JORGE DE LIMA: O MAIOR, O MAIS ALTO, O MAIS VASTO, O MAIS IMPORTANTE, O MAIS ORIGINAL POETA BRASILEIRO
Desde 21 de junho de 2006, o livro Jorge, 80 Anos está disponível no meu site, item e-books. Publicado em 1973, em homenagem aos 20 anos de sua morte e aos 80 de sua vida, Jorge ,80 Anos foi o estopim de um movimento maior: o Ano Jorge de Lima. Tanto o livro quanto o ano foram uma iniciativa minha com o objetivo de recuperar a memória e a trajetória de” um dos casos mais apaixonantes da poesia brasileira” conforme afirmação de Mário de Andrade.
Mas não foi só o poeta da Paulicéia Desvairada que entoou loas à Jorge de Lima. Raduan Nassar. autor de um livro absolutamente impecável e imperdível chamado Lavoura Arcaica, disse o seguinte: "É um caso estranho na vida cultural brasileira, o desconhecimento de Invenção de Orfeu nos meios universitários, assim como em outras áreas --até as especializadas, pois sua publicação, daqueles tempos até nossos dias, fez, de repente, de todos os outros poetas mais ou menos oficiais - como Drummond, Bandeira, Vinicius, Cabral --poetas de grandeza menor."
E o badalado poeta Mario Faustino, morto prematuramente, chegou a afirmar isso: "Para nós, todavia, pelo menos neste momento de nossa própria evolução, é Jorge de Lima o maior, o mais alto, o mais vasto, o mais importante, o mais original dos poetas brasileiros de todos os tempos."
E foi graças ao apoio de um time da pesada, incluídos aí Drummond, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Raduan Nassar, Stella Leonardos, Povina Cavalcanti, Álvaro Alves de Faria, Walmyr Ayala e muitos outros, que o Ano Jorge de Lima conquistou dimensões nacionais e expressiva cobertura da mídia. Motivadas por essa reviravolta na trajetória do poeta Jorge de Lima, várias editoras republicaram suas obras. Até a Aguilar relançou, em 75,as Poesias Completas de Jorge de Lima, em convênio com o MEC/INL, a preços populares.
Para se ter uma idéia das dimensões do Ano Jorge de Lima, das suas repercussões e dos seus resultados, basta registrar o seguinte: Jorge de Lima foi tema de samba enredo da Mangueira no carnaval de 1975. Mas as repercussões não ficaram restritas à maior festa do povo brasileiro. Edu Lobo e Chico Buarque debruçaram-se sobre o poema O Grande Circo Místico, compuseram músicas e um disco foi lançado com grande sucesso.Um espetáculo de balé também foi montado, em cima do poema, e obteve grande êxito.
Fracasso mesmo foi a baixíssima procura que o livro Jorge,80 Anos obteve, em meu espaço, aqui, na Internet. Em pouco mais de três anos, ele só foi “baixado” por cinqüenta e oito visitantes. Ou seja: uma média anual de 19 raríssimos e escassos leitores. Apesar disso, não estou convencido que esse fracasso não possa ser revertido. E passo para vocês, trecho inicial do livro. E escolhi a melhor pessoa para falar do poeta: o próprio poeta. Aí embaixo está um trabalho de montagem de textos, espécie de introdução à vida e à obra de um dos mais importantes poetas deste país.
Nasci em União, no Estado de Alagoas, a 23 de abril de 1893.
(Lembrança da casa grande tenho muita. Mas forte mesmo, lembrança que eu possa escrever, registrada nos olhos abertos, nos ouvidos indignados foi o grito do Joca, a sua cara rompante:
-- Guia de cego! Guia de cego !
Sim, eu estava guia de cego. Puríssimo. Completíssimo, segurando a mão dela, tomando conta da menina cega- eu de seis anos,angelicamente besta, irresponsável, anódino, transparente como uma infância).
Criança cambembe eu tive dons que perdi. Dons de apreensão da verdade, de Deus me tocando, dons além das medidas da razão humana.
(Faz de conta que os sabugos são bois...Faz de conta...e os sabugos de milho mugem como bois de verdade...e os tacos que deveriam ser soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...É boquinha de noite no mundo que o menino impossível povoou sozinho!
Em certa noite éramos seis em torno de uma esfera armilar povoada de insetos.
