Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
17/02/2017 01h38
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA(87 POSTAGEM)

ESTHER PROENÇA SOARES (1929) poeta paulistana, é formada em letras. Graduou-se também em artes cênicas na ECA e freqüentou aulas de dança com Klauss Vianna, Maria Duschenes e Ivaldo Bertazzo. Já trabalhou como arte-educadora, professora de etiqueta e expressão corporal. Seu primeiro livro de poemas, Disco de Cartolina foi publicado em dezembro de 2016.

ALGORITMO

Eu sou a soma do que sou

mais o que não sou

aniquila-me o deserto entre o meu ser

e o meu não ser emparedado.

 

É imensa a minha sede

mas o cantil está furado

 

RECEITA

Para fazer um poema

não basta empilhar versos

resgatar um sentimento

ou lamento

 

Para fazer um poema

seduzo incoerências

o jogo de sombra e luz

cadência

desarmonia

malemolência das rimas

o verso longo e o curto

ritmo e melodia

 

Para fazer um poema

invoco transgressões

abraço o caos das palavras

o desafio das formas

ebulição visceral

me paramento

provoco o sequestro da  alma

em seminal quietude

e o menos que é mais

e o demais que é essência

é chuva sideral

Fazer um poema

é epifania

trabalho

transpiração

velas acesas

estado de graça

braços, abraços

 

Fazer um poema

é celebração

DOIS TONS

Há luzes sempre acesas em quartos de hospitais

e choros tristes de crianças dentro da noite

--bem sei

Há putas tristes debaixo de lampiões

e poetas famintos aos pés delas

--bem sei

Há cânceres minando fígados e mentes

e cárceres formando mentes dementes

--bem sei

mas nada é mais triste agora

do que esta negra madrugada

entre as quatro paredes brancas do meu quarto

BÁLSAMO

Eu ando agora a cultivar poemas

palavras lindas que me assaltam com doçura

Mesmo cruéis trazem o som da realidade

me envolvem com ternura

 

Eu faço amor com elas e engravido-as

fazemos filhos puros e amorosos, imaculados versos

que me devolvem o passado envolto em fantasia

quando os releio

 

Sinto que a barca se aproxima

e a Amiga me convida cantando docemente

voz de sereia que me embala

e cala minhas dores e saudades

 

Preparo-me tranqüila

e enquanto ela não chega e eu não embarco

escrevo estes poemas

estas falas de amor e gratidão

 

Enquanto há vida nos meus tempos e momentos

me aninho nas palavras das poesias

nos poetas que um dia me encantaram

e ainda calam minhas dores e tristezas

 

Vocês, o’ meus amados,

sempre ao meu lado,

abençoados são

e serão sempre.

ESMERALDA RIBEIRO (1958 ) poeta paulistana, é escritora afro-brasileira, jornalista e faz parte do Quilombhoje desde 1982. Tem atuado nos movimentos de combate ao racismo e na construção de uma literatura Negra. Publicou poemas na revista Cadernos Negros.

VOZES-MULHERES

A voz da minha bisavó ecoou

criança

nos porões do navio.

Ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem- o hoje- o agora.

Na voz de minha filha

Se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

E AGORA NOSSA GUERREIRA

                                      Em memória da tia Vanda Lopes dos Santos

Quem

em sã rebeldia

tira a máscara esculpida na

ilusão de ser outro e

não ser ninguém

 

Quem

em sã consciência

joga fora o veneno guardado no

pote da vida, sem derramar uma

gota no copo da gente

 

Quem

inteira, completa

deixa a poção afrodisíaca

untar o céu dos lábios

sem medo de heresias

 

Agora mãinha

quem olha no olho da noite

à procura dos filhos

como as mães da Praça de Maio

No apogeu da madrugada

 

os frutos do exemplo são verdes

na hora da solidão a gente te

aguarda no portão

 

Ninguém

vai pra Bahia

desfazer a nossa desunião

nem vai a roça cultivar

a nossa cor

 

E agora

Ekédi de Oxalá

quem enxuga o nosso rosto

quem ampara o nosso tombo

quem vem nos

abraçar.

OLHAR NEGRO

Naufragam fragmentos

de mim

sob o poente

mas,

vou me recompondo

com o Sol

nascente,

 

Tem

Pe

Da

Ços

 

mas,

diante da vítrea lâmina

do espelho,

vou

refazendo em mim

o que é belo

 

Naufragam fragmentos

de mim

na coca

mas, junto os cacos, reinvento

sinto o perfume

de um novo tempo,

 

Fragmentos

de mim

diluem-se na cachaça

mas,

pouco a pouco,

me refaço e me afasto

do danoso líquido

venenoso

 

Tem

Pe

Da

Ços

 

tem

empilhados nas prisões,

mas

vou determinando

meus passos para sair

dos porões

 

 tem

fragmentos

no feminismo procurando

meu próprio olhar,

mas vou seguindo

com a certeza de sempre ser

mulher

 

Tem

Pe

Da

Ços

 

Mas

não desisto

vou

atravessando o meu oceano

vou

navegando

vou

buscando meu

olhar negro

perdido no azul do tempo

vou

vôo

ENSINAMENTOS

ser invisível quando não se quer ser

é ser mágico nato

 

não se ensina, não se pratica, mas se aprende

no primeiro dia de aula aprende-se

que é uma ciência exata

 

o invisível exercita o ser “zero à esquerda”

o invisível não exercita cidadania

as aulas de emprego, casa e comida

são excluídas do currículo da vida

 

ser invisível quando não se quer ser

é ser um fantasma que não assusta ninguém

quando se é invisível sem querer

ninguém conta até dez

ninguém tapa ou fecha os olhos

a brincadeira agora é outra

os outros brincam de não nos ver

 

saiba que nos tornamos invisíveis

sem truques, sem mágicas,

ser invisível é uma ciência exata

mas o invisível é visto no mundo financeiro

é visto para apanhar da polícia

é visto na época das eleições

é visto para acertar as contas com o leão

para pagar prestações e mais prestações

é tanto zero à esquerda que o invisível

na levada da vida soma-se

a outros tantos zeros à esquerda

para assim construir-se humano.

