Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
09/11/2016 13h16
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (83ª POSTAGEM)

ANA NEUSTEIN (1943) poeta mineira, cursou filosofia na PUC, em São Paulo, cidade onde vive há muitas décadas. Filha do poeta Dantas Motta, conviveu no meio intelectual, escreveu e guardou seus escritos por quase 50 anos. Só recentemente, seguindo sugestão de amigos, resolveu divulgar os seus escritos guardados. Eles foram selecionados e reunidos no livro Poemas(2012).

ESPERANÇA

A esperança é tirana

Anda mal acompanhada

Passeia com doenças e infortúnios

Proíbe-nos de olhar o irreversível

Adia os finais

É brasa encoberta

Cega suas vítimas

É agente dupla

Conhece técnicas de tortura

Enfeita as dores

Esconde a morte

Promete o impossível

Mas... é vital como o Ar

É verde

Esmeralda bruta e bela.

VISITA

Diga que sou bem-vinda e me ofereça um café

Quando a colher girar na xícara

Ela se transformará numa caixinha de música

E a colher numa bailarina.

NOITE

A noite é casada

Junção de fora com o dentro

Do anjo e do demônio

A noite tem seus sons e seus habitantes

Estalidos, miados,passos e mistérios

Está eternamente grávida

E eternamente dando à luz

A realidades sem nomes

Que vivem perto do amanhecer.

PERDA

Você sabe?

É claro que você sabe

Toda perda é como um caroço de abacate.

Não passa na garganta.

Só resta colocá-los na água

Pra ver se brota.

FLÁVIA PEREZ (1968) poeta carioca, é formada em biologia, com mestrado em Microbiologia Agrícola. Vive em Campinas.Participou de várias antologias (Bar do Escritor Terceira Dose, Quinta Barnasiana, En la Otra Orilla del Silencio (Mexico, 2011), Vide-Verso. E publicou os livros Leoa ou Gazela, Todo Dia é Dia Dela(2009), Poesia se Escreve com T(2011) e AntropoFlágica.

modos

Na mesa e no meio das gentes,
ele é meu cavalheiro.

Puxa a cadeira pra eu sentar,
enche meu copo de vinho
(só até o meio),
abre a porta pra eu passar primeiro,
ajoelha, num rasgamento
beija-me de leve a mãos,
e pede-me em casamento
(finjo que penso, mas depois aceito).

Nem preciso pedir:
“Poupe-me e me comporte,
comporte-se conforme os preceitos
da princesa e seu consorte”,
pois na frente de todos,
me canoniza,

e abotoa até o último botão da camisa.

Mas depois,
sozinhos na cama
meu bem me sodomiza.

DROGA

Essa paz de mãos dadas

passeando na calçada

que você espera,

também quero.

 

Quando for velha!

 

Por ora

dê-me o prometido

pirâmides, xamãs,

chamas,

viagens de hipogrifos.

 

Indisciplina,

dê-me agora

que seu verbo absinto em mim

arrepia

e me desnorteia.

 

Quero você

latejando

no meu pulso,

injetado na veia.

 

Dê-me logo essa droga de você!

RHODES

Ele é enorme

e aperta o corpo

-pedra-

contra o meu.

E me machuca.

Ele abre o zíper

e esse Colosso

de pé

na entrada da cidade

assusta um pouco.

Mas eu avanço.

É que o gigante

fala coisas

no diminutivo

(- bucetinha, bucetinha, bucetinha...)

em meu ouvido.

Então me rendo.

-Acho

que não sou boa

da cabeça-

ESPECIARIA

À espera submarina

do peixe-dos-terremotos,

ela sonha seus versos toscos:

 

alegorias escondidas

em margaridas sulferinas

e antigos signos mortos.

 

Lá no fundo do barco,

nos porões do que foi,

estão seus olhos de ontem.

 

Esses velhos marinheiros

repetem o fog sob os cílios.

 

Incrustados,

não reconhecem cenário,

pátria, ilha ou parada,

nem quando veem os filhos.

 

Com lentidão de sereia,

a mulher que desveste o espelho

à boca soma acalantos.

 

E guarda que nela se afoguem

outros lábios vermelhos,

inchados

de tanto prazer e pranto.

 

AUREOLADA

Eu tão anjo tenho andado

que em mim nasceram asas.

 

O que me perde pro céu

é esse meu grande

rabo

endemoniado

e minhas coxas grossas...

 

NÃO CULPEM NELSON

Eu sou um INA 38

na sua gaveta

embrulhado em lingerie

de renda preta.

 

Sou puro sangue e desatino:

Nelson Rodigues

filmado por Tarantino.

CYELLE CARMEM (1978) poeta paraibana, formou-se em Letras em 2003 e concluiu o mestrado em Literatura e. Cultura pela Universidade Federal da Paraíba em 2006. Lecionou lingua portuguesa em cursinhos preparatórios para concursos e trabalha, atualmente, como editora de uma revista acadêmica. Publicou Luzes de Labirinto(2010) e (Uni)verso (2012)

DO SENTIDO

O que sinto não precisa de permissão

Não precisa de casa

Não preciso de sopro ao ouvido.

 

O que sinto vive do ar da brisa distante.

Vive de um retrato antigo

Vive de uma palavra gasta.

 

O que sinto não precisa de estrada

Seu atalho foi coberto pela mata

Seu riacho há tempos está extinto.

 

Não precisa de papel contrato

Não precisa de luzes acesas.

Sobrevive do silêncio do escuro

Da grade trancada a sete chaves.

 

O que sinto não precisa de autorização

Sobrevive sem um pedaço de pão.

 

O que sinto não precisa de vida ou de morte

Existe por si mesmo

E escolhe o seu próprio norte.

A EVA

Castigada pelo pecado de Eva

meu coração segue

rasgado pela costela emprestada.

Nasci marcada pela mordida venenosa

levando nas costas

e no peito a letra escarlate

da culpa,

da traição

e do julgamento alheio.

 

Lembrança de um paraíso perdido

minha sina é

ser perdição dos desesperados

e a salvação dos escolhidos.

 

Nasci de um engano das escrituras

manipulação do Hades

idealização de Zeus

falha de planejamento:

o homem será para sempre

cobrado pela costela

roubada.

CARNE

Não sou verdadeira comigo mesma

Deturpo os indícios

Saboto os ofícios

Falsifico os compromissos.

