Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
06/03/2017 19h03
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (88ª POSTAGEM)

TERESA VIGNOLI(19  ) poeta carioca, já morou em Sampa, em Brasília, e agora está em Campinas. É psicoterapeuta desde 1980. Já foi professor  e coordena oficinas de escrita criativa em encontros de psicologia, educação e criatividade. Integrante da geração mimeógrafo, década de 70, participou de diversas antologias ,Pega Gente e Po rretas

a vida

espera,

silente.

 

a vida

pede        

semente.

 

novas flores,

novos tempos,

urgente

 

POÉTICO PÓRTICO

O silêncio

espreita.

 

Espera

o som

 

de nossa verdadeira voz.

 

ASAS

tanto quanto

a folha,

a terra sonha.

 

tanto quanto

o pássaro,

a formiga voa.

 

SEMEADURAS

Não querer

o brilho de fora,

 

colher o trigo de ouro

que nasce

em campos vindouros.

 

Pois seja o futuro

o agora,

no brilho que vem de dentro,

na luz que anuncia

o vento,

na voz que sussurra a aurora.

 

Seremos um dia

um só povo

a semear só alentos,

a respirar novos pólens,

a tocar em toda Terra.

 

Todo braço

um só abraço

a enfeitar-se com flores

pra colheita de ternuras.

NORMA DE SOUZA LOPES(1971) poeta mineira,  autora do livro de poemas Borda (Patuá, 2014) . É professora em Belo Horizonte, fez pós-graduação em educação comunitária e pós-graduação em mídias na educação. Para ela . “escrever é essa costura cotidiana quando posso tecer e juntar as pontas soltas da memória.” Escreve no blogue Norma Din:

SACODE

mantenha escondidos

os círculos marrons

(dos bicos dos mamilos)

a fenda funda

(das nádegas)

não queremos ofender a honra da família mineira

 

pura que pariu

ser livre

é mais uma besteira

que inventaram para te fazer sofrer

seja aceita minha nêga

seja a seita

fundada por machos

que acham que mulher descoberta

foi feita para se abusar

 

ou não

 

ou abra com os dedos

os lábios da buceta

da buceta

como homem que sacode o saco

quando quer xingar

 

OUTRA ESTAÇÃO

no guichê

em letras garrafais

lê-se

ESTAÇÃO DA POESIA PÓS-MODERNA

a moça atrás do vidro anuncia

está atrasada,

senhora

sem bilhete,

não pode embarcar

perco o trem

 

parada na plataforma

o corpo trepida

o som das rodas

atritadas nos trilhos

afasta-se

ecoa entre o olho

e o artelho

signos tremem

 

em casa

aves noturnas

palavras

não me deixam dormir

na sala

um tear

fios de insônia

bilros para bordar

nova condução

outra estação

para lugar nenhum

 

MAMÃE TRAZIA LIXO NA BOLSA

às quatro e meia ela chegava

era gari

se a casa não estivesse limpa

apanhávamos

 

trazia lixo na bolsa

comida revista livro

se achasse cigarros fumava

se achasse terço rezava

 

mamãe foi a primeira ambientalista que conheci

 

A OLHO NU

nem morta volto

atrás

sem óculos coloridos

 

aquele passado

do chão do banheiro

da área de serviço

era esquisito

 

a olho nu

não há beleza

em ler

ou comer lixo

POLLYANNA FURTADO (1981) poeta paranaense, vive no Amazonas, formou-se em letras e especializou-se em linguística pela UFAM. Fez mestrado e é professora. Publicou os livros de poemas: Fractais e à margem da luz(2007), ABC da Floresta Amazônica, em parceria com Thiago de Mello.

SUBLIME

A multiplicidade de imagens polissêmicas

e aliterações não preenchem o  vácuo

da insignificância retórica de toda falácia

que preenche os espaços dos jornais e

revistas

as inúmeras notícias contidas e

contaminadas

nas entranhas da opinião pública

toda signifícância impregnada

de sofisma deliberado

mastigados e impulsionados

pelas ondas dos satélites

e a fugacidade das informações

que não compete com as limitações

do cérebro biológico

e a seletividade da memória humana

das pessoas que vivem em zonas

urbanas e não sabem o que fazer

com a caótica concatenação de imagens

e sons dos meios de comunicação.

 

A PRAÇA

Distribuição de indigentes

ignorados pela intransigência.

Ignota discrepância

de uma singular civilização.

Desmedidos, censurados em larga instância,

de uma força dividida, em dissipação.

Expressão desenganada e corrompida,

de um povo desiludido pela ganância.

No ácido da ferida,

absorvidos pela ânsia.

Jaz um grito:

dissolvam-se os parâmetros,

recomponha-se o veredicto.

 

NA PELE

Escrevendo na pele

o gosto da paixão,

deixei derramar no meu ser

muitos dos teus anseios.

Mergulhaste fundo,

minha boca entreaberta,

um refluxo selvagem.

Olhos de fenda,

minha ardente ilusão.

Envolvido pela ternura,

desperta-me deste sonhoi

de estar longe de ti

iluminando as trevas

dentro e fora de mim.

 

É MEU

Do outro lado de mim,

eu estou olhando.

Num espelho cindido,

meu rosto é múltiplo e dividido.

Do meu lado, eu não vejo.

Quem me vê é o Outro

que eu escondo.

E no encontro com imagens difusas,

o Outro não pode enxergar,

os seus olhos são virtuais

e eu tenho a ilusão de ser observada.

Eu não me vejo de imediato.

Vejo o outro de mim que é cindido

e é fingido e desmorona

a cada dia.

Caiu um pedaço do eu

que é louco.

Peguei o inverso desta parte

e colei

e deixei que os outros pedaços

se juntassem sozinhos,

sem desprezo em remontar

as imagens do abismo.

 

ÁDYLA MACIEL (1994) - poeta brasiliense, é microcroempresaria, produtora cultural e autora de dois livros  Amin e os livros mágicos e Andar de passarinho. Também organizou a coletânea VOZ -poesia falada livro com a participação de 15 escritores de Brasília.

