Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
31/08/2010 19h48
AUTORES BRASILEIROS NA MIRA DOS ANALISTAS JUNGUIANOS

NO GRANDE SERTÃO RECRIADO POR GUIMARÃES ROSA, QUASE NÃO HÁ ESPAÇO PARA O FEMININO. É NESSE UNIVERSO, DOMINADO POR HOMENS E POR VALORES MASCULINOS, QUE O PAPEL DAS MULHERES FOI DESTACADO POR ÁUREA ROITMAN

A Casa das Rosas realizou no último sábado, dia 28, o II Simpósio do IJUSP - Jung e a Literatura Brasileira. No  encontro, que reuniu membros do Instituto Junguiano de São Paulo e pessoas interessadas, foram abordadas questões relacionadas aos trabalhos literários do Padre Antonio Vieira, poetas Manuel Botelho Gregório Mattos, Adélia Prado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Cora Coralina e Manuel Bandeira.
Cada um desses autores teve algum aspecto de sua obra vasculhada pelos analistas junguianos. Vieira foi esmiuçado por Glauco Ulson que destacou aspectos da sua contribuição na formação da alma brasileira. Manuel Botelho e Gregório de Mattos foram analisados por Rubens BragarnichAdélia Prado foi examinada por Angela Nacácio que pesquisou sua obra e apresentou interessantes recortes de seus textos dentro da perpectiva junguiana. Guimarães Rosa foi o autor escolhido por Áurea Pinheiro Roitman para sua apresentação de retratos femininos do Grande Sertão:Veredas.
Seguiram-se, depois, as abordagens feitas por Carmem Marquez, Durval Faria e Renata Whitaker sobre Clarice Lispector. E, por fim, Dulce Brizza tratou de Cora Coralina, enquanto Ricardo Pires de Souza e Irene Gaeta debruçaram-se sobre Jung e os poetas brasileiros e Gustavo Barcellos ocupou-se de Manuel Bandeira e a transfiguração do mau destino.
Destaco a abordagem feita por Áurea sobre as imagens do feminino em Grande Sertão: Veredas, por uma razão muito simples: Guimarães Rosa é um de meus autores preferidos e Grande Sertão:Veredas é uma das obras mais densas e de maior complexidade artesanal jamais produzida no mundo das letras. Mais ainda: o escritor mineiro foi um alquimista da palavra e manteve sua narrativa encharcada por elementos metafísicos, religiosos e inconscientes.
Ele mesmo confessa isso em suas cartas enviadas ao tradutor italiano Edoardo Bizarri.
(...) os meus livros, em essência, são 'anti-intelectuais' – defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upaxinades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente.
Por essas afirmações, é possível perceber o grau de intensidade com que Rosa lidava com a dimensão do intangível. Mas voltando ao trabalho de Aurea, o que nos chamou a atenção foi ela ter vislumbrado o papel das mulheres na obra e a sua influência na trajetória de Riobaldo. Mas vejamos alguns pontos:
Eu lhes proponho acompanhar  estas figuras do feminino e  suas  estórias , que  se  revelam  no  cerrado sob o sol  inclemente e nos redemoinhos  das encruzilhadas . Estórias que evocam o imaginário coletivo desvelando paixões, ódios, suspeitas e alegrias , numa trama urdida com tal intensidade que nos sentimos  completamente  envolvidos na travessia de Riobaldo ao ouvi-lo contar as suas reminiscências de um  reino  perdido . É  neste  zigue-zaguear , alinhavando uma  reflexão  profunda de sua errância no Sertão, que o ex-jagunço revela aquilo que chamamos o seu “ processo de individuação“ .
Após essa introdução, Aurea se debruça sobre as personagens femininas que aparecem no Grande Sertão: Maria Leôncia,  Nhorinhá, Otacília-- e Diadorim. Maria Leôncia,a rezadeira, é a primeira presença feminina em GSV. E isso faz a analista perguntar: não seria uma reverência de Guimarães Rosa ao Sagrado e a seus mistérios? Rezadeiras, benzedeiras  e  raizeiras, são portadoras de uma tradição oral antiqüíssima. Segundo a crença popular  elas são protegidas pelos santos e re-afirmam  a  presença deles na vida de todos que as procuram. Elas nos fazem lembrar as divindades protetoras e são, sem dúvida,  portadoras  de uma força numinosa singular. Com  mãos ágeis sustentam pequenos ramos verdes; traçam cruzes  no ar sobre  a  cabeça do doente enquanto murmuram preces. Tecem assim um fio invisível unindo as dores do  homem com a evocação poderosa do Sagrado, na figura da SantíssimaTrindade e do Espírito  Santo.
Segundo Aurea, Guimarães Rosa configura, através de Maria Leôncia, a imagem arquetípica do curador amoroso. E aquela moça,meretriz, por lindo nome Nhorinhá, é a outra personagem que leva a autora a perceber, nas circunstâncas paradoxais do sertão,o fio amoroso comovendo Riobaldo, gerando as suas boas ações e o impedindo do mal.
Nhorinhá é um personagem ao mesmo tempo sagrado e profano. Riobaldo havia se distanciado do  seu bando , o que caracteriza um processo iniciático,  pois embora não tenha se embrenhado numa  floresta,  nem se dirigido ao deserto, como na maioria dos mitos , é aqui mesmo, no Sertão, que  este  processo tem lugar , na “ cabana  iniciática”  de  Nhorinhá .
A  revelação da religiosidade de Nhorinhá surpreende , quando traz nas mãos uma figura de Santa,  para ser beijada . Os  lábios doces  de Nhorinhá beijam o jagunço matador,  Riobaldo Tatarana, cuja  arte é a Guerra. Riobaldo, em sua descida iniciática,  enfrentará “os demônios” que definem os processos de iniciação na trajetória do amadurecimento espiritual .
Não resta dúvida que Riobaldo vive uma paixão por Nhorinhá. Ela lhe inspira, provocando as mais profundas  emoções. Através de Nhorinhá, Riobaldo se afirma como homem. Com Nhorinhá, está  sendo vivida a conjunção do profundamente carnal com a epifania do Sagrado, unindo o sublime ao terreno, o Céu à Terra. Nhorinhá representa, no nosso entender, a imagem arquetípica do Amor Cortês , permanecendo eterno na memória, mas jamais se realizando efetivamente .
A próxima personagem feminina é Otacília, associada ao amor angélico que purifica e salva.
Otacília está para Riobaldo como  Beatriz  para  Dante,  aquela  através  da  qual  os  infernos serão ultrapassados, conduzindo a um estado de serena beatitude.Também, como Beatriz, Otacília oferece a Riobaldo uma proteção sublime. Este amor cura as  muitas feridas de seu grande penar. Com Otacília, frágil e casta em meio à aridez do sertão, Riobaldo re-direciona os seus sonhos e decide deixar o universo paradoxal e provisório das lutas e incertezas.
Otacília oferece estabilidade , fidelidade e afeto constantes além de estar associada a uma atmosfera de religiosidade. O amor deles constela a “coincidentia oppositorum” uma vez que formam um par  antagônico. Não nos  esqueçamos que Riobaldo - jagunço , Riobaldo - Tatarana, o  Urutu- Branco,  tem a natureza vinculada à sua mãe, a índia Bigri  e,  se  unido à meiga e casta Otacília, constela um  amor que indo além da mera sexualidade, busca um sentido transcendente na vida. Otacília nos parece constelar a imagem arquetípica da anima de Riobaldo.