LENITA ESTRELA DE SÁ(19  ) poeta maranhense, é graduada em letras e direito, com pós-graduação em linguística aplicada ao ensino de línguas materna e estrangeira. É também romancista, contista, dramaturga e roteirista. Publicou varios livros premiados. Em poesia, o último foi Pincelada de Dalí e outros poemas(2015) Prêmio Sousândrade.

SOBRADO DA RUA DO TRAPICHE

Nem o musgo é capaz de trespassar a angústia

que os cômodos vazios exalam

ou mesmo as roupas penduradas na sacada

disputando luz com insetos e lamúrias.

Ali as horas se encantam em fermentar o ócio

de tudo o que se move e ainda pulsa.

A vida só espera um pouco

nos meninos que soltam papagaios.

FLUXO

Sobre os  telhados, quase tudo passa

soprado feito folha para o esquecimento

júbilo e pesar, tristeza e gozo

a palavra nunca encontrada

para dizer à exaustão a dor que carregamos.

Só a possibilidade do amor não envelhece

porque atravessa o limo, desconhece o tempo

e tinge de encanto o que supomos morto.

FILOGENIA

Vestígio de avós, enigmas de renda

Colares de contas, bilros, bordados

Mar que se cruza, adivinhação.

Não sei fazer doce de espécie

Pago impostos, reclamo direitos

Não nasci em Itabira, mas luto com palavras

Não tive ouro, não tive gado, não tive fazendas

E, vez por outra, preciso ser dura, de mármore

Sensível ao mais ingênuo risco.

CRIADA

Na sala da repartição

a meu alcance uma caixa de clipes, processos em pilha

ofícios, relógios, olhar que flutua.

Se o chefe saísse, talvez um verso brejeiro entrasse pela porta

um verso gaiato, que me seduzisse logo no primeiro sopro

e fosse ganhando o papel com o pedantismo de sempre.

Mas o verso não entra, ao contrário, prefere espalhar-se

pelas bananeiras, pelos varais carregados de camisas cáquis dos vigias noturnos do bairro acinzentado visto da janela.

Vício que esse verso tem de me atormentar

para depois de muito persegui-lo, encantada e servil,

me ordenar que lhe dê vida.

KARIN KROGH (1972) poeta paulista, é formada em farmácia e fez mestrado e doutorado em biologia molecular na USP. Já viveu em Diamantina, São Luiz e Ribeirão Preto. Atualmente mora em São Paulo, tornou-se contadora de histórias e publicou seu primeiro livro infantil Dondila e Jurema (2014). Insídia (2016) é seu primeiro livro de poemas.

INFANTE

Aconteceu bem antes da Luciferase, quando o vagalume acendia a bunda e iluminava a infância;

aconteceu bem antes do arranjo A,C,T,G em dupla hélice, quando eu havia puxado os olhos do meu pai;

aconteceu bem antes do Rivotril, quando o coração acelerado era paixão escancarada;

aconteceu bem antes da bateria de Lithium, quando eu corria pelas ladeiras de Diamantina;

aconteceu bem antes do Protex, quando lavava as feridas com água e sal;

aconteceu bem antes do Prozac, quando permitia sentir a mornura das lágrimas.

POEMA DO ÚNICO DONO

O suor dedilha minhas costas.

Pequenas patas de besouro.

Débil na escalada

dos alpes de minhas nádegas,

ele retorna

e encontra suas mãos

sujas de tinta óleo.

Na inércia do pós-êxtase

seus cabelos de nanquim

formam caminhos

no travesseiro florido.

Sigo com os olhos

cada um deles

até encontrar

a paleta de cores

Seu corpo

A ARTE DO SUFODCAMENTO

Tomei posse do seu pescoço. Colar de palmos. Gargantilha de dedos. Hipertrofia dos meus bíceps na sua carne.  Rios e seus afluentes enchem de vermelho a sua esclerótica.  Agora é só minha luz na sua pupila. Atravessa o cristalino em impulsos eletroquímicos.  Somente minha imagem navega até suas células cerebrais. Nesta fração de segundo, sinto o tremor que me negou durante o gozo. Rigor mortis.

O TEU TRAVESSEIRO

A teia negra dos teus cabelos contrasta o branco da falta

O cheiro vencido do xampu se une as marcas rançosas de sua baba

Respiras pela boca como se quisesse engolir o mundo

Toca a maciez do algodão egípcio com seus ouvidos

como se ouvisse o detrás da porta

Marca o peso de tua cabeça carregada de fardos

O amarelo do teu suor abandona-se na antes alvura

Dorme o sono tranquilo da tarja preta com álcool.

 


Publicado por Rubens Jardim em 17/02/2017 às 01h38

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