VENTO DE AGOSTO

A bruxa improvável que sou.

Voa na fé de mim mesma

Dirigindo numa vassoura

A 200 kilometros por hora

Se eu disser que vai chover

A chuva cai.

Se eu disse que vai nevar

Se prepare para congelar

Eu conheço bem o céu.

E as minhas turbulências

E antes de lutar com os inimigos

Me primavero inteira

Dou uma surra de pétalas

Em quem não tiver perfume.

Não sou anjo nem barata

E vou voar assim mesmo

Fora da asa.

 

REALIDADE

Já amanheceu, vejo o sol pelo buraco da fechadura

Mas não arrisco ver o dia de perto

Abro a janela, e amarro as cortinas

Meu quarto é o melhor lugar do mundo!

Lá fora pode não ser tão ruim

Mas o que eu vejo da janela do meu quarto

Não é um sol no horizonte

É um cenário ficcional

Um carro capotado no gramado do congresso nacional

Jovem e idoso assassinados  na Ceilandia

Crianças pedindo esmola por todas as bandas

O que eu vejo da janela do meu quarto?

óleos e poluentes vindo do Palácio do Planalto

carnaval, sujeira, futebol, samba

Bandidos fazendo famílias refém no Gama

Adolescentes dando rolezinhos

E mergulhando na falta de futuro

Sem foco, na estrada sem caminho

Os motivadores estão de greve

E ninguém quer lutar

Com medo de quebrar as pernas.

Cadê aqueles que acreditam nas pessoas da quebrada

Nas senhoras das favelas...

Sou uma criança de colo

O que pode me acontecer lá fora?

Em Sobradinho BR020 caminhão capota

Pessoas se afogam no viaduto da cidade

Já amanheceu e tenho medo de acordar

O que pode acontecer aqui dentro?

Abro a porta, amarro as cortinas

E com minhas luvas de boxe, entro na neblina.

 

ESP-HERANÇA

O que nos acende e o que nos apaga

São os nossos desejos e ideologias

Ninguém está preparado pra nascer

 

Ninguém conhece o real segredo

Do mistério indecifrável de nossa existência.

Existe uma lei natural e inatingível

 

Mas se nesse momento você tiver audição

Pare e ouça o assovio do vento

É o cosmo paquerando sua vibração

 

Pega aquela concha antiga

Pega aquela concha e põe perto do ouvido

E Escuta o barulho do mar

 

O barulho do mar não é um barulho

É um código, um dialeto.

Como as cordas vocais dos elefantes

 

Comunique-se com o sol, com o vento

Dance com as árvores

Seja o que você quiser !

 

E quando sua carne apodrecer e desaparecer

Feito um gambá atropelado na estrada

Entregue sua caixinha de segredos para a humanidade

 

Lições, um punhado de amor, um legado de poesia e paz

Quando morreres não se esqueça de ser eterno

Eternize suas ideias influencie gerações

 

Como Drummond e Dumont voe em sua própria criação

Comunique-se com as ondas,

porque até a morte tem algo a nos dizer.

 

CHUVA DE RATOS

Não sei se sobreviverei a essa chuva de ratos.

Hoje levantei um guarda roupa com as mãos.

Mudei meu sofá de lugar.

Ontem a noite caí do beliche.

Depois acordei na minha cama de casal vazia.

Não sei se sobreviverei a essa chuva de ratos!

Minha crise existencial é de uma delicadeza que dá nojo.

E ninguém quer saber de delicadezas.

E eu não gosto de palavras amontoados no lixo.

Gosto de selecioná-las dentro de mim.

Como quem cata os melhores feijões.

Seleciono as melhores maçãs no pomar.

E de tanto andar...

Meus pés estão cremosos e sinto que pisei na lama.

Não posso entrar no palácio com os pés sujos.

E no laboratório da vida, me deparei com ratos de todas as espécies.

Ratazanas e camundongos caindo do céu.

E no escuro eu procuro o veneno para jogar no ninho das pragas.

Como se fosse um pingo de água, senti o primeiro animal cair no meu rosto.

E não sei como reagir ao chuvisco que já vem.

Tenho mais que uma pedra no caminho.

Perdi a chave de casa e tenho que enfrentar a chuva de ratos.

Estou no relento.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 06/03/2017 às 19h03
 
17/02/2017 01h38
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA(87 POSTAGEM)

ESTHER PROENÇA SOARES (1929) poeta paulistana, é formada em letras. Graduou-se também em artes cênicas na ECA e freqüentou aulas de dança com Klauss Vianna, Maria Duschenes e Ivaldo Bertazzo. Já trabalhou como arte-educadora, professora de etiqueta e expressão corporal. Seu primeiro livro de poemas, Disco de Cartolina foi publicado em dezembro de 2016.

ALGORITMO

Eu sou a soma do que sou

mais o que não sou

aniquila-me o deserto entre o meu ser

e o meu não ser emparedado.

 

É imensa a minha sede

mas o cantil está furado

 

RECEITA

Para fazer um poema

não basta empilhar versos

resgatar um sentimento

ou lamento

 

Para fazer um poema

seduzo incoerências

o jogo de sombra e luz

cadência

desarmonia

malemolência das rimas

o verso longo e o curto

ritmo e melodia

 

Para fazer um poema

invoco transgressões

abraço o caos das palavras

o desafio das formas

ebulição visceral

me paramento

provoco o sequestro da  alma

em seminal quietude

e o menos que é mais

e o demais que é essência

é chuva sideral

Fazer um poema

é epifania

trabalho

transpiração

velas acesas

estado de graça

braços, abraços

 

Fazer um poema

é celebração

DOIS TONS

Há luzes sempre acesas em quartos de hospitais

e choros tristes de crianças dentro da noite

--bem sei

Há putas tristes debaixo de lampiões

e poetas famintos aos pés delas

--bem sei

Há cânceres minando fígados e mentes

e cárceres formando mentes dementes

--bem sei

mas nada é mais triste agora

do que esta negra madrugada

entre as quatro paredes brancas do meu quarto

BÁLSAMO

Eu ando agora a cultivar poemas

palavras lindas que me assaltam com doçura

Mesmo cruéis trazem o som da realidade

me envolvem com ternura

 