 

A carne dessa dor

da profundeza da alma

não lateja

apenas apodrece, contamina

o que há de bom.

 

Essa carne é mordida de dentes

sacola de restos

esquecida num canto da sala.

 

Mas à noite

ela cheira

às vezes é aroma temperado de comida fresca

outras é fedor de lama de feira

onde não se sabe o que é

do lixo

ou da mesa.

TRÊS LINHAS DE INFINITO

Ser breve

apesar da imensidão

Ser rápida

apesar da extensão

Prolixo

já não cabe.

Há de ter conteúdo

em três linhas de infinito.

MEL DUARTE(1988) poeta paulistana, foi uma das atrações mais provocadoras do sarau que marcou a abertura da festa literária de Paraty, cujo vídeo viralizado foi compartilhado milhares de vezes. Faz parte do coletivo Poetas Ambulantes e é uma das organizadoras do Slam das Minas-SP, batalha de poesia para o gênero feminino . Já publicou dois livros de poemas:Fragmentos Dispersos(2013) e Negra Nua Crua (2016).

Verdade seja dita

Você que não mova sua pica pra impor respeito a mim.

Seu discurso machista, machuca

E a cada palavra falha

Corta minhas iguais como navalha

NINGUÉM MERECE SER ESTUPRADA!

Violada, violentada

Seja pelo abuso da farda

Ou por trás de uma muralha

Minha vagina não é lixão

Pra dispensar as tuas tralhas

 

Canalha!

 

Tanta gente alienada

Que reproduz seu discurso vazio

E não adianta dizer que é só no Brasil

Em todos os lugares do mundo,

Mulheres sofrem com seres sujos

Que utilizam da força quando não só, até em grupos!

Praticando sessões de estupros que ficam sem justiça.

 

Carniça!

Os teus restos nem pros urubus  jogaria

Pq animal é bicho sensível,

E é capaz de dar reboliço num estômago já acostumado com tanto lixo

 

Até quando teremos que suportar?

Mãos querendo nos apalpar?

Olha bem pra mim? Pareço uma fruta?

Onde na minha cara tá estampado: Me chupa?!

Se seu músculo enrijece quando digo NÃO pra você

Que vá procurar outro lugar onde o possa meter

 

Filhos dessa pátria ,

Mãe gentil?

Enquanto ainda existirem Bolsonaros

Eu continuo afirmando:

Sou filha da luta, da puta

A mesma que aduba esse solo fértil

A mesma que te pariu!

PRECIOSO

Ele me quebra quando a fala sobra,

quando o peito transborda e deixa a palavra vir à tona.

 

Na falta de flores e risos diurnos

sobraram lembranças de afagos noturnos.

 

Estimulo, confesso- Criei um muso!

 

Não é seu… Nem meu

Mas de quem souber fazer bom uso.

 

Gente que guarda dentro de si tanta beleza

Sabe o jeito de nos invadir assim... Com sutileza.

PAZ

Necessitava de um simples agrado,

Mal não faria em dizer Obrigado

Difícil é viver sempre no passado,

E se houvesse mais cordialidade, no meio dessa guerra de egos ninguém sairia machucado.

NOTURNA

Tua marca, fincada na minha carne nua.

Teu desejo exposto numa face crua.

Meu corpo, entregue a sorte tua.

Num quarto baixo, num foco de luz, numa madrugada escura...

 


Publicado por Rubens Jardim em 09/11/2016 às 13h16
 
21/10/2016 16h29
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA--82ª POSTAGEM

MILENE SARQUISSIANO(19  ) poeta gaúcha, é jornalista formada pela Universidade Católica de Pelotas.Funcionária pública concursada trabalha há mais de 19 anos na Prefeitura local. Atua também como free-lance em rádio e tv a cabo. Começou a escrever em 2009 e publica seus poemas em blogs e sites da internet.

EMBOSCADA

não é na força bruta

que se ganha a luta

nessa guerra de arranha

é preciso alguma manha

um olhar de emboscada

uma língua revirada

destemida e servil

que mire o inimigo

e finja que não o viu

pernas firmes e ligeiras

deslizando sorrateiras

frente à zona de perigo

chamando pro combate

sem direito de resgate

lábios seios e umbigo

e tudo mais

que morra e mate

VERSO ARRIADO

Me arranha no rosto

Me enreda na réstia

Me enrola na marra

Me amarra na manha

Me arrasta no raso

Me arrasa no resto

Me arranca no tranco

Me enrosca no tronco

Me enrasca na garra

Me arrisca na guerra

Me arruma na linha

Me arrola na rima

Me arria no verso

ALUADA
fatio o dia
em pedaços
de mil delícias
saboreio
lentamente
mas se à noite
a lua cheia
de açucar
escorrer
pela janela
pra dormir
no meu umbigo
me melar
e virar calda
perco o foco
e as metas
dou adeus
às dietas
devoro
de colherada

NÓS

Tu Baco

Eu boca

 

Tu riso

Eu rosa

 

Tu farto

Eu forte

 

Tu leme

Eu lume

 

Tu trova

Eu trevo

 

Tu bronca

Eu brinco

 

Tu atroz

Eu atriz

 

Tu brisa

Eu brasa

 

Tu gema

Eu gomo

 

Tu figa

Eu fogo

 

Tu tronco

Eu trinca

 

Tu reta

Eu rota

 

Tu tanto

Eu tonta

 

Tu ramo

Eu rima

 

Tu traço

Eu troço

 

Tu nau

Eu nua

PAT LAU (   ) poeta paulistana, já foi Patrícia Laura Figueiredo e Patrícia Laura. Desde cedo dedicou-se à poesia e ao teatro. Publicou o livro Poemas Sem Nome (2011) em edição bilíngue português/francês, No Ritmo das Agulhas(2015) e Poemas Bebês(2016). Participou de várias antologias, no Brasil e na Alemanha, e também em diversas revistas digitais de literatura e poesia.

