Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
25/02/2015 16h25
AS MULHERES POETAS...(58ª POSTAGEM)

KATYUSCIA CARVALHO (1977) poeta pernambucana de raízes e dialeto, nasceu com as águas de março de 1977. É formada em letras e lecionou todo o tempo em que viveu no Brasil, desenvolvendo projetos de inserção de saraus de poesia em salas de aula. Emigrou por amor. Hoje, em terras helvéticas, estuda idiomas e escreve porque não sabe cantar.

Um dia encontrarão

os fósseis rupestres

de uma saliva

já extinta

 

virão tradutores

e ólogos e istas

 

capitalizarão:

 

[beijos cravejados na rocha]

 

e os poetas dirão:

a fotossíntese da pedra!

 

as ortodoxias

intoxicando tudo

implorarão o milagre da obra

de uma língua santa:

 

- uma palavra sua e seremos salvos!

 

pigmento inteligível para espécies vorazes

corroendo caverna

sanguinidade de sal

 

mas que lábios

que línguas

que linguística guerrilha

deixa fendas na fala?

 

como corpo sem carne

a linguagem não cala

só o homem sucumbe à ausência de órgãos

falência múltipla

 

na boca nunca insossa do tempo

 

MOLDURA PARA POEMA

Escrevo quadros

humanos quadros que não pinto

E que não pairam

: movimentos sem cenário

- Quadris!

Meu texto é sempre um corpo

 

PENUMBRA DA PONTE

Não há tela que o prenda

ou pincel que o retoque

é um rio onde passa uma sede por cima

:sede que afoga, e ninguém atravessa

 

é muito aquém de uma ponte que caia

é para além

é para longe a perder-se de vista

:linha inimaginária

 

é o prenúncio daquela que não se represa

que mora sem muros,

mas tem trepadeiras

:por onde subir para a copa de um sonho

 

o que ninguém vê

é o exílio em seus olhos

não demarca o caminho de volta com pedras

:amnésia de mapas

 

vai ter com uma índia, reaprende a rezar

e resigna os búzios

às vezes reparte poesia entre monges

:mas não se ajoelha

 

um nômade a ama,

com ele copula

e compõem heresias no alto da noite

:arregalam-se estrelas

 

Nas duas orelhas adorna risadas

e sabe ouvi-las até soluçar

estende tapetes à beira de um charco

:convite ao que é bento, batismo de barco

 

dá nome ao rio

nomeia com seiva suas iniciais

e sabe lhe ser sob a lua estuário

:só por isso perene

 

cabeceira do mundo na margem de lá

 

FAGULHA DE ESTRELA
escorre como areia um ciclo
de olhares
sem relevo

úmidos, colhidos do sereno
a quarteirões
de seus quadris

isadora duncan germina

enxames de têmporas sobre seu corpo
bruxuleiam
a um passo de vê-la dançar

 

ALE SAFRA(       ) poeta paulista, nascida em Santa Fé, publicou em revistas eletrônicas e faz parte do e-book Geração em 140 caracteres. Também teve poemas incluídos no livro É que os Hussardos chegam hoje . Seu primeiro livro, Dedos não Brocham, foi publicado em 2012. Escreve constantemente no blog que deu origem ao livro: dedosnaobrocham.blogspot.com

PARÊNTESES

essa poesia no silêncio das mãos

daquilo que toma, do gesto que suplica

e espera

 

sob as unhas um misto de sangue e terra

nos poros saltados dos ossos morros de saudades

e linhas inconstantes

 

há lembranças nessas mãos nos caminhos de nós

e atalhos afirmam: toda linha é uma utopia

 

(na dificuldade não segure nenhuma

esperança)

 

as mãos não mentem

mas apenas no que não dá

 

COISAS DE MENINA ENCERRADA

quando a prisão não é real, ela  é imaginária?

então somos todos prisioneiros?

