,
bicho da terra derrotado,
e já nem sei se vale a pena
cantar São Paulo na lida

Você recusou a Paciência (Boi morto) e a esperança
e em teus olhos as águas murmuravam hostis,
levando as auroras represadas
para o peito do sofrimento dos homens.
Nem eram tantas essas águas, nem tamanhas.
Era uma lágrima, apenas, uma lágrima
das águas turvas do nosso Tietê, límpida
lágrima em que brilhava um céu de chumbo,
arlequinal!
comoção de nossas vidas!

4.

Quatro horas da manhã.
Caminhamos em silêncio pelo longo e frio corredor infinito da Powell St.
à espera do primeiro carro do subway que nos levará de volta a Berkeley e à
Telegraph Avenue,
onde a Revolução é um estado de espírito permanente e, qual Oroboros, do
seu próprio tédio se alimenta,
onde até o breakfast cheira a conspiração e onde os filhos dos hippies ven-
dem penduricalhos & melancolia e aceitam credit card.
Mas você sabe, Mário,
São Paulo também sempre foi berço de revoluções.

Quatro horas da manhã.
Deixamos para trás o cais e a noite negra
e em nossos ouvidos ecoa o grito de Álvaro de Campos:
-- Ó coisas navais! Meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!

Caminhamos em silêncio pela Powell St.
e você começa a saltar pela calçada
como se estivesse na avenida São João.
De repente,
o riso debochado
que brota dos teus e dos meus lábios
se espraia pelas ruas solitárias
e divide a madrugada.

Antes você perguntava pela culpa do insofrido
e se queixava:
-- Miséria, dolo, ferida,
isso é vida?
Agora teu coração secreto nos leva de volta
ao dia claro de onde viemos.

Quatro horas da manhã.
A maresia vem do cais distante
e se espreme entre os prédios altos
e arde cheia de aroma
no céu pesado de chumbo
-- entre essas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas,
como você costumava dizer da rua de São Bento.
Jamais
madrugada tão sombria,
jamais minha alma tão serena e vazia.

Quatro horas da manhã.
Caminhamos em silêncio pela Powell St.
e em algum lugar a Primavera nos aguarda
com dez mil milhões de rosas paulistanas.

No ar,
daquele banjo desdentado
o som já desfeito em penumbra
nos guia os passos
e somos duas crianças
balbuciando o rondó das tardanças.
E como sabe que vai morrer
daqui a um segundo
daqui a um verso
a noite mergulha em treva mais densa
(vingança!)
e em nosso olhar o dia todo se ilumina
em milhares de brilhos vidrilhos,
arlequinal!
comoção de nossas vidas!

(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
 

Modelagem

papel maché
argila
barro
massa
        modelar o quê?

modelar o ar,
cavar em torno
o oco sobrante
ao quase nada
de dentro:
             o já-não-mais
             do ainda-não.
Modelar o grito,
a água que escorre,
o brilho da estátua.

(o que não tem modelo
modelado está.)

As formas do branco

Caminho pela neve
e o mundo principia neste branco.
Tenho a verdade, sonho breve,
branco retido no branco.
 

Girassol amanhecido longe,
a verdade apareceu-me nesse branco.
Tempo devorado como carne, corpo ferido,
vermelho sobre o branco.
 

Os pássaros nascem nas nuvens,
azul distante.
Tinha a verdade, perdi-a:
branco escondido no branco.

(Urna diurna, in Poemas Reunidos, São Paulo, Cultrix, 1974)
 
Charlie Parker
 
1
Como vão as coisas, Charlie?
Como é que é, my friend Charlie? Ô-o!
Não foi assim que o nosso Jorge
Cantou? E você nem aí...Quando
Alguém chama: Charlie Charlie
Charlie, todos os Charles do mundo
Encolhem os ombros: não é comigo
Deve ser outro Charles qualquer.
Vai ver você tentava soprar
Três notas de uma vez (duas
Já era fácil, não era?)
E nem ouviu.
                     Vai ver
Não era mesmo como você
E não adianta insistir. Jorge
Bem que insistiu: take it easy
                  My brother Charlie,
Take it easy meu irmão de cor ô-ô!
Mas dá uma vontade danada
De gritar: oba oba oba Charlie!
Como vão as coisas, Charlie?
Mas eu sei que você não está
Nem aí...nem aí...
2
Como daquela vez em Toronto
Mil novecentos e cinqüenta e três:
Você se lembra? Nunca ninguém ouviu
Nada igual, nem no primeiro dia da criação,
Nem durante o dilúvio, nem quando a alegria
Passarinheira um dia pousou em sua mão.
 