nem os segredos do meu pai nem os teus

nem os nossos

 

cultivo

jardins secretos

isolo

acolho

escondo e guardo

 

no buraco das folhas

nos vermes que passam

nas dores das cores

me calo

 

alimento

afago

 

a fuga do vermelho

o silêncio do preto

cada parte de sombra

molhada

 

nem os segredos do meu pai

nem os teus

nem os nossos

 

no silêncio das flores

maduras

um rasgo

DA VONTADE DE PAZ

comecei tudo de novo

porque é preciso recomeçar

tudo de novo todos os dias

não o -aqui e agora-

mas o possível

a cada segundo o imprevisto

o que nunca será dito

mas vivido intensamente

no presente que recomeça

reconstrói apaga e dói

apaguei o que era

certo e relido e selado

na memória para sempre

para me lembrar do instante

celebrar o improviso

a alegria do presente

a possibilidade da paz

a cada momento

pois tudo recomeça

de novo

todos os dias

o novo

feito do que não pode ser esquecido

a paz que inevitavelmente volta e nos acorda

invadindo com a manhã nascendo com o dia

a possibilidade do novo a cada manhã

a cada novo dia que nasce

cada vez que um olho abre

a paz

a vontade da paz

ouvindo o barulho

das guerras lá fora

feito de outras historias

chorando a dor das derrotas

recomecei

PANO

escorre noite a dentro

na borda da janela

de madeira envelhecida

 

amanheço

pano duro e seco

dentro da própria vida

 

um poeta não é feito

pra ser conhecido

 

é feito

pra viver escondido

 

debaixo dum pé de mesa

duma asa de xicara

da parte da vela mais derretida

 

um poeta

não é feito

pra ser visto

 

é pra ser lido

enfrentado dobrado

marcado apagado

e depois um grito

 

largado lá onde ele respira

naquela sombra interna

ausência inteira

onde ele habita*

MINHA CASA

no nada ela se equilibrava

minha casa

as salas cada vez mais largas

o quarto cada dia de um lado

por cima e por baixo o jardim

vagabunda na poesia

era assim que eu vivia

minha vida sem horizonte

nenhum

desde menina

(me foi dado) como

enterrado um tesouro

a solidão toda em mim

com ela refiz as salas

quebrei as escadas por ela

destampei bueiros inventei sementes

perfumei venenos e enraizada cresci

hoje em seu nome

vivo ausente

sem medo do presente

nesse mesmo lugar

confortavel

onde jamais existi

LUBI PRATES (1986) poeta paulistana, é graduada em psicologia com especialização em Reich.. Tem publicado o livro Coração na Boca (2012) e algumas participações em revistas e antologias literárias nacionais e internacionais. Escreve no blog coração na boca. Edita a Parênteses, revista literária virtual, e traduz. Vive em Curitiba.

ATÉ SÓ RESTAR O DEPOIS

                              sobre o dia 29 de abril de 2015, em Curitiba.

pudesse,

recordaria se havia sol

antes daquela tarde

quando tudo se resumiu a

cinza:

 

fumaça, um

quase

 

aquele estado de consciência frágil

entre estar acordado &

desmaiar.

 

pudesse,

recordaria o cheiro

antes daquela tarde

quando tudo se confundiu a

 

gás

pólvora

sangue.

 

recordaria quais eram

minhas atividades inúteis

antes de acessar a internet&

navegar entre as notícias

 

para descobrir o alvo

dos helicópteros que

sobrevoavam a cidade

 

destruindo

destruindo

destruindo

 

qualquer segundo

de silêncio

 

inibindo os gritos

 

pudesse,

eu recordaria o antes:

 

quando não havia escombros.

SALAR DE UYUNI PARTICULAR

nada que desfaça

 

nada que lave da minha boca o sal do seu corpo,

                esse gosto ruim

 

o sal do seu corpo ferindo meus lábios

deixando-os sangrar

 

resultado de qualquer ousadia, pergunto

ou lembrança

 

nada que desfaça

 

você sabe

 

nada que suavize a escuridão

                desse abismo: amor ou

 

seu contrário, mas

                que também penetra, invade

 

a estrutura do ser.

 

nada que te desfaça em mim.

BOA VISTA

descobri pelo google maps:

                da minha casa até seu ouvido são

                                4.654 quilômetros

 

                                           implacáveis

 

distância que torna-se perto quando

                eu, encantada

                                recordo seu rosto antes de despertar:

 

minha eterna boa vista.

SOBRE MAR DE CARNE E OSSO

ele contorna meu corpo com o seu

por instantes é mar:

água e sal

- não só os olhos desse azul

            que acinzenta-se quando tempestades

atrás de lentes escuras.

vertigem e me entrego

- sei a impossibilidade

de avessar naturezas conturbadas:

não há margem ou poro desafetado

                        pela penetração

perturbação de língua respiração e pelos

ávidos por afogar sentimentos

                        barriga dentro e fora

então acredito em qualquer gota antes

como prenúncio de essa inundação

porque toda água nasce e vibra

                        invasão apenas

para após refluxo, a distância.

RITA BARROS (19  ) poeta paulista, é revisora, tradutora e articuladora cultural. Tem poemas publicados em periódicos literários independentes, Zunái, Mallarmargens, Euonça jornal Ocicero. Autora do blog de poemas Sede de Pedra, também organiza o Sarau Dá Corda, voltado à cultura da diversidade. Publicou seu livro de estréia em 2015, na coleção Kraft

AMOR FATI

quebro

portas e janelas

todos os vidros da sua casa

porque sou a dinamite e um destino

vejo as vísceras espraiadas

beijo a pólvora

e o remorso: você

está por toda parte

colando os cacos

cortando os dedos

ferindo a boca com pregos

interditando o caminho: você

não me deixa entrar

não me deixa entrar

mas eu já entrei

e agora não há lugar

mais estreito que o Atlântico

escute atentamente

a sintaxe do martelo

o uivo ao fundo o choro das crianças

é a última ceia e o banquete

é uma promessa: eu juro

derreter as chaves

atear fogo ao corpo

e soprar

minhas cinzas em seus cabelos

apenas para lembrá-lo

que o tempo é justo 

quando é seu servo

e quando sou

a dinamite e um destino

ORQUESTRA PARA DANÇAS VIOLENTAS

havia

muito tempo numa noite

[essa bandida essa bandida]

e um drama estilhaçado no meio-fio

between my dreams and the real things

enquanto olhávamos nossos sapatos

à cabeceira da pista

 

havia

nesse drama

uma cenografia íntima

um país estrangeiro

um sussurro rompendo a névoa

rasgando o quadro rasgando

nosso contorno liquefeito

 

pequenas dádivas

 

havia

um deus sitiado nesse som

1. ANDE

movo-me.

meus olhos

temporais

destroem tudo

ao redor

do umbigo

do mundo

[nas bocas rasgadas

um retumbar de gemidos]

cega

a cordilheira me lambe

morde

mastiga

engole

o tempo

a cólera

e os cartões-postais

ASSULA STUDIUM 

quebra-se a primeira taça da casa

ela ainda está ali
seu momento 
cindido
repousa no chão da sala
[silêncio de funeral]


eis a dança 
bruta dos vulcões

eis a dança
ignorante dos espaços


ei-la: coxa, ávida, um desastre
rompendo o que não se restaura 
se fazendo só de som e sendo
mais lâmina que a própria lâmina 
do objeto perdido
[agora brilham menos 
os olhos que os cacos]

pisar nos cacos; sentir 
o chão nos cacos; sentir 
o peso do próprio corpo aberto 
para autópsia:

- meu deus!