 

quis saber mariquinha engaiolada

 

mas da minha língua presa,

da minha falta de entendimento

não voou palavra

 

PERGUNTE AOS PÉS

sapatos covas de paisagens

memória esquecida do pé

pisoteado coração na planta

não pulsa, marcha, sem pele

 

atos bárbaros no rasto

sapato enterra. calo

cegueira do laço

 

cada sapato adorna

a feiura do trajeto

nas rachaduras

parede dos pés

 

do sentir, da razão

ninguém perguntou aos pés:

onde está sua vontade?

em silêncio, lateja

deformidades do hábito

 

na caixa dos sapatos

um rascunho da mesma história

subserviente

 

areias repelem sapatos

alinhamento raro

mente, coração

e passo

 

MAIORIA DA MINORIA

sou mulher, negra, gay, árabe, ateia

tenho meu rosto desfigurado por ácido,
o corpo escondido por um manto negro
ou exposto como arranjo de mercadoria
sou pobre, deficiente, ignorada. escondida
meus olhos estão roxos e meus lábios cortados
vagina desrespeitada pelo absurdo
sou bela, rica, asiática, e mantida como escrava
atendo todos os rótulos: vadia, mãe, amante
louca, piranha, santa, vaca, puta, fofa e tô na rua
mesmo morta pela misoginia, pelo machismo e homofobia
pelos abortos clandestinos, em campos de refugiados
mesmo mosta por nascer menina, lána china
vivo na boca das meninas. todo suor do massacrante trabalho doméstico
é da minha testa que desce quando sou roubadas de mim
meu útero saqueado para gerar soldados e consumistas
meu corpo roubado por ser escrava sexual, rural e emocional
oito do três não é meu dia. piso em todas as rosas
ignoro todo parabéns. hoje é um dia triste
um trinta e oito apontado para meus olhos
esse dia estúpido não deve ter ares de festa
toda homenagem, presentes, abraços, é um ato violento
que banaliza todo sofrimento, discurso e movimento
ouça as mortas, sinta suas dores, elas são de todas nós
falem de mim, destas marcas aqui. deste roubo. deste assassinato
desta desunião criada entre eu e minhas iguais. destes deuses patriarcais
não sou vítima, sou roubada em todos os meus direitos de existir
mas sou mulher e tô na luta e sou todas as mulheres do mundo

agora, passado e futuro

 

PRISCILA MERIZZIO (1985) poeta paranaense, é formada em comunicação social, trabalhou como redatora em agências de propaganda e em jornalismo. Colabora com a Germina, Zunái, Eutomia, Mallarmagens, Jornal RelevO, Escritoras Suicidas e PoesiAudível. Publicou recentemente seu primeiro livro: Mínimoabismo, pela Patuá.

L’ENFANT TERRIBLE HIGHER THAN ANY OTHER

Ouço Lana Del Rey

compactuo com espíritos adolescentes

que nunca saíram de mim

axé de um corpo que não envelhece

 

o ventilador ricocheteia o ar quente de

Francisco Beltrão, Marmeleiro, Dois Vizinhos,

Londrina, Maringá, Foz do Iguaçu, Coronel Vivida

Presidente Prudente, Camboriú

 

O interior esmaece a paciência

de quem nasceu cosmopolita

obriga a fingir que é conivente

com o arreio das carolas de corpo

gatas velhas d’alma

 

Anões antropofágicos me cercam

sufocam-me com os bracinhos

e dentinhos cerrados

envolvem os próprios corpinhos

em lençóis brancos de OMO

 

apagam a chave geral de luz

caminham por meu apartamento

relincham de tanto rir

pequenos cavalos de Tróia

 

Cauterizo as verrugas dos dedos

fetos malformados da astronomia

unhas pintadas de azul cintilante

dichavo diversão e fuga

 

Lana Del Rey canta Blue Jeans

você beberica minha bílis

num copo de café pingado

intoxica sua asma e úlcera nervosa

no estado de São Paulo

 

os anões praticam nado aquático

na caixa d’água do prédio

 

No Candói

um piá despreocupado

engravida uma guria

de 16 anos

 

balzaquiana, chupo um picolé de coco e salto do interbairros

 

REFÚGIO

os deuses protegem meu corpo

como o tapume circunscreve a catedral gótica

 

múmias apoteóticas

via régia de papiros a.C.

refúgio do bardo pagão

 

na abóbada

longe das trincheiras da revolução francesa

homens verdes urinam

 

de mármore, rezas, artilharia e gana

faz-se o caos

 

os deuses protegem meu corpo

irrevogavelmente politeísta

como os índios costuram

palmeiras nas ocas

 

espectros melífluos batizados no círculo mágico

desmistificação de aporias

jesuítas poluíram rios amazônicos com água benta

botos-cor-de-rosa engravidaram índias com sêmen europeu

 

os deuses protegem meu corpo

com o apetite irascível

dos elefantes africanos que

acossam as fêmeas

 

avançam com peso e presas

estraçalham carros e pessoas

trombas bramindo:

“afastem-se do que é meu”.