E por fim, no grande sertão recriado por Rosa, dominado pelos homens e pelos valores masculinos, Áurea supera a tríade amorosa de Riobaldo e promove uma série de reflexões sobre Diadorim, personagem que desperta em Riobaldo um amor inexplicável e impossível, que irá se apossar do jagunço como um feitiço, um encanto e que há de perseguí-lo ao longo de toda a travessia.
Com Diadorim adentramos  o terreno da suspeita e do desejo, da lembrança e da  dor,  da epifania e  da  neblina. Diadorim  surge como a grande força iniciática e transformadora . A  própria força do  destino. Intensa. Luminosa. Paradoxal. Riobaldo e Diadorim se encontram, pela  primeira vez, às  margens barrentas do S.Francisco num momento marcado pela magia e encantamento : “o menino  de olhos verdes, grandes.” Juntos fazem a travessia do rio, num espaço sacralizado, do encontro  das águas barrentas do rio S.Francisco com as águas claras do rio  de-Janeiro, num rito iniciático  que separa, para  sempre, Riobaldo do regaço materno da Bigri  e o enlaça, também para sempre , nos enigmáticos  meandros dos olhos verdes do Menino.   
Riobaldo se encanta e se deixa fascinar pelo feminino em Diadorim, cuja sensualidade o lança nas veredas do desejo impossível  e do pesadelo  assombrado. Este amor-natureza, irrompe como magma no seio da terra, inundando, levando consigo tudo. Esse amor  é sentido como “coisa do  demo”. Amor como feitiço,“coisa  feita”. Riobaldo oscila , entre o amor  imaculado de Otacília e o amor condenado, diabólico por Diadorim. Riobaldo se debate junto ao desafio da entrega, entre o “chamado” e o “ recuo “ frente àquela  “beleza  verde” pela qual  se sentia ameaçado. “ Olhos  verdes....das  compridas  pestanas”. O  verde ensombrado de Diadorim significando o que está oculto, envolto em mistério , forte na sua presença,  hipnótico no seu chamado . Não são olhos que permitem que nos espelhemos neles, reconhecendo-nos no outro. Antes, são olhos que pertencem ao absolutamente Outro, que tem aquilo que não temos, que são aquilo que não somos . Estes olhos não espelham, apenas contrastam e atraem com a marca do imprevisível. Diadorim envolve Riobaldo suavemente como a neblina, impedindo-o de ver o que está mais adiante. A neblina, no seu paradoxo, acolhe, protege , e também tolhe, cerceia . Nada em Diadorim é tranqüilo, nem o amor sexual nem o sublime .
Diadorim encantador, apaixonante e apaixonado, andrógino e terrível como os Anjos, infunde em Riobaldo uma paixão equívoca,  próxima do estado de encantamento atribuído ao Maligno. Em Diadorim se  constela o paradoxo da ternura materna e o arrebatamento vulcânico do erotismo, que  tomando Riobaldo num redemoinho de afetos, o fazem “ viver os seus avessos” . Enquanto refém destes sentimentos, ele jamais  consegue romper as águas caudalosas destes amores . Ele permanece à margem, perplexo  no  impasse,  no paradoxo  .    
Para Áurea, Diadorim representa a imagem arquetípica do grande amor.
 


Publicado por Rubens Jardim em 31/08/2010 às 19h48

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