[está aberta
a temporada dos espantos
                        meu amor]

costurados na pele, os cacos

esquecem que já foram taça 


Publicado por Rubens Jardim em 21/10/2016 às 16h29
 
03/10/2016 00h47
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (81ª POSTAGEM)

FIDÉLIA CASSANDRA(1962) poeta paraibana, é escritora, cantora, compositora, jornalista e professora. Trabalhou na TV Borborema, na Rádio Campina FM e no Paraíba online. Publicou os livros Amora(2002). Plumagem (2008). Cartas de Penélope, (2010.) e Melikraton (2013). Tem alguns CDs gravados, com show em diversas cidades do Nordeste.

POÉTICA X

Poesia

É chuva

Que se desmancha na terra,

Um suspiro na boca.

Poesia

É tempestade

Que desmancha a terra.

Procela, procela.

Poesia

É água

Cristalina, de beber.

Pingo no vidro da janela.

LADO DE DENTRO

O amor não cabe no cotidiano

E sim na lágrima, na gotícula,

No abismo.

O amor não cabe no poema.

Ele é a metáfora, o véu, a ostra.

Tudo o que se acha e se perde

Num mesmo instante!


O amor não cabe no papel

E sim na asa, no fogo, no vento...

Nas folhas exangues perdidas no ar.

O amor não cabe no vermelho do tijolo.

Cabe na desconstrução do verso,

Nas ruínas, nas ranhuras, nos sulcos do tempo.

O amor não cabe em si.

Ele é o outro, o próximo.

Aquele que mora do lado de dentro.

CARTA I

Tear tear tear tear –
Labirintos, pontos, tramas,

Arremates... Nós...

Noites a fio, eu, mulher de Odisseu,

Teço sobre as ondas minha

Mortalha de murmúrios –

Ânsia, agonia, mãos, agulha, linha...

Doem-me os dedos – suas feridas sangram...

Lenta é a espera.

Odisseu, o que nunca volta!

BOCEJO

Macunaimamente preguiçoso,

Entediado.
Acordar cedo? Que horror!

Ler Chaucer, Shakespeare,

Dá-me cansaço!

Ahhh! Que delícia essa redinha!

Abre o seu corpo para mim.

Aí, fico enfadado...bocejando...

Aliviadoooo...uma lerdezaaaa...

Sonhando que estou cochilando no capim.

Que delícia essa espreguiçadeira!

Huuummmmmmmmmm! Uma leseiraaaaa...!

Controle remoto, escada-rolante, fraldas descartáveis,

Botões coloridos, lava-louças – Claro que da Brastemp.

Tudo pronto num abrir e fechar de embalagens.

Não é preciso nem mastigar!

Aahhhh! Que canseira!

Como é pesada essa vidinha maneira,

Não levanto nem pra mijar!

MARINA MARA(1979) poeta brasiliense, é publicitária, jornalista, ativista cultural, atriz, roteirista, designer gráfico, consultora de projetos poéticos e literários. Atua pelo Brasil desde 2006 com projetos multimídia. Seu primeiro livro, Sarau Sanitário.com, (2010)é parte de um projeto homônimo que distribuiu poesia por banheiros públicos e pelo mundo virtual.

CAFUNÉ

trocaria litros

de café pelo

seu cafuné

e noites de

boemia

pelo seu

bom dia

O MCDONALD´S ME COMEU

hoje comi mcdonald´s.

pedi meu castigo pelo número

e mesmo sabendo ser efêmero,

fui fast e me food.

por favor, uma promoção:

um combinada de raiva

com molho de autoflagelação.

senhora: esse item está  em falta

mas se quiser, temos molho alienante

que acompanha suas idéias... fritas.

eram mordidas crocantes como isopor

croq! dando à consciência um sumiço

visual colorido, como você pode supor

ah... como não-amo-muito-tudo-isso.

foi como se pichasse meu próprio muro

que há décadas mantinha-se casto

mas foi um castigo aplicado com juro

e hoje, senti-me mais uma no pasto.

era como se cupuaçu, guaraná e guarani

fossem algo ilusório, não poderia estar ali

e viva o país contaraditório!

o mais belo, o mais livre

o que mais insiste em se diminuir.

e hoje, antes de dormir, pedirei perdão

à amazônia, a mim mesma e à nação

por, triste, achar que o bem morreu

mas, “amanhã vai ser outro dia”

melhor que esse, no qual

o mcdonald´s me comeu.

SÃO SETE

Ele mora nas sete cores

E ao som das sete notas

Engana os pecados capitais

Um a cada dia da semana

Acertando os sete erros

E vivendo suas sete vidas

Todas de uma só vez

POMBAGIRA

Não depile meus pelos

Com seus apelos estéticos

Depile seu preconceito

Com argumentos éticos

Não julgue minhas

Intenções pelo tamanho

De minha saia

E na próxima estação

Troque seu machismo

Por um belo

Tomara-que-caia

E que o seu desamor

Não desperte minha ira

Pois fada madrinha

É para os fracos

Eu tenho é pombagira

AMANDA BRUNO(19  ) poeta mineira, é graduada em Letras pela UFMG, com um semestre de intercâmbio na Université Charles-de-Gaulle - Lille 3. Publicou no jornal Letras, Desfaces e zines como o Amendoim e o Barkaça. É autora do livro Por Aqui (2013)  e foi incluída na coleção Leve um Livro com a seleção de poemas Pó de Asfalto(2016).

a menina ve TV

e repete a palavra

até perder sentido

 

em breve irá repetir o mundo

e esperar

que faça sentido

TOMEI CORAGEM

tomei coragem

me chamei para sair

 

comi pizza

à luz de velas

 

bebi vinho

e relaxei

 

comprei um doce

no café ao lado

 

dei uma volta

na lagoa

 

me fudi

a noite toda

pro Leopardi

parece:

 

melhor que viajar

é arrumar a mala

 

melhor que o fato

é a imaginação

melhor que a data

é a véspera

 

melhor que o orgasmo

é o tesão

 

seja como for,

 

a poesia

é melhor que o amor

pro Teus

não tenho ponto de vista

que ponto não tem tamanho

 

nem linha de raciocínio

que linha é só num plano

 

tenho é plano pro mundo

e nem é cartesiano

 

levo tudo na flauta

que toco no último volume

LAURA LIUZZI(1985) poeta carioca, participou da abertura da última Flip, ocasião em que leu e ironizou um poema bem ruim de Michel Temer. Trabalhou com o documentarista Eduardo Coutinho, como assistente de direção, nos filmes Um Dia na Vida, As Canções e Últimas Conversas. Publicou os livros de poemas: Calcanhar(2010) e Desalinho(2015).