Eu faço amor com elas e engravido-as

fazemos filhos puros e amorosos, imaculados versos

que me devolvem o passado envolto em fantasia

quando os releio

 

Sinto que a barca se aproxima

e a Amiga me convida cantando docemente

voz de sereia que me embala

e cala minhas dores e saudades

 

Preparo-me tranqüila

e enquanto ela não chega e eu não embarco

escrevo estes poemas

estas falas de amor e gratidão

 

Enquanto há vida nos meus tempos e momentos

me aninho nas palavras das poesias

nos poetas que um dia me encantaram

e ainda calam minhas dores e tristezas

 

Vocês, o’ meus amados,

sempre ao meu lado,

abençoados são

e serão sempre.

ESMERALDA RIBEIRO (1958 ) poeta paulistana, é escritora afro-brasileira, jornalista e faz parte do Quilombhoje desde 1982. Tem atuado nos movimentos de combate ao racismo e na construção de uma literatura Negra. Publicou poemas na revista Cadernos Negros.

VOZES-MULHERES

A voz da minha bisavó ecoou

criança

nos porões do navio.

Ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem- o hoje- o agora.

Na voz de minha filha

Se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

E AGORA NOSSA GUERREIRA

                                      Em memória da tia Vanda Lopes dos Santos

Quem

em sã rebeldia

tira a máscara esculpida na

ilusão de ser outro e

não ser ninguém

 

Quem

em sã consciência

joga fora o veneno guardado no

pote da vida, sem derramar uma

gota no copo da gente

 

Quem

inteira, completa

deixa a poção afrodisíaca

untar o céu dos lábios

sem medo de heresias

 

Agora mãinha

quem olha no olho da noite

à procura dos filhos

como as mães da Praça de Maio

No apogeu da madrugada

 

os frutos do exemplo são verdes

na hora da solidão a gente te

aguarda no portão

 

Ninguém

vai pra Bahia

desfazer a nossa desunião

nem vai a roça cultivar

a nossa cor

 

E agora

Ekédi de Oxalá

quem enxuga o nosso rosto

quem ampara o nosso tombo

quem vem nos

abraçar.

OLHAR NEGRO

Naufragam fragmentos

de mim

sob o poente

mas,

vou me recompondo

com o Sol

nascente,

 

Tem

Pe

Da

Ços

 

mas,

diante da vítrea lâmina

do espelho,

vou

refazendo em mim

o que é belo

 

Naufragam fragmentos

de mim

na coca

mas, junto os cacos, reinvento

sinto o perfume

de um novo tempo,

 

Fragmentos

de mim

diluem-se na cachaça

mas,

pouco a pouco,

me refaço e me afasto

do danoso líquido

venenoso

 

Tem

Pe

Da

Ços

 

tem

empilhados nas prisões,

mas

vou determinando

meus passos para sair

dos porões

 

 tem

fragmentos

no feminismo procurando

meu próprio olhar,

mas vou seguindo

com a certeza de sempre ser

mulher

 

Tem

Pe

Da

Ços

 

Mas

não desisto

vou

atravessando o meu oceano

vou

navegando

vou

buscando meu

olhar negro

perdido no azul do tempo

vou

vôo

ENSINAMENTOS

ser invisível quando não se quer ser

é ser mágico nato

 

não se ensina, não se pratica, mas se aprende

no primeiro dia de aula aprende-se

que é uma ciência exata

 

o invisível exercita o ser “zero à esquerda”

o invisível não exercita cidadania

as aulas de emprego, casa e comida

são excluídas do currículo da vida

 

ser invisível quando não se quer ser

é ser um fantasma que não assusta ninguém

quando se é invisível sem querer

ninguém conta até dez

ninguém tapa ou fecha os olhos

a brincadeira agora é outra

os outros brincam de não nos ver

 

saiba que nos tornamos invisíveis

sem truques, sem mágicas,

ser invisível é uma ciência exata

mas o invisível é visto no mundo financeiro

é visto para apanhar da polícia

é visto na época das eleições

é visto para acertar as contas com o leão

para pagar prestações e mais prestações

é tanto zero à esquerda que o invisível

na levada da vida soma-se

a outros tantos zeros à esquerda

para assim construir-se humano.

LENITA ESTRELA DE SÁ(19  ) poeta maranhense, é graduada em letras e direito, com pós-graduação em linguística aplicada ao ensino de línguas materna e estrangeira. É também romancista, contista, dramaturga e roteirista. Publicou varios livros premiados. Em poesia, o último foi Pincelada de Dalí e outros poemas(2015) Prêmio Sousândrade.

SOBRADO DA RUA DO TRAPICHE

Nem o musgo é capaz de trespassar a angústia

que os cômodos vazios exalam

ou mesmo as roupas penduradas na sacada

disputando luz com insetos e lamúrias.

Ali as horas se encantam em fermentar o ócio

de tudo o que se move e ainda pulsa.

A vida só espera um pouco

nos meninos que soltam papagaios.

FLUXO

Sobre os  telhados, quase tudo passa

soprado feito folha para o esquecimento

júbilo e pesar, tristeza e gozo

a palavra nunca encontrada

para dizer à exaustão a dor que carregamos.

Só a possibilidade do amor não envelhece

porque atravessa o limo, desconhece o tempo

e tinge de encanto o que supomos morto.

FILOGENIA

Vestígio de avós, enigmas de renda

Colares de contas, bilros, bordados

Mar que se cruza, adivinhação.

Não sei fazer doce de espécie

Pago impostos, reclamo direitos

Não nasci em Itabira, mas luto com palavras

Não tive ouro, não tive gado, não tive fazendas

E, vez por outra, preciso ser dura, de mármore

Sensível ao mais ingênuo risco.

