04/06/2014 18h59
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (50ª postagem)
LEILA GUENTHER (1976) poeta catarinense, é formada em letras e estreou em 2006 com o livro de contos O voo noturno das galinhas , traduzido posteriormente para espanhol e lançado no Peru. Participou como contista de várias antologias e em 2012 foi selecionada no Programa Petrobras Cultural com o livro de poemas Viagem a um deserto interior. ANA CRISTINA CÉSAR eu também me mato todos os dias às três horas da tarde. depois volto às mesmas coisas de sempre até pensar de novo na minha próxima morte.
LESS nunca tive um lugar que fosse meu. o que tenho são mochilas, caixas de papelão, objetos descartáveis [usados inúmeras vezes. me resguardo atrás das paredes frágeis de embalagens e sacolas de [plástico. quando acordo durante a noite, é sempre em outro lugar. Um dia a [porta fica à direita; no outro, a cama é estreita. Às vezes [esbarro em objetos que surgem do vazio. nunca tive para onde voltar. Não lembro como é tomar água em copo. vivo nos livros. Os que estão guardados, longe. Fiz deles minha [casa. Construo com páginas e paciência o teto, as janelas, [o minúsculo quintal. já faz tempo que a escova de dentes não habita uma gaveta. já faz muito tempo que desaprendi a utilidade dos cabides. MUSHIN quando se desfaz a teia do sim e do não YÚGEN dentro da terra é inverno o interior abriga a memória como um pensamento
ALINE BINNS (1981) poeta, produtora de cenários e ilustradora, faz parte do grupo Poesia Maloqueirista, criado a partir de leitura de poemas feitas em bares de Paraty na Flip de 2005. A SELVA Nas profundezas de minhas paixões sinceras Onde não existe o ecoar das palavras Mora a minha força mais bruta Cada vez que me abala a dúvida Com os poros em descompasso Eu sei que ela esta viva Devo dizer que estou livre apenas onde não há palavras Devo dizer que aperto, eu mesma, minhas amarras Cada vez que explico o que dizem os meus olhos Cada vez que corro pra longe de mim Cada vez que falam mais alto os contratos E eu sou uma selva Sou a mesma mata serena Que amedronta ao cantar da lua Sou uma deusa plena que tem medo de ser nua. Estou procurando velas para não estar sem trilha E apago com paixão velas e brasas Para não deixar de ser selva Nunca.
NUNCA A cidade está cheia de leões adormecidos à chaves de magia com tristeza vejo nossos guardiões cobertos de esquecimento.
sinto-me parte do poder que envolve tudo o que posso ver
MUDO respira, no fundo pra sentir que ainda está dentro. Com as mãos, o peito e as extremidades em formigamento. Pressente a queda. Sente a vertigem (vinho raro). Salta. se arrebenta... engasga com o sangue, degusta o suor e acorda, ainda tonto do que houvera, vivo, mas não intacto, mudo, mas não calado.
RUPTURA desejei ser uma passagem silenciosa mas o silencio aprofunda a corrosão, ...é como ver a gota caindo ver de cima e ir buscando o chão, e mais além do chão, o nada sem fim, nadar, ir e de repente parar, calar, não respirar pirar morrer
como quebrar como quebrar?
dalí partir, não voltar desfazer todos os caminhos, desconectar...
CAROL MAROSSI (1979) poeta paulista de São Jose do Rio Preto, é advogada e mestranda em direito do comércio internacional pela USP. Membro do Coletivo Vacamarela que organiza a FLAP! e edita o jornal de literatura contemporânea O casulo. Tem poemas publicados nas revistas Não Funciona, Zunái, Lapsus (Lima), e Série Alfa (Valência). Acordo árida, vestida de chumbo. Lembro de Munique, as densas noites de uivos caninos. E era verão no sul. Tão negro e viscoso, tal como os dispositivos de uma Halifax Law. Mas os ecos chegavam da Marienplatz
ressonando no meu peito, prestes a lançar uma ogiva nuclear. Pé ante pé você invadia a praça com seus imprestáveis patins de gelo (e era verão no sul). Naquele quarto minha alma degelava, líquida como chumbo.
