Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
10/07/2007 00h13
EXERCÍCIO DE REVOLTA E AMOR
Era preciso que coubesse a um anjo, desses famosos e que possuem certidão passada em cartório do céu --a missãode emprestar um nome para você. Era preciso que coubesse a teus pais a escolha desse nome. Nada mais natural. E teus pais escolheram o nome de um anjo que possui vasta notoriedade : Gabriel. Afinal os anjos são luzes que não se apagam na escuridão. E os anjos, mesmo os terríveis, exercem funções luminosas e escapam de todos os limites. Os anjos não pagam impostos. Os anjos não tem cárie e nem vão ao dentista. Eles não são palpáveis --nem vendáveis, como a maioria dos homens. Os anjos não são raquíticos, nem decrépitos. Tampouco carnívoros ou medrosos. Os anjos são etéreos --e estéreis. Os anjos não se reproduzem como os animais. Ou como as pessoas. Nem como a xerox. Os anjos não julgam, nem desesperam. E circulam livres pelo mundo--sem passaportes. Os anjos não tem pátria. Não habitam portos. Nem se importam com posições ou poder. Por isso eles conservam um sigilo íntimo, ---não postiço-- que antecede a palavra industrializada. Talvez por isso eles não abram a boca nas conspirações. Nem nas convenções de condôminos. Aliás, eles não frequentam clubes, agremiações, partidos, igrejas. Em geral, são inimigos das leis, dos governos e das instituições estabelecidas. Alguém já viu um anjo passear devagar diante da esfinge --ou vestir-se com terno e gravata? Alguém já viu um anjo de celular ou fazendo check-in em aeroporto? Eles não suportam os estereótipos e ficam irritados ao servir de telhado de vidro para amenidades. Todo anjo tem horror ao lugar comum --e à vulgaridade. Os anjos são a pureza visceral que buscamos em nós. Eles são a palavra interna, a palavra que antecede a palavra, a palavra virgem recém nascida. E são também a nossa única possibilidade de integrar forma e conteúdo, música e silêncio, corpo e espírito. Eles conhecem a voz muda de Deus e sabem tudo da condição humana. Por isso eles não buscam o equilíbrio nas coisas. Seus indícios são claros: o sorriso, algumas espécies de extravio e o alerta máximo. Anjo não tem recalque, estandarte, memória. Anjo não faz terapia e vive sempre no presente: esse lugar único --do prazer e da dor. Anjo não tem passado, nem futuro. E não refuga, nem desperdiça nada: datas e coisas caladas. E em qualquer circunstância --de ficção ou fissura-- eles são a centelha, o relâmpago do puro pensamento e a surpresa súbita.
Por todas essas razões --mais ou menos aleatórias e contraditórias-- é que eu escrevi este texto para você, Gabriel, menino-anjo que presenciou o assassinato do pai e da mãe. Estou revoltado com tudo isso. Ainda assim, imploro a Deus --e a todos os deuses---para que você consiga superar essa tragédia. Transfiro-te a minha esperança, a minha fé e a minha revolta. Gabriel, não aceite a vida como ela é. Ou como ela está. A vida pode ser diferente.O mundo pode ser diferente. Mas para isso mudar é preciso compreender que nós somos os responsáveis por tudo que acontece. Não acredite na resignação -mas na luta. Não aceite a violência, nem a miséria. Revolte-se contra a impunidade e as desigualdades sociais. Busque construir a paz. Mas repita sempre com você mesmo: tudo depende de mim. E siga em frente com as únicas armas necessárias para as pequenas e as grandes transformações: a lucidez e a esperança.

Publicado por Rubens Jardim em 10/07/2007 às 00h13

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