INSTANTE

Existe um curto espaço

de tempo um pequeno

buraco negro que engole

todas as grandes certezas.

Entre o dedo no gatilho

e uma bala disparada

abre-se uma imensa

fenda onde a entrada

da razão é terminantemente

proibida. Entre o último

pulso do coração e o seu

repouso, o tempo se dilata

milimetricamente

e mergulha as memórias

no fundo do mar lá

longe da terra lá onde

nunca dá pé. Nesses

curtos espaços nós não

pisamos porque não

cabemos. São tão curtos

que talvez nem existam.

AUTORRETRATO

Como pode água nascer

de pedra

como pode, posso eu

também ter matéria

grave e intransponível

conjugada a esta outra

transparente, irrepresável.

 

Basta um olhar à fotografia –

o bebê no colo

o papel envelhecido.

Ao mesmo tempo que um avança

somando anos

o outro recua, mais antigo.

 

Quando as tardes pareciam

maiores

quando o fim do dia

era o fim do dia

quando tatuagens não eram

para sempre.

 

O tapete da sala era branco

e peludo, parecia um bicho

depois da ração diária.

O sol entrava geométrico

e, espremendo-se entre as grades

desenhava escarpas

onde eu me deitava

junto ao bicho.

Eu fechava os olhos

para ver as cores no escuro.

 

Só o que morria era inseto.

 

Sorrir nunca foi fácil.

Cresço com a boca miúda

e ainda não gosto de piadas.

 

Conservo a interrogação

quando de frente ao espelho:

como pode ser tão diferente

o frontal do perfil?

E me pergunto, desde lá

se todos enxergamos as mesmas coisas

se a língua não é tão só

um mesmo código para coisas distintas

se entre mim e você

não há um abismo sem solução.

 

O que sei é o que não sei

sobre projetos de futuro.

 

E mesmo assim escrevo cartas

(funcionam melhor que espelhos)

para meu próprio endereço.

Me respondo como se já tivesse

arquivado toda a memória

e pudesse confortar

confrontar o porvir.

 

Quando escrevo me passo a limpo

sem riscar as imperfeições.

 

A infância ainda gravita

em mim. Não só

a minha, mas outras

que vêm com músicas

sub-reptícias, por um atalho

por onde atravessam

com a velocidade

incalculável

do tempo.

 

Dar nome às coisas:

primeiro passo torto

até que se deseje

as coisas puras

sem auxílio de som --

a rosa única

a pedra que se sabe pedra.

Segundo passo, falho:

inominar.

 

Nos retratos guardamos nos olhos

o vidro dos olhos do gato

a cama ainda desfeita

a última tempestade

e o escuro do que virá.

 

[Colher nas mãos o que

das mesmas mãos se extinguiu:

pedra papel tesoura.]

ORQUESTRA

Não há cortina

para esconder os músicos

nem mesmo a música

se esconde nos instrumentos.

 

Está tudo aos olhos da platéia

porque a sinfonia não se pode ver

senão nos gestos do maestro.

 

À minha frente, antes do primeiro

comando, pode estar o violoncelista

em terno preto, como muitos ouvintes.

                                                   

Quando se sentam os músicos

cada um em seu tempo afina

seu instrumento e acerta a folha

da primeira sinfonia: confusa algaravia.

 

Então vem o regente

sob uma saraivada de palmas

com sua vara de condão.

 

Os músicos ajeitam a coluna

alisam os traços do rosto

e encaram o maestro

 

que, com dois olhos apenas

cruza com todos que têm nele a mira

buscando a confirmação

de que pode começar.

 

Tão logo soerga

a batuta e soe

o primeiro acorde

ouve-se, milagrosamente, o silêncio.

ARQUITETURA

            com o pensamento em Franz Kafka

Encapsular o inferno
numa tarde sem mais
de Praga. No entanto
era ele quem deslocava
a cidade para a parede
incalculável de seus olhos.

Auscultar o pântano
de sua razão intranquila
até que nenhuma ponte
se arme para nossa passagem.

Inventar entradas falsas
(entrar sem sequer ter saído)
traços pontilhados, estradas.
Procurar praças estações catedrais
como um cão sem faro.
Como um cão fora de si.

Alcançar o fio cego do horizonte
por algum túnel longíquo
incomunicável; abastecer
o teto mais que o chão.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 03/10/2016 às 00h47
 
09/09/2016 01h04
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (80ª POSTAGEM)

ANA GUADALUPE (1985) poeta paranaense, já foi professora de inglês, fez tradução e estágio em biblioteca pública. Atualmente trabalha como redatora de conteúdo para internet, em São Paulo. Publicou os livros O relógio de pulso (2011) e Não conheço ninguém que não seja artista(2015).