Naquela noite ô-ô foram cinco dilúvios:
Você, outro Charles, o Mingus, Max,
O domador de baratas, Powel, o Bud
& o velho Dizz.
                        Dá para acreditar?
Vocês tinham visto passarinho azul
Naquela noite?
 
Max The Roach rola pelo despenhadeiro
E arranca árvores como quem despetala
Uma rosa. Bud salta e rodopia,
Colhe um punhado de estrelas,
Joga tudo aos pés da loira nervosa
E sorri.
            Você?
Nem aí...Você nem aí...
Mingus estilhaça os vitrais
De todas as catedrais
Do continente perdido
E você
           você nem aí...
Dizzie afrouxa a gola da camisa
E faz bater em revoada
O enxame de abutres guardado
No estojo do trompete, só para curtir
O olhar deslumbrado da loira nervosa.
E você?
Você desata o seu sopro: manada
De búfalos levíssimos que partem
Agoniados mar afora
No encalço da aurora.
 
Você se lembra, Charlie? Nunca
Ninguém ouviu nada igual. Foi
O oitavo dia da criação, dilúvio
De todos os dilúvios, no Massey Hall,
Toronto, Canadá: mil novecentos
E cinqüenta e tal.
 
Dizem(não sei) que naquela noite muitos
Homens abandonaram suas mulheres.
Dizem também que muitos homens
Voltaram às suas mulheres
                                          naquela noite.
Claro que você não lembra! Isso lá é coisa
Pra lembrar? Só se lembra quem não esteve lá.
Mas você estava, naquela noite, você estava lá,
Naquela noite mais clara que o dia,
Em Toronto, Canadá.
3
Agora o que eu queria mesmo saber
É essa história de bird:
                                  Charlie “Bird” Parker.
Me conte aí, Charlie, me conte essa história
Toda: Bird of Paradise. Young Bird, YardBird
Suíte ô-ô! Ornithology: não é? E não me esqueci
Do Rare Bird, do Bird’s Nest ah! The Birdland!
Mas isso é tudo, tudo mesmo?
                                                Ouvi dizer
Que essa passarada toda é pista falsa, nada
A ver: o pássaro que mora entre Charlie
E Parker é só o bluebird que um dia pousou
Em sua mão
Alegre
Triste
Folgado
Meio perdido
E em vez de ser livre escolheu ficar
Do seu lado (Charlie) o resto da vida,
Para ser mais livre ainda, junto de quem
Lhe desse o amor mais criança.
 
Diga que não, Charlie,
Diga que não...
 
Ouvi dizer que ele bateu as asas assustado
Quando soube que você, todo beleza, tinha
Acabado de estrear um lindo casacão
De madeira.
                   Ouvi dizer que ele foi atrás,
Cortejo todo, bicou muitas vezes o casacão
Inviolável, acompanhou aflito cada punhado
De terra, cada braçada de lágrimas,
                                                        Pediu
A cada um que lhe explicasse o que estava
Acontecendo
                     e quando todos se foram
começou a cantar a cantar a cantar
o mesmo fiozinho de voz, tão tênue,
mais forte que o aço, a mesma manada
de búfalos levíssimos que ele lhe ensinara.
(Ou foi você que lhe ensinou?)
Cantou cantou cantou ô-ô
Tarde noite madrugada afora
                   para anunciar
a aurora de todas as auroras.
 
Não é essa a história toda, Charlie?
 
Está bem, eu sei, não precisa dizer.
Não se preocupe também se alguém mais
Insistir em saber como vão as coisas ô-ô!
Como vão as coisas, Charlie.
                  Ninguém
quer se intrometer em nada não.
É só um jeito de dizer: obrigado irmão!
 
 


Publicado por Rubens Jardim em 19/06/2009 às 10h45

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