(O candeeiro familiar, grande, belga,a querosene em que havíamos estudado carta de ABC, tabuada, fora deixado de lado. Prá que belga onde havia luz elétrica ? Porém o jeito de estudar residia na presença do candeeiro. A luz, em cima, da lâmpada elétrica, era fria e distante. Minha mãe compreendeu o efeito montessórico do candeeiro. Mandou buscá-lo. Apenas modernizou-o, substituindo o pavio por lâmpadas elétricas. Então o estudo vinha. E vinham meninos da vizinhança atraídos pelo que se passava à luz do candeeiro.)
Por volta de 1903 a mudança de nossa família prá capital do Estado.
(Caminhos inventados por quem não tem pressa de ir-se embora. Pelos que vão à escola. Pelos que vão à vila trabalhar. Pelos que vão ao eito. Pelos que se despedem da vida que é tão bela... Caminhos de minha terra onde perdi os olhos e os passos da meditação... Mundaú! --rio torto -caminho de curvas por onde eu vim para a cidade onde ninguém sabe o que é caminho.)
Em Maceió, meu pai adquiriu uma casa térrea na rua do Rosário.
(Vi-me fascinado pela Igreja do Rosário adiante de minha casa. Na torre desse templo o galo metálico sotoposto atravessa meus livros e perdura em Livro de Sonetos e Invenção de Orfeu e toma o colorido de Orpington azul que meu tio Argemiro Barroso importava para o seu aviário à margem da Lagoa Mundaú.)
Antes de maio findar li Inês copiada por meu pai. Ele amava aqueles versos de Camões.
(Eu era os meus sete anos, vendo-a vejo a própria poesia que surgiu intemporal, poesia que antevejo, poesia que me vê, verá, me viu. Musa aparecida de cem faces, Inês mirante, chamada Inês de muitos nomes, antes, depois, como agora, hoje distantes. Eterna, linda Inês, paz, desapego, porta recriada para os sem sossego.)
Rimando infantilidades, porém muito analfabeto, minhas bestagens agradavam mãe orgulhosa de seu filho.
(Meu pai me bote na escola/ de meu velho amigo Lau/ quero aprender com ele/ versos e não b, a, bá !!! ( 7 anos ). Tenho pena dos pobres, dos aleijados, dos velhos./ Tenho pena do louco Neco Vicente/ e da lua sozinha no céu.( 9 anos ).Vi um menino cego/ chorei por este menino. Minha tristeza não nego/ Vi um menino cego/ Choro por este menino ( 10 anos ). Moro em frente da Igreja/ Vivo feliz com meus pais./ Menino que mais desejas/ Quando entras, quando sais? ( 11 anos ).
De mãos frias e trementes, apresentei ao prof. Moreno Brandão, poeta e escritor, as folhas rabiscadas.
- De quem são?
- Meus.
- Quem lhe ensinou isso?
- Aprendi por mim.
- Menino, na sua idade não se deve pensar nessas coisas. O tempo não chega para o estudo. Esse negócio de verso atrasa um bocado. Mesmo porque isso não é verso. Tudo pé quebrado, errado. Prá se fazer versos é preciso estudar métrica.)
Fui à livraria comprar um livro de métrica. Não tinha. Ninguém tinha.
(Mais tarde, meu primo explicou mais ou menos como era. Nos dedos. Oh! que saudades que eu tenho. Queu. Compreende, uma só. Da aurora, dau. Compreende? da-au, duas. Dau: uma só sílaba. Compreende? Oh como é fácil! Facílimo!)
Comecei a fazer versos segundo as formas consideradas parnasianas, e um desses sonetos entrou para as antologias.
( Lá vem o acendedor de lampiões da rua!/ Este mesmo que vem infatigavelmente// Parodiar o sol e associar-se à lua/ Quando a sombra da noite enegrece o poente!//
Um, dois, três lampiões acende e continua/Outros mais a acender imperturbavelmente/ À medida que a noite aos poucos se acentua/E a palidez da lua apenas se pressente.// Triste ironia atroz que o senso humano irrita:/--Ele que doira a noite e ilumina a cidade,/ Talvez não tenha luz na choupana em que habita.// Tanta gente também nos outros insinua/Crenças, religiões, amor, felicidade,/ Como este acendedor de lampiões da rua! )
Ainda com a cabeça inchada por diminutos sucessos, chego ao Rio.
(Onde está a calma deste mundo? Onde está o sossego? Onde está o sono? Onde está a infância sem crime? Onde está a namorada de velocípede? Onde está o pátio com as andorinhas e a fonte? E o rio de tua meninice? E as tardes de maio? E as primeiras estrelas surgindo lá em cima da serra? E os sonhos que penetravam pelas pálpebras? E as sombras na parede? E o velho candeeiro familiar? Isso tudo onde está ?)
Arranjei velocidade. Virei homem de cimento armado.
