Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
05/03/2013 19h24
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (30ª postagem)

 

DORA FIGUEIRA LOCATELLI (1941) poeta mineira, fez mestrado em língua literatura brasileira pela UFRJ --e vive no Rio de Janeiro. Em 1971, com os poemas ainda inéditos de Árias em Solidão Maior, conquistou o prêmio Fernando Chinaglia, da UBE. Onze anos depois, ganhou o mesmo prêmio. Mas, desta vez, com os contos de Abre a Janela, Maria! Participou da coletânea Com a Boca no Mundo(1985) e da antologia Sete Vozes(2004). Seu livro de estréia A Raiz do Tambor só foi publicado em 2011.

FIM DE SEMANA

Despeço-me do mundo
como quem arruma bolsas
para um fim de semana.
A vida abriu a boca
e
ouvi verdades desconhecidas.
Calço pantufas e flutuo serena
sem pressa.
Feito um pássaro que abre as asas
e se dilue no horizonte.

Despeço-me numa paz silenciosa.

 

DESTEMPERO

                    Canto como quem risca a pedra,

                                                          (Hilda Hilst)

Nunca serei comedida.

 

Do tronco velho de meus versos

as palavras escorrem

dilacerações sem pudor

secreções de morte e vida.

 

Sou um animal comovido.

 

CARIMBO

A memória do tempo

deixa seus sinais:

nódoas de dedos

nas folhas da janela

marcas de suor

nos óculos inúteis da avó

esquecidos no fundo da gaveta.

No suspiro de um susto

ela está diante de mim e inteira

as chaves na cintura

o coque grisalho

os olhos de desespero

os gemidos da agonia.

Tempo de sobressaltos.

A ameaça da morte vem,

como uma espada pairando acima

atada a fino fio de cabelo.

 

O coração desembestado

ó nó na garganta:

cravados em mim

como carimbo

por toda a eternidade

.

VISITA

— Menina, pega no cabideiro

o chapéu do compadre
que ele já vai com pressa!
No feltro do chapéu do compadre
um cheiro entranhado de suor salgado.
Aroma desconhecido.
Naquele chapéu descubro
o cheiro de homem
e era tão bom
e com tanta gula cheirava
que em encantei
até o pecado.

MARIA LÚCIA DAL FARRA  (1944) poeta paulista e professora de literatura, vive em Sergipe. Fez sua estréia com o Livro das Auras(1994) já mostrando uma voz poética afinada e original. Livro de Possuídos(2002) confirma isso e com Alumbramentos(2012) ela conquista o prêmio Jabuti, no ano passado.

Callas na escala ascendente

Inteira,

tua voz é um cone,

torre de catedral,

coisa tátil, que se avista,

mutável como caleidoscópio. É fósforo,

poço de petróleo: força que se arremessa

das profundas da treva e que

(de chofre)

perfura com sua agulha as nuvens

para ganhar penugem de pássaro

e adejar (mui devagar)

sobre o espírito.

 

Foguete é tua voz em busca do buraco negro

(olho terceiro)

turbina que se aquece entre coração e cérebro

e desenha ogivas de ignoradas paragens –

onde leio flor, lâmina

arcaica letra grega

que não entendo

mas que se inscreve no mármore dos altares.

 

Boi no pasto

Boi no pasto não tem patas.

Bóia as banhas ondulantes

sobre as bordas do capim

que (marítimo de ervas)

em superfície o conserva.

Está no seu elemento

e todo esterco trescala

ao verde que ele abate –

ilhas já dessa paisagem.

É o campo que se alevanta

no negro musgo do estrume

por seu turno resgatando

a larva à própria lavra.

 

Boi no pasto não tem peias

nem a terra lhe é fronteira.

 

Retrato de mulher de frente

De tanto esperar pelo meu olhar,

enrubesceu. Aguardou-o

anos a fio

mas emana dela ainda

a mesma timidez

igual esperança. Há

(quem sabe)

uma indagação impossível

na boca rubra e natural.

 

A aura do objeto

mistura-se a seu cabelo

como se a existência

tivesse transcendido o momento

em que por certo nos encontraríamos.

 

Malgrado estar eu aqui –

tudo nela ainda espera por mim.

 

Fruto proibido

Com suas nádegas lascivas de mulher

a maçã deita de costas

na cesta sobre a mesa.

Já de batom está pintada,

armadilha edênica no seu poço

- no ponto da voragem,

caverna de pevides.

 

Drácula, penetro

no seu espírito interdito,

no jardim das delícias.

Cometo (insensato)

a grande virtude capital.

 

JUSSARA SALAZAR (1959) poeta pernambucana, artista plástica e designer, vive em Curitiba desde 1986. É autora de Inscritos da casa de Alice (1999), Baobá - Poemas de Leticia Volpi (2002), Natália (2004),Coraurissonoros (Buenos Aires, 2008) e o mais recente Carpideiras (2011). Já teve poemas publicados nas revistas Tsé-Tsé (Argentina), Chain (EUA), Rattapallax (EUA),  Parque Nandino (México) e Galerna (EUA/Espanha).

(O mapa)

a palavra água molha

o verso e beija
e seus olhos atrás do meu
olhar quando o silêncio
atravessa  a noite:

o território líquido
das distâncias sem dor

a morte de d. manhã

Fechamos as janelas brancas

com o mais suave lençol de linho

— Repara o sol febril e essa brisa mourisca entre dormir entre velar o sono dos confins.

— Repara também Nossa Senhora das Horas passando de seu exílio errante. 