VUPT

só leu um livro na vida

que falava sobre o vento

com voz fina

 

se lhe escrevo um verso

e leio em voz alta

não vê graça

 

não sabe ouvir pausas

como as minhas

nossas idas e voltas

 

agora não adivinha

que carrego um poema

pra entregar antes que vá

embora junto com a ventania

MAPA DO TESOURO

menino vestido de pirata

eu sei que os carnavais

têm sua graça

 

por isso eu respiro

engraçado

 

quanto te vejo

sinto meus braços

 

acenando para

navios parados

VOCÊ NAS ALTURAS

você nas alturas

no prédio mais antigo da cidade

onde o vento deve te incomodar à noite

e onde eu só entro com documentos

você no alto

de uma torre da idade média

sob a proteção de um exército

que não me quer por perto por mais de meia hora

você voando

pela plataforma bidimensional da minha vida

acumulando anéis de presente pra outras companhias

usando códigos pra chegar sem arranhões ao final

você no podium de um campeonato esportivo que desconheço

na lua que é uma imagem difícil pra um poema

numa foto escondida na estante da sala

nos sambaquis da praia

na parte de cima do beliche

num cipó sobre nossas cabeças

no barco viking enquanto te fotografo

apertando botões e puxando cordas

todos os dias nas alturas

e eu te chamando pra descer um pouco na quarta-feira

GUERRA

tique nervoso

à espera de alguém

que venha

 

beber água

desabotoar as calças

jogar bola

 

atirar no macio

arrancar os músculos

acumular fôlego

 

pra sufocar

com o próprio peso

o peso do outro:

 

uma bigorna

um piano

um travesseiro.

LUCIANA QUEIROZ (1976) poeta paraibana, é mestre em letras e professora de literatura brasileira. Militante feminista, luta cotidianamente pelos direitos de todas as mulheres e acredita que o mundo só será melhor quando mulheres e meninas forem livres. Desde os 30 anos é mãe e Nua sob Escamas (2016) é o seu primeiro livro.

PEDRA

Sou pedra

E de rocha é feita toda a minha alma de mulher.

Reclino-me no chão do sertão quente

E lá fico

Parada

À mercê de chuva e vento

Porque deles se faz minha erosão voluntária.

Me desgasto, me esfarelo

E cada partícula de areia que sai de mim

Compõe o mundo inteiro

Sofro, me dilacero

Mas sei que só assim faço parte de tudo isso.

A cada chuva,

A cada ventania,

A cada casal que pinta de branco seus nomes de amor em mim,

Me faz mais pedra

Me faz mais rocha,

Pois sei que a cada erosão

Me lapido mais

É de natureza minha alma polida

E cada vez que mais redonda fico

Mais me faço eu,

Mais me faço mulher, redonda e minha

VOLTA

Largas de vaidades

já sei tudo de tua vida:

que tens outras

e que não queres ser de ninguém.

Teu trânsito de corpo em corpo

não me atrapalha a alma.

Quero você, seus significados,

sua conotação escancarada em minha língua.

CACO DE VIDRO

És caco de vidro

Lâmina afiada que nenhum amolador

Imola em pedra

Ponta quebradiça

Que fere e inflama

Mulher de requebrado incerto

Virulenta peste de minha vigília diurna

À POESIA

Poesia é minh’alma espichada no varal em dia de sol.

Letra por letra salgada à pinça,

pinga a salmoura dos dias depois da retirada de cada fatia.

Viva e contumaz, teima em me fazer paladar.

MÁRCIA PFLEGER (19  )poeta paranaense, é jornalista e escritora. Publicou  seu primeiro livro de poemas, Caneca de Café com Versos, no ano passado, pela Editora 7Letras.  É autora dos blogs Unha que risca a lousa (poemas) e Prosálias in vitro (prosa poética). Vive em  Curitiba.

MOÇA DO BRINCO DE PÉROLA

talvez eu brinque de você

com suave ironia

e um cachecol no pescoço

 

deixe você ficar no sofá

com um violão vira-latas

desde que não roa meus sapatos

 

aqui é tudo apertado, quarto

conjugado, quisera loft

numa garagem velha

 

não tenho paisagem marítima

da janela

mas a gente pode ver a lua

afundando num aquário

DESÍGNIO

E a Mão que me desenhou um dia,

entregou-me o lápis para que

escrevesse minha história

antes que minha própria mão tombasse fria...

 

Mas, o que sei eu desse desígnio?

se não rabiscar, com torta caligrafia,

um diário, por vezes, inverossímil...

 

Por isso, com humildade Te peço,

como se voltasse a ser menina:

Senhor, não consigo sozinha...

Segura a minha mão e me ensina.

POR UMA MEGERA INDOMADA

algo de mistério –  pra não dizer sacana,

nisso tudo.

–  sua poesia não veio? – indaga o anfitrião

en garde com  a piteira.

–  está indisposta hoje – respondo

com falsa galhofa no baile de máscaras.

mordeu uma fruta marrenta

sorveu a água de todas as palavras

deixou-as secas ao lado de pernilongos mortos.

por isso não veio. por isso

retirou-se da penteadeira despiu-se no escuro

deu manhas de frígida quando

tentei apalpar seus seios

às cegas. mesmo em horas mais

ditosas é uma vagaba que nunca se entrega

por inteiro.

(trago rosas e doçuras que tanto aprecia)

há sempre incompletude no abraço

da poesia. sou amante de

uma vênus de milo...

não é possível

um asfalto mais áspero

do que este silêncio onde caio

de joelhos.

CONTRARIANDO

Contrariando a regra

Não corro atrás do que destino nega

Mas lanço-me na onda que o mar me entrega

 

Contrariando o estatuto

Prefiro o amor próprio ou o respeito mútuo

à puxação de saco que ceva o mau fruto

 

Contrariando a expectativa

Vês? Pra teu governo eu continuo altiva

Apesar do veneno da tua saliva

 

Contrariando o estilo

Minha alma, de sementes é um silo

Por isso escrevo de forma vária

Contrariando

Quem me chamou de pária

LUCILA DE JESUS(19  ) poeta paulistana, é psicóloga com mestrado em Saúde Pública pela USP. É membro Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae  e do subnúcleo Psicologia e Povos Indígenas do Núcleo Terra, Raça e Etnia do Conselho Regional de Psicologia/SP. Publicou o livro de poemas  para atravessar(2012)

HILÉTICA

Tudo o que sei

sei sem saber.

 

Não aprendi,

só encontrei.

 

É que nasci

com os tendões

hiperextendidos.

PARADÍLIA

(para adília lopes)

 

Perdi o sono

depois que encontrei Adília.

 

Adília

Adília

ficou batendo dentro.

 

Porque também sou feia e louca

e ninguém me quer casar.

 

Adilha e

Lucilha

 

rimam

em arquipélago,

isolado

inacessível

e triste.

CONTORNO

Tocar a coisa dói.

Toda vez que conto um segredo perco a pele.

É terrível.

As veias ficam expostas

a qualquer contato mais bruto

vazam,

transbordam.

 

Nessa hora é urgente um abraço.

O corpo do outro recolhe o derramamento

coloca tudo no lugar e

milagre,

faz a pele regenerar.