 

D. R.

Miles Davis incentiva-me a seguir adiante

 

quanto pensei em você

pobre diaba acreditando

em palavras que mentem o dia inteiro

 

esta pequena mesa ao ar livre

em que faço, solitária, minha refeição

poderia ser um bistrô francês

 

no lugar dos velhos tarados da vizinhança

eu estaria cercada de jovens inexperientes

com os cabelos cheirando a cigarro

 

minha eterna alma de puta velha

canta Bethânia enquanto faz peeling

e aplica ácido retinoico no rosto

 

bebo suco de uva como se fosse vinho

não posso me render ao álcool

nem a outro vício qualquer

 

foi assim que meu tio morreu

navalha de quenga nas costas

fingindo fazer amor

 

falso vinho

falso sexo

 

por puro desânimo

adoecemos no pão mofo de cada dia

 

PEIXE FOR A D’ÁGUA

com a facilidade de um soldado que esmaga

a queratina de um louva-deus

você pisoteou as promessas

 

chegou a hora de atinar

e despedir-me da entressafra

de crises existenciais

 

puxo o fôlego de uma travessia

no Canal da Mancha

e nado contra a maré

 

finger-me  de boi para pertencer ao rebanho me exaure

 

MAR BECKER(1986) poeta gaúcha, é formada em filosofia, cursa especialização em epistemologia e metafísica e trabalha como professora. Publicou poemas nas revistas Zunái,  Germina, Pausa e Eutomia, no Portal Cronópios e em diversos blogs. Participou da Miniantologia Poética do Centro Cultural de São Paulo, organizada por Claudio Daniel, e publicou Perséfone, plaquete da coleção Poesia Viva.

ABREM-SE AS ASAS DOS CABELOS

abrem-se as asas

dos cabelos,

digo-te: rosa

(uma trança a se

desfazer)

-dos-

ventos.

que mãos bordaram-na?,

(o que tu sangras,

sussurro.

digo-te, ave escarlate,

ao pé das pétalas

que encalham

nos meus ombros

como se fossem coágulos

de areia,

conchas: as pérolas

dos brincos).

é outono, meu bem; ouve,

todas as peles

rangem.

 

AGOSTO – I

respinguei no vidro

da palavra que

fechaste,

da janela que em

tão pouco,

tão perto,

se calou dentro de

ti.

agosto, ainda.

muita chuva,

(mas nenhuma fresta

nos lábios,

um sopro, que

fosse,

nenhum silêncio

entreaberto

para que à noite meu

nome

adormeça no teu).

respinguei no vidro,

no para-

peito,

o coração logo atrás.

 

[COMEÇARIA DIZENDO...]

começaria dizendo o que não posso

que teus suores formam hieróglifos de sal na pele

e que um rosário misterioso se enrola a teus pulsos quando me amas

começaria dizendo que tua respiração tem vista para o mar

e que à noite me debruço ali, silenciosamente

meus cabelos de água-viva

minha língua de virgem

madrepérola

e que à noite

e que me debruço e morro

em tua respiração

 

O LIVRO ESCURO (I)
isadora duncan aparece em meu espelho
no lugar de mim
então me olha
e mostra
a língua. demoro a perceber que é uma língua em forma de ponteiro de relógio
(o que falta em meu próprio relógio, na parede da cama)
*
vai até a cozinha
eu sigo
o gás atravessa a mangueira discreta e pacientemente, como um segredo entre gerações. lembro que esse é o gás com que sylvia plath se suicidou
e que sylvia plath é a poeta que cita a echarpe
de isadora duncan
num poema que se chama
"40 graus de febre"
*
o silvo: a válvula-vulva da panela de pressão
girando
*
o ponteiro nenhum do relógio, girando
o corpo e o sangue
a roda do conversível

 


Publicado por Rubens Jardim em 25/02/2015 às 16h25

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