Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
03/03/2011 00h21
O POETA QUE QUIS SALVAR O HOMEM E A MÁQUINA, ATRAVÉS DOS PODERES DA POESIA

Mesmo fazendo poesia de alta qualidade até a década de 70, e sempre dando grandes contribuições à linguagem poética, Cassiano Ricardo foi sumindo da ordem do dia dos estudiosos e dos amantes da boa poesia

Já nos livros Martim Cererê(1928) e O Sangue das Horas (1943), o poeta Cassiano Ricardo deixa entrever, além do forte aroma da terra, uma profusão de imagens quase sempre de natureza visual. E o poeta Manuel Bandeira, que nunca foi bobo e incompetente, percebeu  nesses poemas –ainda que inspirados no mundo subjetivo do poeta –“a impressão de instantâneos  fotográficos apanhados à luz crua meridiana”.

Parece profecia, mas não é. É coisa de poeta. Que apesar de estar embaraçado em um cipoal de símbolos e sinais, acaba profetizando—e várias vezes acertando o alvo. É o caso desse comentário antecipador do inesquecível Manuel Bandeira. Afinal, Cassiano Ricardo, além de renovar-se  constantemente, desde a sua estréia parnasiana em 1915, foi o primeiro poeta consagrado a se arriscar às mais estranhas e inovadoras experiências vanguardistas. Pode-se dizer que a questão da palavra, como matéria-prima do poema, começou a inquietá-lo e a seduzí-lo cada vez mais, principalmente depois das teorizações dos poetas concretos e do surgimento da poesia práxis.  Por isso, o seu bombardeio  nos elementos de composição resultaram em várias preciosidades. Maravilha, por exemplo,  virou mar, ave e ilha. Mas nessa caminhada-- sempre complicada-- dada a enormidade da tarefa que cabe ao poeta no mundo, Cassiano passou por tudo.

Festejado pelos mestres parnasianos, graças ao seu livro Frauta de Pã (1917), deu as costas ao parnasianismo e atirou-se em cheio na aventura modernista. Segundo ainda o poeta Manuel Bandeira, “pintou-se de verde-amarelo, foi caçar papagaios e dessa volta no Brasil trouxe um livro de enorme sucesso: Martim Cerere.”  Na sequência surgem Deixa estar Jacaré (1931), Um dia depois do Outro(1947), A face perdida(1950) e os livros que se seguiram até O Arranha Céu de Vidro (1956). Mas o poeta não pára por aí. A visão tecnológica do mundo vai ser ampliada com Montanha Russa (1960) e A difícil Manhã(1960, ganhador do Jabuti)). E atinge a sua mais plena realização com o livro Jeremias Sem chorar (1964), ganhador do Premio Jorge de Lima, em 1965. Nesse livro, o poeta mostra seu domínio das técnicas gráfico-visuais sem nenhum prejuízo do lirismo e do conteúdo realmente poético. Como o profeta do Velho Testamento, o poeta do mundo contemporâneo também está assaltado de mil temores que lhe justificariam plenamente o pranto; mas o Jeremias moderno é “sem-chorar”; há máquinas destinadas a chorar por ele.

Mas não é só isso. Embora considerasse os poetas de vanguarda (leia-se os irmãos Campos, Décio Pignatari, Mário Chamie,etc) muito novos e por demais radicais, foi Cassiano quem acolheu poemas e estudos desses poetas jovens na página Invenção que mantinha no jornal Correio Paulistano. Sem contar com os diálogos críticos que estabeleceu com essa moçada, através dos ensaios que publicou em livros como 22 e a Poesia de Hoje (1962), Algumas Reflexões sobre Poética de Vanguarda(1964) e Poesia Praxis e 22 (1966).