CRIADA

Na sala da repartição

a meu alcance uma caixa de clipes, processos em pilha

ofícios, relógios, olhar que flutua.

Se o chefe saísse, talvez um verso brejeiro entrasse pela porta

um verso gaiato, que me seduzisse logo no primeiro sopro

e fosse ganhando o papel com o pedantismo de sempre.

Mas o verso não entra, ao contrário, prefere espalhar-se

pelas bananeiras, pelos varais carregados de camisas cáquis dos vigias noturnos do bairro acinzentado visto da janela.

Vício que esse verso tem de me atormentar

para depois de muito persegui-lo, encantada e servil,

me ordenar que lhe dê vida.

KARIN KROGH (1972) poeta paulista, é formada em farmácia e fez mestrado e doutorado em biologia molecular na USP. Já viveu em Diamantina, São Luiz e Ribeirão Preto. Atualmente mora em São Paulo, tornou-se contadora de histórias e publicou seu primeiro livro infantil Dondila e Jurema (2014). Insídia (2016) é seu primeiro livro de poemas.

INFANTE

Aconteceu bem antes da Luciferase, quando o vagalume acendia a bunda e iluminava a infância;

aconteceu bem antes do arranjo A,C,T,G em dupla hélice, quando eu havia puxado os olhos do meu pai;

aconteceu bem antes do Rivotril, quando o coração acelerado era paixão escancarada;

aconteceu bem antes da bateria de Lithium, quando eu corria pelas ladeiras de Diamantina;

aconteceu bem antes do Protex, quando lavava as feridas com água e sal;

aconteceu bem antes do Prozac, quando permitia sentir a mornura das lágrimas.

POEMA DO ÚNICO DONO

O suor dedilha minhas costas.

Pequenas patas de besouro.

Débil na escalada

dos alpes de minhas nádegas,

ele retorna

e encontra suas mãos

sujas de tinta óleo.

Na inércia do pós-êxtase

seus cabelos de nanquim

formam caminhos

no travesseiro florido.

Sigo com os olhos

cada um deles

até encontrar

a paleta de cores

Seu corpo

A ARTE DO SUFODCAMENTO

Tomei posse do seu pescoço. Colar de palmos. Gargantilha de dedos. Hipertrofia dos meus bíceps na sua carne.  Rios e seus afluentes enchem de vermelho a sua esclerótica.  Agora é só minha luz na sua pupila. Atravessa o cristalino em impulsos eletroquímicos.  Somente minha imagem navega até suas células cerebrais. Nesta fração de segundo, sinto o tremor que me negou durante o gozo. Rigor mortis.

O TEU TRAVESSEIRO

A teia negra dos teus cabelos contrasta o branco da falta

O cheiro vencido do xampu se une as marcas rançosas de sua baba

Respiras pela boca como se quisesse engolir o mundo

Toca a maciez do algodão egípcio com seus ouvidos

como se ouvisse o detrás da porta

Marca o peso de tua cabeça carregada de fardos

O amarelo do teu suor abandona-se na antes alvura

Dorme o sono tranquilo da tarja preta com álcool.

 


Publicado por Rubens Jardim em 17/02/2017 às 01h38
 
24/01/2017 23h38
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (86ª POSTAGEM)

ELISANGELA BRAGHINI (1972) poeta paranaense, nascida em Brasilândia do Sul, é formada em direito e advoga há mais de 20 anos. Já morou em Ariquemes (Rondônia),Maringá, Curitiba e atualmente vive em João Pessoa. Fez pós-graduação na ESMAT 13, Escola Superior da Magistratura Trabalhista da Paraíba. 

DESPEJO

Dissipo-me dos trajes

que ontem usei no circo

Meu humor mudou-se

com eles

 

fora de mim

não minto

nem faço rir

enxergo a nudez apática

que soa sátira

mas é dor

 

Limpando a falsa lágrima

maquiadamente escrevo

livro-me

em público -

entre as capas

entre aspas

que não me contém

 

andando leio

o livro

com outra face

 

enquanto aguardo - absolvo-me

no cálice e não calo - o poeta livre

andar errante educadamente

a arder-me os olhos

queimar-me a pele

cremar-me a carne

incinerar-me os ossos a pó

 

calcificar-me em lava

ou lavrar-me após a chuva ácida

as páginas em branco

 

LAPIDANDO

Esse homem virgem

às vezes me sorri em verso

Devorando-me em vertigem

 

No novo universo

em voo liberto

como sempre quis

sussurro em meu canto!

 

Em tudo o que diz

Mina raro o amor

em inesgotável fonte

um lapidado diamante...

 

Ele, intransigente

Intransitivo

Indireto verbo

de um tempo que não existe:

Deixa passar!

Deixa pra depois!

Espera o olhar

por nós dois...

 

PORTA-RETRATO

Ao amor não assiste perguntas ou respostas

 

de joelhos agradeço

mendigo palavras

que auroram poesia

 

engasga-se

revelando-me o futuro

seu silêncio místico...

 

linguagem de sinais copio incompreendido

nas mensagens o socorro

garrafas lançadas ao mar

naves sem rumo

 

em desconhecidas órbitas

sigo (estrelas que não existem)

 

enquanto a ampulheta traga

o deserto de rosas

 

na praia

o milagre do tempo espero

sem medo

revolto o mar

navego

 

repousa tranquilo

em meu colo

autorretrato

vitrificado

o desejo explícito

seu olhar salgado

 

COMBATES

Travo guerras amorfas

não sangram jornais

antes rasgam palavras

 

silenciadas

distantes telas

bloqueio - as

pálpebras no cristal

 

óleo de peroba

derrete-se nas caras

de pau

nas peles - arranco

dos cordeiros

que uivam - verão

aquecem meu inverno

 

Crio nos amores que invento

belos/deliciosos/sevados

os sirvo

à ceia que sacia

 

digiro-os enquanto sonho

à aurora

descarto-os

na descarga

 

doida raiz

aprisiona-me

refém do silêncio

abusa-me!