( Libertei-me do ar, libertei-me do fogo, libertei-me da água, libertei-me da terra. Sou escravo da máquina. Transformo lobo em cão doméstico, transformo raposa em lulu, transformo, venço, faço tudo, tudo, pois eu mesmo sou lulu, lobo e sou raposa. E sou escravo da máquina. E sou escravo da máquina.)
Cadê você meu país do Nordeste que eu não vi nessa Usina Central Leão de minha terra?
(Ah! Usina, você engoliu os banguezinhos do país das Alagoas! Você é forte, Usina Leão! As suas turbinas tem o diabo no corpo! Você geme! Você grita! Você está dizendo que USA é grande! Você está dizendo que USA é forte! Você está dizendo que USA é única! Mas eu estou dizendo que você é triste como uma igreja sem sino...)
Prá donde você me leva poesia-uma-só ?
(Ó irmã, agora que as noites vem cedo e paira por tudo uma tristeza enorme e
o silencio é tão grande que os cães enlouqueceram nas ruas, irmã, vem me relembrar que crescemos juntos quando os dias eram compridos e diferentes. Irmã, se tu sabes signos para mudar o tempo, vem. Vem que eu quero fugir para outras paragens onde as gaivotas sejam menos inúteis e haja um coração em cada porto.)
Cadê a luz trêmula da vela para alumiar o meu poema antigo?
(O lirismo perdeu a sua liturgia. As lâmpadas Osram velam funebremente a poesia.)
É muito tarde! E tudo é uma inutilidade!
( A noite não tem berços embalando, nem borboletas noturnas, nem as saudosas assombrações. A poesia não consegue encontrar o amor nem os lábios sensuais. Mas de repente um clamor acabou de se ouvir. Será a ária dos meninos mortos?
É muito tarde! A noite não tem flores, nem nuvens, nem cabras-cabriolas. A poesia não consegue ouvir as fontes nem os acalantos nem os pássaros escuros. Meninos mortos, a noite que veio é sem fim? )
Prá donde que você me leva poesia-uma-só?
(Há ainda muita coisa a recalcar: ó linda mucama negra, carne perdida, noite estancada, rosa trigueira, maga primeira. Há muita coisa a recalcar e esquecer: o dia
em que te afogaste, sem me avisar que ias morrer, negra fugida na morte,
contadeira de histórias do teu reino, anjo negro degredado para sempre, Celidônia, Celidônia, Celidônia! )
Porém falo de meu ser todo poros, todo antenas.
(É preciso se falar das criaturas, verdadeiras criaturas animadas, das vivências totais, arbítrio e tudo, alma, corpo funesto e essa imortal perpetuidade além, Deus nas alturas, nomes de terra e nomes eternados. Celidônia, Floreal, Inês, Lenora, Violante e outras criaturas exumadas. Depois a minha vila. Depois os meus tontos passos noutras vidas, em Mira-Celi, muito longe, longe sumidamente longe, e aquém.)
E aqui estão nossas musas dos sete anos, inda invisíveis, todavia perto.
(Eu não sei se é minha musa, meu silêncio ou minha irmã, ilha, gaivota ou maleita, ou quase tudo, ou menina enteada e foragida, criada dentro dos becos, tempo
ou data ou nome ou algo em salinos ventos idos. Seu nome? Quero varrê-lo deste navio deserto, quero mesmo recalcá-la, desmontá-la e libidá-la: inesá-la, lenorá-la.)
Nesse instante tudo parecia em pauta dupla, contraponto, eclipse, coisa obscura, difícil de contar.
(Um transe de magia havia no mundo exaurido a ponto de espantar: Mira-Celi descera entre o ar e o mar.)
Eis o vago tropel dos seres todos nascendo amortalhados sem querer.
(Não sei se era memória o que eu falava, se era palavra muda o que eu ouvia, sei de imensas presenças que giravam, enxame numeroso me seguia.)
E há seres, seres nunca vistos, ó esposa fria, rosa da morte, rosa do que for.
(Chamo as coisas com os versos que eu quiser. O nome afinal o que importa à essência de um poema?)
Celidônia, Floreal, Inês, Lenora, Roselis, Violante, Abigail, Beatriz, Isadora, Albertina.
(As pessoas que eu nomeio são pessoas que existem.)
Quem me vê, vê janelas de infância num sobrado.
(Candelabro ou veleiro me persigo.)
O rio de minha terra é o ABC da minha meninice.
(O meu passado correndo para o mar.)
Ouço o meu nome.
(Chamaram-me
me chamei
ou o tempo me chamou?)