17/07/2009 16h47
DUVIDAR DA MORTE.COMO QUEM A VISSE.BEIJAR TEU ROSTO.COMO SE EU NÃO EXISTISSE.
“A imagem poética ilumina com tal luz a consciência, que é vão procurar-lhe antecedentes inconscientes. Pelo menos, a fenomenologia tem boas razões para tomar a imagem poética em seu próprio ser, em ruptura com um ser antecedente, como uma conquista positiva da palavra. A poesia é um dos destinos da palavra. De uma palavra que não se limita a exprimir idéias ou sensações, mas que tenta ter um futuro. Dir-se-ia que a imagem poética, em sua novidade, abre um porvir da linguagem.” É com esta preciosidade escrita por Bachelard, filósofo da ciência e da poesia, que inicio a apresentação deste jovem e promissor poeta: Rodrigo Petronio. Com apenas 34 anos, ele já publicou História Natural (São Paulo,2000), Assinatura do Sol(Lisboa,2005), Pedra de Luz (São Paulo,2005), e este excelente e premiado Venho de um País Selvagem (2009) –um país definitivamente poético e certamente não contaminado pela prosa, como assinala Alfredo Fressia, poeta e tradudor uruguaio na apresentação do livro. A poesia de Rodrigo é a poesia de um poeta inspirado e visionário. Seus poemas estão filiados à vertente órfica aprofundada e renovada por Rainer Maria Rilke. Mas como ele mesmo diz, falando de suas predileções, existem três famílias de poetas admiráveis: os da Iniciação, Rilke acima de tudo. Depois os poetas da Terra: Saint-John Perse, Rimbaud. Em seguida, os poetas do Negativo: Pessoa, Celan, Trakl. A minha impressão é de que toda poesia é uma viagem ao desconhecido. Por isso, suponho que o sentido poético está, quase sempre, muito próximo do sentido místico. Acho que, através das palavras, o poeta procura expressar uma relação direta e íntima com tudo aquilo que é pessoal, desconhecido e misterioso. E isso mostra forte semelhança ao procedimento de um místico, que busca a comunhão — com a verdade ou com a divindade — de um modo também direto, concreto e íntimo. Aliás, para clarear um pouco mais a expressão desse pensamento, convoco as palavras do poeta alemão Novalis. Ele dizia que a poesia é a representação da alma, representação do mundo interior em sua totalidade. O sentido poético representa o irrepresentável. Ele vê o invisível, sente o insensível. O poeta é, ao pé da letra, sujeito e objeto ao mesmo tempo, alma e universo. Ou seja: a poesia é um imenso paradoxo. Mas antes de adentrarmos aos poemas de Rodrigo, gostaria de relacionar alguns versos que me impressionaram bastante. Eu sou o Homem. E agora me ajoelho contrito ante o sol negro em minha prece; Não encontramos o milagre no poço; A perfeição suja toda a beleza com seus pés gelados; Duvidar da morte.Como quem a visse. Beijar teu rosto. Como se eu não existisse; A morte me inaugura na semente; Fora do teatro um deus me espera; O que colho pode vir de uma água mais antiga; Morro. Eterno desconhecido.Eternamente Outro; O lírio desposa o besouro e o renega; Sou pobre.Nada tenho além da alma; Estou além do que penso e aquém do que sinto; Deus só nasce quando perde o centro;Hoje tenho sua face: fonte viva retirada de uma taça; Só os erros inscrevem um rosto humano no espelho; Anoitecer a foice que só quer mostrar seu brilho; Isto é o poema, silêncio rasgado pelo murmúrio das vozes mais antigas; A poesia: morte na luz; Tudo expira em nós: instante e estrela. Império e hera; Poderíamos ter sido apenas duas crianças em uma esquina. ANTÍTESE O poema me espera, fora de mim, Para que eu me realize nele. A sua falta de essência me completa, E o que nele sobra me extravasa. Transbordo em seu sinal de menos: Sua ausência de ser é minha casa. Sustenho seu corpo, sem mistério. Adentro seu espaço, sem pegadas. Encontro-o quando perco o centro. Menor que a parte, ele não me abarca. Maior que o todo, ele é meu avesso. Não é o mundo o que ele me revela. Não é a mim mesmo que nele procuro. Não é a poesia o que ele desperta. Mas o hiato que vai da idéia à fala Onde o coração bate mais livre. Mergulhado na matéria mais precária, Pulsa em nós ao ritmo da estrela Tanto mais imortal em quanto vive, Eternidade da luz que se apaga. Isento da palavra que o aprisiona, Alheio ao conceito que o mutila, Imerso em cada coisa que o transcende, Mergulhado no mundo sem limite. Vou ao poema, retorno ao nada: A voz me liberta de minha alma E assim eu sou o Outro que me habita. ASTARTE Para Dora Ferreira da Silva In memoriam O fio se rompe um deus corta os laços Que te prendiam às limalhas da terra E ancoravam a noite em sua imobilidade Sabes flutuar porque já cantas Pelos dias do cristal a voz dos galhos O frio sentido agora seus estalos frescos O canto molhado das notas desce do telhado E se levanta com tuas asas O voo certo da ave migradora Que retorna feliz à eternidade Pode vir a luz Com suas