 

Mas tem que ser em silêncio.

É DO BURACO QUE NASCE O CORAÇÃO

                                                  para juliano pessanha

A palavra também tem braço.

 

Pega no colo,

faz cafuné

e põe pra dormir .

 


Publicado por Rubens Jardim em 09/09/2016 às 01h04
 
18/08/2016 14h06
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (79ª POSTAGEM)

NIL KREMER (1980) poeta gaúcha, formada em letras,  é atriz, arte educadora e estudante. Já passeou pela dança, teatro, cinema, circo, música. Participou da coletânea Sobre Lagartas e Borboletas  e do Projeto Sete Luas . Tem poemas publicados nas revistas Plural, Mallarmargens, Limbo, O Emplasto e DiversosAfins. Publicou o livro Kamikaze(2016)

A idade não vem sozinha

Vizinha de chagas

Pragas que batem e voltam

 

A idade não dá folga

Rouba toga, melindres

Perdoa deslizes

Dá o troco em doces

 

A idade é generosa

Vem em prosa ou desalinho

Como vinho bom

Ou sermão de mãe nervosa

 

Esta menina levada

Amarrota a pele

E passa a limpo nossa ficha

KAMIKAZE

Uma mulher traz areia nas mãos

vento nas veias

e uma ampulheta implacável

tatuada na pele

uma mulher traz centelhas nas mãos

vento nas veias

no sótão imagens em super oito

de 0 a 10 de uma vida

uma mulher traz doces nas mãos

vento nas veias

no corpo travessuras

e fantasias

uma mulher traz miragens nas mãos

vento na veias

um punhado de seitas

receitas de cura

uma mulher peito prosa

camufla vulcões

nos olhos artérias

feita de fé

mesma matéria

miséria das santas em procissão

QUIROMANCIA

Pediu que eu cortasse o baralho

falou do peito vago

do último estrago feito

do moreno que me deitaria os olhos

de santos que cruzam

depois da primeira dança

de heranças pendentes

e tequilas comungadas

 

Ela deflagrou minhas encruzilhadas

e previu os abismos

sísmicos sinais delatados

em cartas cruzadas

 

Fechou com o enforcado

um bocado de pendências

alternância de suspiros

e cheiro de alecrim

 

Quanto a mim?

continuo girando

na contramão da terra

Quando penso encontrar eixo

a sorte me erra

AUTO RETRATO

tenho esta espera

estampada no rosto

um lusco fusco na voz

martírio de inquietos

fechadura conferida mil vezes

praga que não se entrega

 

sou o que fica

a tiririca na grama

o acordo necessário

o voluntário das palavras

a larva dos dias

a agonia sabor chocolate

que late late

e abocanha vazios

 

sou o cio em carne

promessas descumpridas

feridas cicatrizadas

desvarios

MARIA CAROLINA DE BONIS (1982) poeta paulistana, é formada em Letras pela PUC-SP e leciona língua  portuguesa e literatura. Passos ao redor do teu canto é seu primeiro livro de poemas e integra a Coleção Patuscada, projeto premiado com o ProAC – Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo.

PASSOS AO REDOR DO TEU CANTO
Os amores se insinuavam aos meus passos,
Caminhava cegamente?

Não, caminhava pelo gelo

Com medo de reaver escorregadias

Espécies de perdas secretas.

Só sabia da pedra esverdeada do olhar

Que em mim diriam: forneça as provas.

 

Não, seria essa ou aquela, mas

Sei que pareço a mulher de todas as noites em insônia

Em cima do palco decifrando um vocabulário estrangeiro

As mulheres que sonhavam em outra língua.

 

Pelo olhar do Imperador

As solas secas dos pés rabiscando

Os territórios da volta,

Voltaríamos para a casa seguros.

Voltaríamos para a casa seguros?

Haveria volta nessa mesma hora

Haveria casa nessa mesma hora.

 

Enquanto um grupo numa sala vazia

Fornece provas sobre

O turismo das regiões terrestres

Fazem cálculos, desenham mapas

O que movimenta as mãos como uma continuidade

Do pensamento preferiria os lados orientais

De uma certa cultura

De panos coloridos para cobrir

Nas rendas os tons fortes desenhados.

 

Dizem outras palavras, eu acho,

A mesma mulher me olhará de soslaio

Qualquer vista que preencha o vazio

Entre a saída e a entrada de alguma passagem

Do aeroporto internacional

Embriões do mundo.

 

Dizem, ainda temos a lua,

E me demoro a decorar o passado

Onde toca a agulha

A alma e o bisturi. Nossos passos,

Movediços em água,

Sangue e areias exiladas,

Se insinuam a estar entre dois polos.

DOIS, REVERSO

Ser não mais o corpo, mas a encenação

Dos primeiros toques em desvãos aquáticos

Em si a diluir a primeira cena:

Correr pelos vegetais

Pelas árvores de uma floresta

Que não lhe amam

E as sombras que caíssem

Fossem em si uma direção

Para as margens do que fora:

 

Submersas – de uma coisa saberia

Do amor aos extremos

Dos fios que se perdem dos fios

Que se atam.

DECOMPOR

A fruta apodrece (não que eu

assim quisesse) como vão de

escada e escuridão. Vivo

onde as moscas contornam

minha ausência. Faço de mim

escambo com o vento. Estaria a dois

passos do que tem sido.

Desfaço na estrada e vou fincando

em cada poste abandonado em cada curva

desvio a voz que em mim fala

para decair na tarde verde vegetal

e não querer mais nada da vida.

Se assim se mostra no que decompõe

a essência, deixo ao que o coração abra

em tempo do que regressa

o sumo maduro a colher o sêmen

entrar dentro da ferida das coisas

saber de que material são feitas e conter

sua substância - expor sua ferida em um trauma

aberto lá onde dói a fibra do fino fio

corrói-se a essência sem luz.

OS LIMITES DA VOLTA

Tentávamos demarcar os limites da volta com a ponta dos dedos

Necessário retorno do delírio. Não, nunca será como abrir

O vento com as mãos, girar a manivela do saber

A vestir couraça medieval ao coração.

E quando

O canto cicatriza as feridas

Expõe os fatos do nada

Ser um dia sem cumprimentos

Da flor que se abre na superfície do tédio.

