09/01/2011 17h49
Sem dar fuga para as rugas e sem procurar abrigo no jazigo
O POETA ESTÁ DE VOLTA SABENDO QUE AMOR É SEMPRE UM SÓ, GENITAL E GENITIVO, UM DEUS E UM SUBSTANTIVO, UM FIO DE LIBERDADE E UM LAÇO QUE VIRA NÓ.
Ao abrir este espaço ao poeta Carlos Soulié do Amaral, não poderia deixar de mencionar um conceito desenvolvido por Jung: a sincronicidade. Que em termos mais simples pode ser associada ou substituída pela expressão: coincidência significativa. Claro que é o mínimo que posso dizer a respeito de um fato que nos aproxima radicalmente: tanto Soulié como eu ficamos trinta anos sem publicar livro de poesia! Eu ainda participei, durante esse período, de diversas antologias publicadas nestas paragens e no exterior. Mas, que eu saiba, o Soulié tornou-se bem mais refratário e nos privou de vez de sua voz poética -- já tão bem recebida pela crítica nos tempos de nossa juventude. Só para lembrar, Carlos Soulié do Amaral ganhou, em 1966, o prêmio Jabuti na categoria poesia. E ganhou, no ano seguinte, outro Jabuti –como crítico. Pra dimensionar a importância disso, basta citar alguns ganhadores: Cassiano Ricardo(em 1965) , João Cabral (em 1967) e Carlos Drummond de Andrade(em 1968). Para um jovem poeta de 20 e poucos anos, lúcido, sensível e inteligente, essas premiações poderiam estimular a realização de uma obra mais numerosa. Mas com Soulié deu-se o inverso. Ele só publicou três livros de poemas, todos nos anos 60: Tributo Poético (1963), Procura e Névoa(1965) e Morte na Rua Simpatia(1967). A única exceção é Verba, livro publicado em 1999 graças aos “amigos e companheiros reencontrados”. Mesmo sem lembrar claramente de nossas conversas na juventude e de três reencontros poéticos acontecidos nos últimos dez anos, atrevo-me atribuir ao poeta Carlos Soulié do Amaral o entendimento de que a poesia é quase uma religião, um gênero sagrado. Pelo menos é o que depreendi do texto de apresentação. Ali ele cita o Evangelho desse jeito: “Como sabemos, Verba é o nominativo plural de Verbum. In principio erat Verbum, diz o poeta João no prólogo de seu Evangelho.” Depurado pelo tempo e pela vida, Soulié continua sendo um poeta conciso, econômico, de fina sensibilidade e com hábil domínio do seu instrumento: a palavra. Daí o surgimento dos ritmos, das pulsações verbais, das sonoridades e de tudo aquilo que se situa nos limbos misteriosos e nos abismos existentes dentro de cada um de nós. Afinal, qualquer poema não deixa de ser a manifestação de um mistério. Um mistério original que está na sua própria origem--e que só o poema pode revelar. Portanto, vamos as revelações do poeta Carlos Soulié do Amaral. Antes disso, porém, gostaria de lembrar que a condição de poeta e o exercício da poesia já causaram sérios problemas a Soulié . Suspeito de atividades subversivas por fazer recitais de poesia em clubes, escolas e até mesmo em boates, ele foi preso em 1964. Em 1965, quando organizou o histórico Comício Poético da Praça da Sé, Soulié foi, juntamente com seus companheiros Álvaro Alves de Faria, Eduardo Alves da Costa, Lindolf Bell, Rubens Jardim, Clarice Jacy Piovesan e outros, cercado pela polícia. "O número de pessoas que nos ouvia era tão grande que a polícia não pôde fazer nada", recorda ele. "A massa de gente interessada e curiosa em relação ao que dizíamos, formou um escudo protetor que nos salvou de complicados contratempos.” Com a palavra o poeta: VERBA I A palavra acácia Cai em cachos Se desmancha em ramos Se avoluma em folhas Pulsa Em flor e luz Treme Quando o vento vem E se molha toda Quando a chuva. A palavra acácia Pode ter um ninho dentro. Afora todo o céu E terra Que entrelaça. A palavra número Tem letras Como acácia. Mas que sol a aquece? Verba ll A palavra número É sempre uma só: É a palavra um. Da simplicidade Que veste a unidade Tudo mais advém Num jogo que enlaça E aparta, contém E dispersa, mede, Acresce, subtrai E nunca tem fim. Mas toda a magia Dessa uma palavra Foge da poesia. Bem melhor o grito De um gato, de um rato. Pois isso arrepia. Verba lll A palavra número É fonte de guerra, Fruto de botins Ou afã de afins. A palavra número É insinuante. Entra até na acácia: Quantas são as pétalas De um cacho maduro? Quantos são os tons De verde no amarelo? A palavra número É quantificante, É socializante. Decreta e concreta. É a raiz da usura. É uma legião. Verbo que exacerba, Em tudo põe grilhão. Espelho l Além do brilho álgido e polido Que treme nesse campo de cristal, Há chumbo e estanho, há um peso denso e liso Marcando a indiferença de uma frente Contrária a tudo em plano horizontal, Sempre impassível revelando o inciso, Esfíngica, incomunicável, pronta A devorar depressa o que a defronta. E o que a defronta, o devorado, vê Nada brilhante e ardente como gelo, Mas só o que ainda tenta resistir (com seu cansaço e com o seu cabelo Seco e desfeito, com seu rosto inchado E sem disfarce, a boca espessa e amarga) À fácil aparência do cristal Opondo, em oferenda matinal, Aos metais densos substância igual: Uma face onde as rugas podem rir A gosto, do desgosto de existir. SONETO DA ALEGRIA De nada, ou quase nada, uma alegria Criar e permitir que nos aqueça E acenda o vôo e a voz da fantasia Provando-se à exaustão adversa e avessa. Uma alegria que dê fogo à fria E brumosa jornada e não se esqueça De transbordar, cravando-se travessa E incontida, no coração do dia. E que por ela os nossos corações Se deixem, sem constrangimento, ser E fluir, como fluem as canções, Como fluem os rios, sem saber Nem indagar as mil ou mais razões De tudo quanto vive e vai morrer. Despertar Por mais que pese o imemorial e vasto Cansaço, e a náusea e o asco, Por mais que tudo se revele gasto, Há´que tentar ainda resistir Ao peso, à náusea, ao asco E a pálpebra da pálpebra soltar E permitir que uma vez mais se faça Aquela bruma fluida e elástica Que em sonho e frio se entrelaça Uma vez mais E, lentamente, qual ginástica De lesmas na fumaça, Uma vez mais Abrir os olhos para ver a treva De pelos brancos ficar salpicada. E pouco a pouco, emergir dela Até domar essa tordilha cor, Mista de sono, noite, madrugada, Que empina o dia, mais um dia Subitamente aceso na janela. Publicado por Rubens Jardim em 09/01/2011 às 17h49
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