JULIANNA MOTTER (19  ) poeta brasiliense, é jornalista e estudante de filosofia. Colabora com os sites Entre-Vistas, Homo Literatus e também participa do coletivo de poetas Ex-estranhos. Mantém desde 2007, o blog http://comascartasnamesa.blogspot.com. Publicou o livro de poemas De carne e concreto (20  ).

3

Foi bom

e foi lindo

desejei eterno

foi suave

então pesou

e revelou-se findo.

Finalmente,

te esqueci.

Antes tarde

do que nunca.

O precisar esquecer

é um relembrar

constante.

Mas se antes arde,

depois nunca

17

fica um borrão

uma lembrança

os resquícios

uma fotografia

desfeita em pó

de um gosto bom

fica a caneca

a xícara

o copo

que seja

um objeto ainda quente

como um espaço

uns lençóis suados

na cama

o cheiro

nos lábios

entre os dentes

pintado na língua

na ponta dos dedos

a presença

feita ausência

de um amor

requentado

que nem café

 

POESIA URBANA

te reconheço na rua

te recomeço na cama

A CURA DURA DURARÁ

ser presença

onde a ausência

te emudeceu

 

abraço apertado na noite fria

abraço calado na cama vazia

 

silêncio

e pó

 

silêncio

e só

 

juntos justos

tão apertados

que é preciso

prender o ar

para caber

que é preciso

ficar sem ar

para soltar

 

ser colo

ser céu

e ser seu

 

ser chão

onde os pés

lhe faltarão

 

a cura

dura

durará

 

a carne

fraca

nos sustentará

CARINA CARVALHO(1989) poeta paulistana, participou da antologia poética É que os hussardos chegam hoje (2014) Seus textos estão em algumas revistas digitais . Publicou seu primeiro livro de poemas Marambaia em 2013 e foi uma das selecionadas na categoria de poesia do II Prêmio Ufes de Literatura (Edufes, 2014)

O PORO A PELE

antigo afeto que lhe ofereça

toques moles,

comedimento nas conversas,

um afago cru

.

mas não,

jamais quis morar em peito tão vago e sem janelas abertas

fazer barulho raspando o fundo

levar do doce o que lhe é mais íntimo;

degustá-lo nu

DO ESPANTO

esquecer conceitos num branco total:

do que falas é o que menos escuto

só me fixo em ignorância e sorrio, sorrio

 

[havia uma canoa de carcaça gasta à margem, um cão cinzento ao lado de sua base e vários mosquitinhos fazendo dança acima do focinho pintado. ele farejava o camarão, mas os grandes olhos mantinham-se vidrados na ronda de insetos pairando]

 

os grandes olhos...

os teus são miúdos, tão escuros

 

espantada percebo que perdi o discurso

e te sorrio de novo para prosseguir caçando

pérolas aos poucos

........................................................................

diz o musgo: nunca, nunca se arrisque em trilhas

isso de cutucar vespeiros vai empolar tua vida na volta

 

ir falando (muito eloquente) de litorais, espantar moscas

com as braçadas mais notáveis

e cuidar

para não chorar baixinho a ardência da pele quando cair a noite

 

um minuto que fraquejei

e me botaram num escafandro sem espaço pros braços

QUE PERMEIA UM CASULO

a casa é que estala

tardes longas de azul pálido

na mudez do corpo

estendidas – as tardes –

num varal que zumbe, por exemplo,

o som vago da carne,

desse pouco

que é o corpo.

que é o corpo?

.

outro dia uma movimentação tão fluida escorria

(não estalava nem estendia),

escorria uma movimentação tão fluida outro dia,

que, meu amor, o sentido de tanta moradia não escapou

por pouco

KAREN DEBÉRTOLIS (19  ) poeta paranaense, escritora, jornalista e performer. Gravou o cd de poesia “A Mulher das palavras” (2009) que deu origem a um espetáculo que tem circulado desde 2009 por vários espaços púbicos. Publicou: Guardados(2003) A Estalagem das Almas (2006) e Prosa de Palavras (2012).

a falsidade causa transtornos indesejáveis

a falsidade causa acidez no estômago

a falsidade causa um rombo na alma

a falsidade causa calafrios de assombro

a falsidade é desonesta

a falsidade é a antítese do amor

a falsidade é muito mais que o ódio

a falsidade, cheia de empáfia, vaga pelas ruas

a falsidade, arrogante, abarrota os auditórios

a falsidade, ignorante, disfarça-se com seu pince-nez

a falsidade, amável e sedutora, deita-se ao seu lado

a falsidade, chama pelo seu nome e dorme o sono dos justos

DESAPARECIDO

sou o seu duplo

o invisível

nos escombros do self

a sombra por detrás dos espelhos

o desapercebido que passa como um vulto

uma sensação apenas

um frio na espinha

 

silenciosamente

 

esgueira-se pelas beiradas

confunde-se com os restos de papelão

em frente às lojas de departamento

recosta-se nas colunas das marquises

com medo e frio

e observa o mundo

com a lucidez da realidade

 

solitariamente

 

ALICE E O ESPELHO

Ontem

de manhã

quebrei o espelho

e Alice

foi embora

pelo vão da árvore

como não era de costume

e antes

que sem Alice

eu me acostume

disse

hoje

de manhã

não compro outro espelho

 

TRATADO SOBRE O SILÊNCIO

O silêncio dói muito mais na pele do inimigo que o grito.

Pousa, assim, cálido, como uma resposta sem pontuação.

Deita suave nas concavidades do ouvido.

Desconserta.

Hospeda pulgas atrás da orelha.