setas delgadas e o orvalho incontinenti Rosas sobre as omoplatas da deusa sonhadora Pantomima sem máscara que nos abençoa Pode vir a noite dos tempos Suave intrusa de nosso cansaço Porque já não tens lastro com a sombra E o vaso agora repousa poroso solitário Se mistura impregna é todo espaço Passos de água no interior da água Gestos de ar no interior do vento Tecidos cujos nós são nossos passos Imagens que nos sonham por dentro Pura transformação Da alma exterior que o coração prepara E nada mais te ampara sopro nuvem nenhum elemento Compõe o corpo de baile jaz sem centro E nada mais explica a matéria de sonho De que somos feitos Patmos Cnossos Delfos Epidauro Tocas traduz e te confundes com uma alma etrusca E te são alheios todos monumentos Não há limite certo vês tudo pleno Desde a manhã do mundo que tua voz prepara Se nos encontramos retornamos a teu seio Se nos tocamos atravessamos tua pele Se nos afastamos vamos ao teu encontro Se nos ignoramos és o nosso espelho Nada mais separa porque tudo adere Mas não somos lúcidos como os animais que cantam Porque antes de nós já exististe Foste o espírito que cai dentro da matéria O primeiro sopro do primeiro poeta O poema escrito na primeira pedra O primeiro respiro da flauta emancipada O que para traduzir a luz recorre à vértebra O poço que se atravessa é a palavra poço E somos esta floresta quando passamos por ela Música da qual somos meros mensageiros Espírito de magma talhado em ágata Água primordial que todo rio espera E todo corpo encontra quando se liberta Aqui ali alhures sempre o tempo queima O combustível de seus dias e seus mortos O mundo inaugura suas leis casas celeiros Mas nos contentamos com nossa luz difusa Clareira em meio à névoa e infensa à sombra coletiva Abismo do mundo: o dia leve eclipsa Tebas Alexandria Creta Chipre Metamorfose de rosas sob os pés de um anjo Porção que sobra ao ser e a seu contrário Conjunção de nuvens rosto vascular alheio ao espetáculo Olhas: inscreves tua sombra nestas heras Recolhes a água mais antiga em tua hídria Habitas essas terras com tua vida Obra maior que nascer não foi criada A maior de todas obras se respira Teus olhos grandes e redondos Abrem-se atrás de arbustos ervas cinamomos Deusa das transformações simples Águas vestidas de crisântemos A fonte rouca canta a tradução da lua em arte Não foste porque a aurora vacila E todas as formas esperam ser por ti reformuladas Não partiste Porque a rosa persiste alvorecente E nenhuma carta foi aberta E nenhuma palavra foi dita E nenhum livro foi lido E nenhuma tinta foi inventada E não escreveste nenhum poema Na superfície da terra com tuas asas Aqui nascemos para a eterna novidade Aqui celebramos a terra e a casa da lua Há de se recolher em teu jardim Alheia ao murmúrio soprado nos tijolos Terracota de Micenas onde os deuses dormem Doces muros de Tiro onde os santos se apoiam Janelas de Mitra por onde nossas almas olham Sêmele citarista desperta as fontes Cibele ática de pequena proporção Ártemis do bosque fecundidade e zelo Astarte que precede a terra Vida que mana de seus úberes e veios Pacto natural com tudo o que existe Selo que se rompe nascimento supremo Como o primeiro beijo Deméter te convoca para o seu reino Para que possamos ver o limite de nós mesmos Para que o trigo possa nascer em meio ao feno Para colher o mel o almíscar a mirra o ouro Não quebramos o azul do céu Não temos raiva nesta hora de exílio Não marchamos contra o muro Não manchamos o rosto do inimigo com o perdão Não acariciamos o filho de nossa malícia Não conspurcamos este fruto com o ressentimento O punho em riste contra o tempo que nos aniquila As aves é que são esculpidas pela brisa E por nossa razão mortal em seu consentimento Dorme hora morta Vocifera litania dos meus deuses provisórios Porque o desespero há de ser afirmativo E toda a chaga é em si a redenção de toda ferida Arde dorso vento música silêncio de suave musculatura Queima mesa cavalo crina azul do tempo esculpido entre urtigas Sopra mundo natural estrela anfíbia repasto de meu amargo pensamento Alquimia feliz de todos seres vivos em uma só forma de vida Brame constelação Pulsa contra os vivos que vegetam sem saída Sabes te visitei em uma tarde de maio A porta entreaberta as ervas cresciam Cabelos brotavam da lareira como saibros E eras uma palavra escrita em sangue: imortalidade Nesse dia Cena derradeira do mundo antes do fio de Átropos Onde a alma anteviu sua viagem Não interrompi o curso da semente Não interroguei o motivo do rio Não invoquei a razão para explicar a forma da Terra e a pedra senciente Porque sei que estás aqui para sempre ali agora além Entre a hipótese da nuvem e o segredo do ventre Publicado por Rubens Jardim em 17/07/2009 às 16h47
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