DO ESQUECIMENTO Não pensa mais, não mais: o rosto dele fundiu-se aos carros e pelas ruas flutua incógnito, transpirando brancos cravos e ceras. Aquelas verdades nossas, na impossibilidade das carnes, teceram distâncias. Desenhamos trilhas impossíveis: sem volta.
Mas ainda se enroscam por entre os dedos as mesmas esperanças débeis e seguimos, insanos, como uma velha rendeira cega tramando infinitos. Futuro insosso, o nosso gravitando no prato de sopa : frio, trincado. De tudo, a saudade, esse dormir sobre espinhos.
DEPARTURE A plataforma vazia um fog indócil Malas no chão do trem e mãos decepadas acenavam para o nada das janelas.
Queria sussurrar no teu peito e cantar aquela canção démodé - palavras irresponsáveis -
Mas um apito insistente cegou minha voz e, kamikaze, dei-lhea brancura das costas: hic habitat felicitas
Rios afogando o frágil rosto convulso trilhando caminhos opostos aos teus.
MARÍLIA GARCIA(1979) poeta carioca, escritora, tradutora e editora. Estreou em livro em 2001, com a plaquete Encontro às cegas. Publicou 20 poemas para o seu walkman ( 2007). traduzido para o espanhol e publicado na Argentina, no ano passado. Participou do Festival de Poesia Latino-Americana Salida al Mar, em Buenos Aires. NUM DIA BRANCO segura a borda da mesa com o cabelo vermelho vamos para a polônia ver a neve andava tão dispersa assim ele nunca conheceu a família com ganas de frio. sempre aquele movimento preciso ler outras coisas a frase cortada no mesmo ponto fresta de luz onde fala uma gargalhada assomada à janela quando o vê do outro lado da rua procurando o castelo. cabelo curto, segura a ponta da mesa e mastiga as sílabas em sua língua.
SVETLANA na véspera de sua partida para ny, emmanuel hocquard datilografa um poema de george oppen em sua máquina de escrever underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar para barcelona aqui não fico mais nem um dia dizia no café com nome grego que lhe fazia falta ver as coisas invisíveis daquela cidade e seu marido na contramão carregando no braço o menino sem língua, tentando alcançar o que aparecia do outro lado do mar se alguém ainda viria para ajudá-los nesta época do ano a tormenta não costuma demorar (o poema era em inglês) e tinham medo de se perder, ela dizia, por isso a distância, ritmo de degrau seguindo cortado, por isso o modo de andar e o ziguezague do avião sempre que saíam juntos. tinham medo e todos os dias fazia algo para evitar. depois queria encontrá-lo na rua, perdido, como um acidente: cruza uma esquina e vê. desligou a chamada na hora precisa, a voz cortada outra vez antes de seguir pelas ramblas.
CLASSIFICAÇÃO DA SECURA I agora já é quase amanhã mas queria dizer apenas que é muito tarde: acrescentar quatro horas ao relógio indica que já é depois. lá é sempre depois. parecia um nome italiano com aquele som ecoando e a resposta em outra língua mostrava a cor das linhas no mapa, “é lilás”, para não dizer algo preciso para não terminar: com ela saio cedo todos os dias. fico de vez em quando escondido no porto. tomarei o transmediterrâneo e comerei calçots, até chegar o instante antes do instante, momento em que vê o relógio e diz: não. já conhece todos os erros do sistema e a retina derretendo sempre que levanta para sair dali. (precisão é o retângulo do degrau inferior.)
II alguém que não consegue se mover e uma semana de vozes cortadas, deve se acostumar aos movimentos em câmera lenta, à descida pela escada em espiral: recorta os sons de cada quarto e apaga as perguntas que mais detesta responder. como aquela noite no ônibus, ruídos do rádio e pedaços de frases atiradas, sempre girando as horas. ver a paisagem sem ela e precisar o tamanho da ausência com poucos dados — sabe que as baleares ficam do outro lado do mar, que custa chegar anos depois e dizer. ergue os olhos para fixar o que tem ali e não perder de vista a secura.
Publicado por Rubens Jardim em 04/06/2014 às 18h59
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