Arma afiada

Toque lancinante

Estratégia zen

Linguagem dos deuses da arte da guerra


Publicado por Rubens Jardim em 24/01/2017 às 23h38
 
19/12/2016 20h48
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (85ª POSTAGEM)

RAQUEL GAIO(19  ) poeta carioca, é atriz,  bacharel em letras e performer. Em 2011 lançou o livro de poemas O Exercício no Mundo com Luis Alexandre Louzada e Denise Fraga. Foi publicada nas revistas Um Conto, Diversos Afins, Estrelas Vagabundas e Zebra, estas duas últimas  pela UFRJ.

eu, novamente,

preparo o café da manhã

enquanto você arranca meus cílios.

vou me desfiando

falando pra você não correr assim tão depressa

sobre o meu deslize.

você ignora meus ruídos

e arranca uma flor do meu ventre.

 

(-você não ouve minhas pernas-

e seu jejum rapta meu sono)

 

Tenho nas manhãs em que passo com você,

uma imprecisão na medida do café.

..................................................................................................................

tem um rinoceronte no meu pátio que me flameja toda noite

 

não há metáfora que sustente meu quadril

dolo encardido que ensurdece os ossos como uma mancha.

tenho entre os dedos um crucifixo pagão

que me faz sangrar como eu sempre quis.

novena que entorpece.

 

as horas no meu corpo são como escombros,

altares perdidos no oceano.

..................................................................................................................

como uma faca que abre a manhã

tenho os órgãos completos de anoitecimentos.

borboletas jantam minha boca espessa

e me abrem com pedidos graves.

 

inauguro leitos e esquinas

e guardo no sutiã

um discurso escuro.

meus seios se esgarçam

se esquivando do cheiro que ficou encarnado,

mas encontram quinas.

então o músculo a noite

escorre como grade nas palavras

que parecem ter a potências das pedras.

 

recosturo o mamilo com a mesma faca

que abre a manhã

e a reinvento flor fome demência

e me danço e me acho no dentro

de uma borboleta ensopada

..................................................................................................................

o odor entre minhas pernas ,

meu diálogo mais esquizofrênico,

denuncia minhas velhas pegadas.

uma alcova fertilizando promessas

uma altura encardindo meus excessos .

o óleo que produzo rasga minha língua

e mancha a memória dos meus tornozelos.

ando manca pelas redomas de tua igreja,

pelas profecias atônitas de uma virgem.

o sangue que me jorra

me reduz a um beijo pontiagudo.

escombros em precipício.

carne que não envelhece.

teu tempo é grave

e minhas pernas querem deter tua fuga.

nuvem cigana.

alçar voos de serpente

lambuzar esse fingido diálogo

beber nosso líquido numa catedral sem deuses.

 

costura de uma noite pagã.

 

MICHELLE C BUSS (19   ) poeta gaúcha, nascida em Jaguari, interior do Rio Grande do Sul, vive em Porto Alegre desde 2007. É graduada em comunicação social pela PUCRS e atualmente faz o curso de letras na UFRGS. Começou a escrever poemas ainda quando criança. Publicou os livros Mosaicos (2014) e Sal, topázio e mercúrio ( 2015)

Há coisas que não

cabem em um poema:

a suave ondulação

que se desenha

na superfície da água

quando a cigarra

gentil

se molha.

...................................................................................

Percorro
entre a bruma que se expande
que se mistura às pedras
e ao som de cascas de árvores que sussurram
os arcanos do tempo e da memória.

A floresta me abraça e se fecha em verde,
penumbra e madrugada.
Há uma lua pingando prata na noite
e um sol além da noite rotacionando a vida que
se constela em um dos braços do universo.

Percorro
não horas,
mas batimentos cardíacos.

Pã toca ao longe sua flauta
soprando melodias carregadas
no bico de um melro.

Há tanta terra
quanto céu.

Mais fundo na floresta
meus pés marcam o seu corpo.
Reconhecimento de DNAs,
eu com a floresta,
a floresta com o Eu.

Percorro
não tão noite,
não ainda dia.
Adentro a bruma
e eu sou a bruma.

Percorro
o além
aquilo que não conheço.

A água pulsa
a língua palpita
e minhas pegadas
são um alfabeto de vida e jornada.

Percorro
adentro mais a floresta
minha estrada sou eu
e a própria floresta em mim.

.......................................................................

Quando os doze livros

forem escritos

vinte e duas de minhas vidas serão mortas.

E a força titânica

que me prende a roda romperá.

Eu serei fagulha dourada,

leve entre constelações

o céu, azul profundo,

molhará minhas mãos

e pintará meu rosto.

Conexões e fluxos.

As mãos da tecelã divina

voltarão.

Silenciarei

Serei silêncio

Energia cálida que pulsa

ascende

essência.

BALADA DAS DUAS DA MANHÃ

entre eu e você

já nasci estragada

estrela contrária

madrepérola de sal

havana capitalizada

 

não importa o que eu faça

o que mude

ou a música que cante

pra você

algo

sempre falta em mim

 

cafe moído com açucar demais

o certo na hora errada

grão de milho extraviado na caatinga

muito sono pra pouca noite

a verdade que ainda não é verdade

coração que não bate amor

 

não importa

o que eu faço

o que eu sou

 

nunca boa o suficiente

suficientemente desamada

desarmada

entre sorrisos bobos

amanhecendo longe...

 

longe

não

importa

JÚLIA DE CARVALHO HANSEN(1984) poeta paulistana, graduou-se em letras pela USP e é mestre em estudos portugueses pela Universidade nova de Lisboa. Seu primeiro livro , Cantos de Estima, (2009) teve duas edições de materiais, tamanhos e tiragens diferentes. Publicou também Alforria Blues ou Poemas do Destino do Mar,(2013 ) e O túnel e o acordeom (2013)

Temes a noite onde os nomes não se registram nos radares

e as palavras como joelhos afastados pela mão de outro

são caixas-pretas boiando no mais marinho dos oceanos.

 

Um avião cruza os ares em direção a um batizado.

É o seu eco que cola as sílabas umas as outras

rejuntes de significado, amálgamas do esquecimento.

 

Se só pensas em assentar as mais corretas, maneiras

de permanecer, feito cal, espalhado pelas espáduas

trêmulo cimentado teu coração, um canteiro de plantio

para as alfaces – soníferas e insípidas – do cotidiano.

De ti, só poderei aceitar atrelar-me, como um mexilhão.