O enigma não se desfaz ao avesso. Como uma

Montanha englobo a outra e a outra sucessivamente

Para que seja nesse automóvel ao horizonte que atraca

Somente a névoa ou o som do rádio que antevê

As colheitas dos frutos da boa estação

Talvez ouvisse, colheria outras noites de neons, epigramas rosas

Segredos das bocas apertadas e não desatadas

E nada. Essa estrada vai pelos vales do vazio indefinível

Dos conselhos ou até uma vaga euforia na dança sorrateira.

Pensei muito, talvez dissolvesse a superfície do pó

Pensei muito tudo sendo uma espera para novamente

E nunca se demarcar os limites na senda

Do horizonte, sempre em frente a fenda

Da fruta mordida. Avistava colheitas em madureza.

Mulher. Coral. Geografias da memória as rezas do vento.

Anotava a história original. Um homem era visto vestido de sonhos

Em camisa azul ao meio-dia em plena praça central uma estátua

De delírios se abre em real o concreto de nossos pensamentos.

ANNA APOLINÁRIO (1986) poeta paraibana, participou de várias antologias nacionais. Foi premiada no VI Festival de Poesia Encenada do Sesc Paraíba, em 2010 . No mesmo ano publicou seu primeiro livro, Solfejo de Eros, Na sequência, vieram Mistrais(2014) e Zarabatana(2016)

CORPOESIA

Escrevo para derrubar paredes

Cegar tua íris

Apunhalar as veias

 

Atear delírios

Traduzir-me em sílabas

Queimando dentro de ti

O QUARTO

Lúmen de livros

 

Arena antiga

 

As fábulas

esfaqueadas pela

chuva

 

Aquoso pacto de corpos

 

É líquido o amor

EPIFANIA

Grafito em tua alma

Um verso vermelho

Serpe sibilina

Estilhaço de estrela

Tatuo em tua boca

Que mordo com rimas

A flauta de fogo

Da minha poesia

SYLVIA QUEIMA

Vênus da alcova, Sílfide messalina

Viciada em adesivos de nicotina

Insone & neurastênica, dopada e deprimida

Permita-me lamber sua iconoclastia

Mariposa de danças noturnas

Fênix feérica, Noiva da Morte

Godiva

Camélia rubra,

jorrando seu perfume que asfixia.

Me põe nos lábios o vinho

docemente nínfico

Teus versos são belos crimes

Sinfonia de gozos e guizos

Teu punhal de palavras

Fogo que dança pelo meu corpo.

ELIZANDRA SOUZA(19 ) poeta, jornalista, editora da Agenda Cultural da Periferia, locutora da Rádio Comunitária Heliópolis. Co-organizadora da Antologia Pretextos de Mulheres Negras com Carmen Faustino e textos de 20 poetisas negras. Publicou o livro de poemas Águas da Cabaça(2012) e foi incluida em algumas antologias como Cadernos Negros, Negrafias, entre outras.

ESTOU AVISANDO, VAI MUDAR O PLACAR....

Já estou vendo nos varais os testículos dos homens que não sabem se comportar

Lembra da Cabeleireira que mataram outro dia?

E as pilhas de denuncias não atendidas

Que a notícia virou novela e impunidade

É mulher morta nos quatro cantos da cidade...

 

Estou avisando, vai mudar o placar...

A manchete de amanhã terá uma mulher de cabeça erguida dizendo:

- Matei! E não me arrependo!

Quando o apresentador questiona-lá ela simplesmente retocará a maquiagem.

Não quer estar feia quando a câmera retornar e focar em seus olhos, em seus lábios...

 

Estou avisando, vai mudar o placar...

Se a justiça é cega, o rasgo na retina pode ser acidental

Afinal, jogar um carro na represa deve ser normal...

Jogar a carne para os cachorros procedimento casual...

Estou avisando, vai mudar o placar...

Se existe algo que mulher sabe fazer é vingar

Talvez ela não mate com as mãos mais mande matar..

Talvez ela não atire, mas sabe como envenenar...

Talvez ela não arranque os olhos, mas sabe como cegar...

 

Só estou avisando, vai mudar o placar...

GAMELEIRA

“Seja em qual circunstância for

É em legitima defesa

O escravo que mata seu senhor”

Assim, Gama defendia os seus

Advogado por si mesmo

Autodidata das leis...

No esquecimento das páginas

Oficiais de nossa história

Luiz Gama -um guerreiro - sem memória

De filho liberto a escravo

Vendido pelo próprio pai

Lutador por um país sem rei

Trinta anos antes da mentirosa abolição

Pedia dinheiro na rua - contribuição

Para a compra das alforrias dos irmãos

Insubmissão, herdada de Luiza Mahin

Sua majestosa mãe que deixou a Bahia

Temida pelos senhores – Malês, Levante!!!

Avante, não deixou legado financeiro,

Mas eis aqui conselho para Benedito seu herdeiro:

“Crê, que o estudo é o melhor entretenimento”

“E o livro o melhor amigo”

“Desconfie sempre dos poderosos”

Gama, Gama, Gama

Gameleira de raízes profundas

Agarre-se a um dos seus galhos e não se descuida!

A diabete matou esse homem,

mas não a essência dos seus ideais...

“Seja em qual circunstância for

É em legitima defesa

O escravo que mata seu senhor”

Matamos nossos senhores

Quando pegamos em canetas

O estudo é um tiro certeiro...

Modernas cartas de alforrias

Vamos nos defender

Seja na palavra escrita ou na falada

Poesia ou embolada...

Beba na gamela da fonte de Luiz Gama.

Gameleira de raízes profundas e profanas.

ENSAIO SOBRE NÓS

Nossas afinidades

Tardes de preciosidades

suco de cacau com graviola

um samba de Cartola

ele fumaça, eu incenso

ele melodia, eu silêncio

Nossas contendas

Resolvemos com oferendas

Ervas de benzedura

Mordida na cintura

Lambida no pescoço

Esquecemos do almoço

Somos estações do ano

Periodos de estiagem

Épocas de chuva

Uma manhã ele me seduz

Uma noite ele me ama

Entre maracatus e blues...

MULHERES CAMPESINAS

No meio da noite, mãos de foice

Pra lavoura de pragas, mulheres gafanhotos

Noticie a invasão, nosso nome é ocupação

Para germinar capital estéril,

Sangue nosso não regará solo infértil

Antes que o planeta seja vento e poeira

Guardamos sementes boas nas carapinhas

Espalharemos nos milharais nossas bandeiras

Mulheres em luta, escrito nas muralhas e nas veias

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 18/08/2016 às 14h06



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