Há tanta luz, vê um rei, ele também passa pela janela

e esse rei era o amor que iluminava a rua

e o vestido rendado

rondando a manhã tão belo que a morte nem precisava.

A casa sisuda cerrou os vidros e cobriu

de sombras zumbiu a unção chuvosa da minguante.

A Senhora D. Pomba no parapeito

rompeu a adormecida manhã no abismo das velas de agosto.

Agora pisamos leve o seu reino misterioso e cobrimos

essa manhã de algodão

com o mais suave lençol de linho

 

a casa
[tema para a colheita das águas]

 

no espelho

diante de meus olhos

reluz o barro da moringa

no segredo que guarda

a água

 

nós dois

     eu e o espelho

bebemos o tempo

bebemos as paredes

carpimos o vento

e a tábua

da madeira os móveis

as cadeiras

a mesa que resiste

feito alma

no meio da sala

 

e a mão que

antes derramava

a água espelhada

nos copos insiste

límpida banha

o sal dos minutos

lava

nosso corpo sobre

o rio se à noite

as corujas riem

piam ao redor

como fantasmas

 

que o tempo

na casa das horas

passa

e meu retrato

feito de água

é vidro

segue a carne do rio

e recolhe as folhas

no vestido

que a correnteza

espalha:

 

colhemos o fruto

comemos o pão

guardamos amores

lavramos o chão 

 

Bestiário

a minha guerra será a tua guerra
não a guerra dos homens
mas a dos pássaros desgarrados

o nosso bestiário será esse
o do contrário nunca jamais
e a minha casa será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o do contrário e dos urubus diários
e a minha carne será a tua guerra

o nosso bestiário será esse
o dos monstros submersos que eunoé lembrará
quando a minha cruz for a tua guerra

então o nosso bestiário será esse
canto perdido sem prumo retalhado
sem dor sem beleza nem terra

e então a minha guerra será a tua guerra

 

SIMONE HOMEM DE MELLO (1969), poeta paulista, tradutora e libretista. Seus poemas em português estão reunidos nos livros Périplos (2005) e Extravio Marinho (2010 ). Viveu de 1993 a 2010 na Alemanha – Colônia e Berlim—e escreveu o libreto das óperas Orpheus Kristall (Munique, 2002), Keine Stille außer der des Windes (Bremen, 2007), UBU (Gelsenkirchen, 2011). Como tradutora, dedica-se à poesia moderna e contemporânea de língua alemã.

DOS TERRITÓRIOS

(UM ROTEIRO)

Prestes a romper
o cerco,
não mais contra-
cenar com seus
senos e co-
cientes.

Sem pensar
duas vezes, dis-
pensar sentidos
e sentinelas, re-
baixar a guarda
de fronteiras,
proscrevê-la.

Abolir alfândegas,
clãs e destinos.
Sem prós e pós-
tumos túmulos,
decepar a rosa
dos rumos,
dissipar ventos
(oito deles),
despir-se de
pares e díspares.

Minar
a margem
(terceira)
de um rio
anônimo.

Extra-
ditá-lo.

 

Ruído

Conchas dispersas

pelo mar de muros

ecoam outro outono

 

O raso das antenas

capta em parábola

a mensagem elíptica

 

Empoçada no côncavo

a mesma luz rasteira varre-ruas

infiltra-frestas agora transmite

Fora do ar

 

a tela alterna faixas

crespas ondas tecem

o marulho teledifuso

 

Coados fatos, feitos e ditos

a concha colada ao ouvido

escoa um silêncio rarefeito

 

Incide outonal

emite

um sol sem zênite

 

Noturno de Alt-Moabit

No teto, a guirlanda,

flora única ao redor.

O meandro em gesso,

era mero engenho

do que não cingia:

 

Elipse de um silêncio demarcado

a dedo,

suspensa à cabeça,

a esfinge decifra só

o que o dígito devora.

Ela olha, aquém da voz

:en_voi:la!notte:

dança noturna, a negra e

a taça, (who is the person?)

ainda por libar o vinho,

acrobático jogo de (shut up!

it’s dizzy’s soul) corpo,

outro gesto dela,

a adejar a cabeça,

acena em branco

 

:aqui jaz:

o que o silêncio circunscreve.

 

Em volta do fogo ausente,

as cadeiras eram arestas

a serem limadas por sinais

amenos       (wouldn’t you come

emitidos de longe: closer?)

um certo tecer de fio indistinto enleia,

ao eixo do retrós, imóvel redemoinho

de sílabas, segredos a fio,

(a drop of something?) des(no,)vela

e, lenta, retrossegue

(not yet.), sem ceder.

 

A voz dele sela à cera

(impossible to draw...)

o que a dela silencia.

De um arabesco celta

onde o fio da meada?

(...a woman)

 

De uma fotografia anônima

De porcelana, e a pele, máscara em branco ri

rente à face, e nesta sorriso menos, minguante.

Posam modelo e máscara entre tecidos, vasos

afilam ao fundo, da cerâmica abaula cada lustre.

Anônima. Jovem, peito descoberto, deitada segura

máscara junto ao rosto, ela à mostra até a cintura.

Prova sobre papel albuminado a partir de negativo

de colódio úmido em chapa de vidro; cerca de 1870.

Seminua, só pele entre estampas e dobras, exposta

ao tempo, até que a imagem, até o sorriso ceder em.

Gravado entre dentes, porcelana, já o riso em branco,

algo assombra, talvez por imune ao tempo, a sombra.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 05/03/2013 às 19h24

Site do Escritor criado por Recanto das Letras