 

Agora sou na tua rocha. E de mim se aproxima outro,

que os passageiros não alcançarão. Age antes de querer

com todos os olhos de quem nunca tinha tocado bivalves

sem enciclopédia ou Discovery Channel

feito um miúdo se maravilha, ama as pérolas,

sabe bem mastigá-las com os dentes até parti-las.

 

Como eu, um dia, também contigo, tentei.

POEMA DO DESTINO DO MAR

Acordei em Lisboa com o barulho de abrirem

um lençol molhado no céu

e tentavam arrastar as colinas para o rio.

Ao meu lado desenhavas

as linhas de um mar apavorado

mas grande demais para fugir.

 

Guardo junto a outros. Tudo o que me importa.

Há uma caixa ali, do lado esquerdo de quem está comigo,

onde estão aos quantos instantes iguais

gravados nas milhares de fotografias

digitais pelos turistas no mundo agora

e eu. Tão madura, tão rude, inconstante

cinqüenta mil doçuras que te apavoram

cinqüenta mais cinqüenta mil e duas paisagens com uma pessoa em frente

ícone, um totem do igual

queimado pelo vermelho do sol.

 

Ou que quer dizer isso?

Esse lugar que desaparece com uma chuva-fria

os quatro dias dados aos combatentes do entretenimento

seus pés que incham, desacostumados a andar e

clicam. Para a tia que ainda existe, uma empregada atenta

tua mão distraidamente na varanda da minha mão.

Como o vento grava em uma roupa

um alvo é só um vulto. Que quer dizer isso?

Um beijo dado

mais tarde.

..........................................................................................................

Tenho sido entregue

às mais escuras

das noites mudas.

Que posso eu?

No entre desses espinhos?

Ando tão baixo

quanto as formigas

mas se arbusto não sou

por que tenho vivido

eu coberta de espinhos?

Da queda fez-se um ninho

maceradas folhas de sombra

abrigam o meu corpo.

É o esquecimento da terra.

Mas por que, por que

vesti-me de espinhos?

Si soy el temblor, o lugar

onde o trovão diz

EU é o meu peito

alargado.

..................................................................................................................

tá, me deixa mas

vou te falar uma coisa bem sincera

já que o nosso amor

vem de outra era

a baliza desta é a espera

tá bom o vínculo deixa 

eu te dizer

vou ser bem sincera

não, não é a primavera

eu ligada assim em você

é que não existe mais

nesta esfera o que eu procure

de nós dois nada nada a temer

não tema

que ainda sobre que ainda falte que ainda haja o que dizer que ainda

se elabore o ainda

a minha fera

é tigrada fingida

a minha bala migrada

eu atingida

sou um espelho que se espelha em cacos de um espelho espelhado

migrarei para dentro do espelho

e vou renascer em lago

eu não consigo te dizer o que estou procurando dizer

em ti

um alicate uma tesoura um nunca mais 

por favor não diz nada que me meta objetivamente numa coisa objetiva o objetivo o objeto o obtido o bocejo

sim eu estou por todo o lado e por todos os lados eu estou sem você

BÁRBARA BENTO(1993) poeta alagoana, é formada em magistério e é bacharel em serviço social pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente publica periodicamente na revista Alagunas e em sua página do facebook que tem por título Doce Intuição de Vênus. Vive em União dos Palmares, terra natal de Jorge de Lima e de Zumbi.

O SILÊNCIO

O silêncio é a descoberta,

O silêncio é um corte,

O silêncio é uma ferida aberta

É a afta na ponta da língua,

É o veneno guardado na cauda,

É o passo sorrateiro,

É uma garganta inflamada

É o afago do incompreensível,

É a agonia do doente,

É a paz pra muita gente,

É a rebeldia na tortura,

É um coágulo no corpo,

É a inibição da tolice,

É a resposta inteligente,

É o medo da mesmice,

É o ápice da coerência,

É a falta de vontade

É o alarme pra desgraça

É a armada da usura,

É quem mais diz quando não fala.

PALAVRÃO

A palavra é uma dor no nervo ciático,

É um tiro de raspão,

Que fere, mas não mata

A palavra é hepática,

Causa pena e comoção,

É um pensamento ricocheteado,

Que cai na boca do mundo

Ora como riso, ora como choro

A palavra é dona do próprio nariz

E sai agalopada de um coração venenoso

Mas no último suspiro é só ela que salva,

Ainda bem que os mudos também falam.

Palavra é um desejo despercebido,

um sentimento desavisado,

É um cisto que precisa ser retirado,

senão incomoda,

que nem cisco em lente de contato.

INVERNO

Na vida, o risco

Na boca o grito

No olho, um cisco

No quarto, suspiro

A noite, chuvisco.

CORPO VIOLADO

A letra morta

A voz,

Atroz,

Feroz

E o gosto embebecido

A mosca que voa frenética,

A ferida enrijecida

O cheiro desavisado

Os passos de bota

O sangue vivo

A carne exposta

Bate com força e mata

As esperanças

As paredes

A lâmina em vermelho vivo

Como os lábios escarlates

E a lingerie violada

Tem cera de vela na mesa

E no chão a moça morta.


Publicado por Rubens Jardim em 19/12/2016 às 20h48
 
29/11/2016 00h57
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (84ª POSTAGEM)

KÁTIA BENTO (1941) poeta capixaba, cursou enfermagem no Rio e fez parte do grupo AdVersos até meados de 1972. Participou da antologia Las Voces Solidárias, Buenos Aires (1978) e conquistou destaque com vários poemas-postais. Publicou: O azul das montanhas ao longe(1968), Principalmente Etc(1972), Contrafala(1980) e Romanceiro de Amuia(1980).

NOSSA SENHORA DA TELEVISÃO

Esta imagem

entronizada na sala

manda que cales.

 

Com sortilégios

lança quebrantos -

luzes que tonto

comes e bebes.

 

Ela decide

teus gestos, dita

o prato do dia -

te veste e doma

 

:esta imagem fria

da redoma.