O próprio poeta Mário Chamie, idealizador e instaurador da poesia práxis, chegou a dizer que “seguir as fases de Cassiano é percorrer a série de pontos-chaves que lastreiam os nossos movimentos poéticos”. Afirmação que é confirmada pelo respeitado crítico Tristão de Athayde. Segundo ele, depois de 43 anos de modernismo, Cassiano lança a sua revolução na terceira fase do modernismo: “nem verso, nem prosa (poema em prosa) mas poema+poesia”. Ou seja: com extraordinária sutileza de raciocínio e erudição crítica Cassiano Ricardo propõe “a autonomia do poema, face ao verso e à prosa”.

Pequena seleção de poemas de Cassiano Ricardo

Poética
1
Que é a Poesia?

uma ilha cercada
de palavras
pro todos
os lados.
2
Que é o Poeta?

um homem
que trabalha
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem.

(do livro Jeremias Sem Chorar)

Ladainha

Por que o raciocínio,
os músculos, os ossos?
A automação, ócio dourado.
O cérebro eletrônico, o músculo
mecânico
mais fáceis que um sorriso.

Por que o coração?
O de metal não tornará o homem
mais cordial,
dando-lhe um ritmo extra-
                        corporal?

Por que levantar o braço
para colher o fruto?
A máquina o fará por nós.
Por que labutar no campo, na cidade?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar, imaginar?
A máquina o fará por nós.
Por que fazer um poema?
A máquina o fará por nós.
Por que subir a escada de Jacó?
A máquina o fará por nós.

Ó máquina, orai por nós.

 
(do livro Jeremias Sem Chorar)

                                                                                                                                                                                                                          Serenata Sintética

Lua
morta

       Rua
       torta

Tua
porta

 

A rua

Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.


A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.

Sala de Espera

(Ah, os rostos sentados
numa sala de espera.
Um "Diário Oficial" sobre a mesa.
Uma jarra com flores.
A xícara de café, que o contínuo
vem, amável, servir aos que esperam a audiência
[marcada.

Os retratos em cor, na parede,
dos homens ilustres
que exerceram, já em remotas épocas,
o manso ofício
de fazer esperar com esperança.
E uma resposta, que será sempre a mesma: só amanhã.
E os quase eternos amanhãs daqueles rostos sempre
[adiados
e sentados
numa sala de espera.)

Mas eu prefiro é a rua.
A rua em seu sentido usual de "lá fora".
Em seu oceano que é ter bocas e pés
para exigir e para caminhar.
A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo.
Rua do homem como deve ser:
transeunte, republicano, universal.

Onde cada um de nós é um pouco mais dos outros
do que de si mesmo.
Rua da procissão, do comício,
do desastre, do enterro.
Rua da reivindicação social, onde mora
o Acontecimento.

A rua! uma aula de esperança ao ar livre.

Você e o seu retrato

Por que tenho saudade
de você, no retrato,
ainda que o mais recente?

E por que um simples retrato,
mais que você, me comove,
se você mesma está presente?

Talvez porque o retrato
já sem o enfeite das palavras,
tenha um ar de lembrança.

Talvez porque o retrato
já sem o enfeite das palavras,
tenha um ar de lembrança.

Talvez porque o retrato
(exato, embora malicioso)
revele algo de criança
(como, no fundo da água,
um coral em repouso)

Talvez pela idéia de ausência
que o seu retrato faz surgir
colocado entre nós-dois

(como um ramo de hortênsia)

Talvez porque o seu retrato,
embora eu me torne oblíquo,
me olha, sempre, de frente

(amorosamente)

Talvez porque o seu retrato
mais se parece com você
do que você mesma (ingrato).

Talvez porque, no retrato
você está imóvel,

(sem respiração…)

Talvez porque todo retrato
é uma retratação.

(do livro A difícil Manhã)

Canto Incivil

Basta estar vivo
pra ser subversivo
( Ou subservivo.)
Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
( Ou vil, pra encurtar a palavra.)

Basta ser incivil
pra não ser ninguém
Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.

Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E “elemento subversivo”
que a polícia me deu.

E apenas uma dor:
a que a vida me deu.
e eis-me aqui, incivil,
(ou vil, pra encurtar a palavra).

Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.

(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal.)


Publicado por Rubens Jardim em 03/03/2011 às 00h21

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