 

LINHA DA VIDA

A vida se desenrola

no dia a dia entre os dedos -

meada frágil/arisca

fio

que mal contido/à mão

se solta/esvoaça.

 

Então se converte em calos

o ato de reavê-la -

dias a fio enrolá-la,

fina linha em carretel.

Retê-la, no incessante

gesto que vinca a pele.

 

Então se converte em luta

o jogo de atar à palma

da mão,

a linha da vida -

entre a tatuagem do corpo

e o sopro vário do vento.

 

VERBO SONEGAR

Na declaração de bens ninguém

conta a árvore que tem.

 

No imposto de cada ano

se escreve a casa, o terreno.

 

mas fica em claro o espaço

da flora que não se declara -

 

omissa a linha vaga

da árvore que se sonega.

 

Na folha do documento

não se lê flor galho tronco -

 

o amorável bem imóvel

se oculta em silêncio e trinco.

 

Homem de bem, ninguém,

ao fisco, preto no branco,

 

põe esse verde a limpo.

 

O VENTILADOR

Com todas as letras

espalha-se o vento.

 

e se pronuncia

sutil movimento

 

:cabelos flutuam

papéis esvoaçam

 

as coisas em leque

dançam no espaço

 

Mas vem uma pausa

na eletricidade

 

e o sopro suave

já nada ventila.

 

E a dor outra vez

é a súbita sílaba

 

que pousa na pele

se finca e fica.

SILVIA ROCHA(1958) poeta paulistana, é formada em jornalismo e mestre em comunicação social pela ECA. Praticante do haikai, participou de antologias e já venceu o concurso de poesia falada da revista escrita(1987). Ministra oficinas de haikai e já publicou Estação Haikai(1988) e Gestação Haikai(1990).

sem ninguém

sem vintém

como ser zen?

......................................................................

flores de maio

no meu quintal lavado

gotas de orvalho

..................................................................

solidão

não te come não te mata

te retrata

.......................................................

meus guias do além

me guiam

além

...........................................................

sopro de vela

me leva

me vela

..............................................................

curta

a vida é

curta

..............................................................................

crescer dói

não crescer

destrói

LÁZARA PAPANDREA (1965), poeta mineira, é formada em história e pós graduada em teoria literária. Coordenou até 2011 o grupo Café com Poesia e Arte, que ainda faz apresentações regulares no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes. Publicou o livro de poemasa Tudo é Beija - Flor(2016) Vive atualmente em Juiz de Fora.

Amo absurdamente

O chão sobre a casa

O telhado dos dias escassos

Enterrado a sete palmos

Rasos.

Quando encero meus olhos

Ainda ouço passos.

Os fantasmas agora me amam

Também absurdamente.

E me chamam.

E me chamo sarcasmo.

 

NOS CONTORNOS DA MÃO

no contorno das mãos

um destes silêncios

não gestados

 

nos dedos cerrados

imprestáveis girassóis

emprestados à manhã

que tarda a esconder o sol

 

aprendo a me esquivar

dos boatos

[com os gatos]

 

amuo

amo

amuados

miados

 

meus punhos tão fechados!

 

CRISE HÍDRICA

seco

o corpo

o copo

o vento

o medo

a rua

o alento.

secura de não dar enredo

de não poder poesia

de não saber candura.

seco

feito placa dura

de cimento num esquecimento

de séculos.

seco, e nossos dedos

rígidos de pecado e dádivas.

...............................................................................

você me diz que a morte é regra

nem me despedaço!

não acredito

não quero.

se essa for a grande verdade

me cego

me chago

me sangro

me esmero para não acreditar.

não será essa a cilada.

não será esse o tango

a dançar.

não agora nem nesse lugar

de demoras no seu quadril.

 

MELINA FLYNN (19  ) poeta japonesa, nasceu em Myioshi, Japão, mas passou a maior parte de sua vida no Brasil. É atriz, escritora e tradutora. Gosta de cinema, fotografia, música, literatura e escrita. Canceriana é descrente de signos, novelas, futebol e religião. Explica o escrever como o expectorar. Não escreve para que se entenda e sim para que se sinta. Publicou o livro Amores Brutos (2011)

 

Não se iluda não

que eu te fascino

pra te ter

depois te engulo

e te cuspo

porque não quero mal

pro meu corpo

viro bicho

boca vermelha

olhos negros

eu quero tudo

que me faça mais forte

felina

ferina

fera

se digo que sou tua

é pra fazer pose

não sou moça

não tenho postura

sou vaidosa

eu não sumo

eu somo

me lanço

avanço

em ti

provoco

em mim

uma revolução

pra depois contar história

ter as marcas e os gostos

os sotaques e os trijeitos

pra ser várias

até achar uma

que me convença

 

NADA

Estou descalça

taça na mão e

uma gota de vinho

em meu seio.

A cidade me estupra

e por dentro

me soa um alarme:

ou me salvo ou morro.

MISÉRIA

As gentes me ferem

quando falam de si

e eu me ponho em soluços

porque sou demais minha

e sei tanto de mim

que é como labirinto:

já não tenho saída.

A suficiência não está

em se pintar por fora

pra se fingir por dentro

assim estou crua

de pés pelados

arranquei a roupa da vontade

e me coloquei pra descansar

entre lençóis brancos

sentindo teu cheiro de chuva

pedi antes que me levasse pra casa

me desse um filho

e três dias te olhando de graça.

Acabei entreaberta

me esfregando na saudade.

 

DESLINDAR

são quatro e trinta da manhã

sozinha

dez horas o sol me esmurra a cara

sozinha

café

ração para o gato

banho

jornal

sozinha

um pouco de fome e náusea

migalhas na mesa

cabelo esvoaçado

(me dá a tua mão)

triste é me ver assim

e nem vejo mais

não passo pelo espelho

não lembro

mas me arrepiam os poros

quando penso

sozinha:

escrevo

pra te tocar.


Publicado por Rubens Jardim em 29/11/2016 às 00h57



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