Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
02/09/2015 19h55
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (65ª POSTAGEM)

RIZOLETE FERNANDES (1949) poeta potiguar, é socióloga e militante dos movimentos sociais. Nesse caminho publicou o livro “A história oficial omite, eu conto: Mulheres em Luta no RN”. Reside em Natal desde 1971 e já foi agraciada com as medalhas Nísia Floresta e Auta de Souza. Publicou os livros de poemas Luas Nuas(2006) e Canções de Abril(2010). Participa de várias antologias e é membro da UBE. 

DIÁLOGO COM FANTASMAS

                             a Margareth Felipe

Ensinou-me um anjo a não temer fantasmas

descobrir de onde vêm por que motivo

saber portar-me em sua companhia

sem os expor à-toa ou ocultá-los

no sótão embaixo da cama

ou sob o travesseiro

 

Às vezes

por falta de hábito

o ciciar de uma asa-invisível ainda espanta

noutras

são minhas desassossegadas atitudes

que os assustam

 

Na maioria das tardes

os recebo para um chá no apartamento

e frente à frente

entre uma torrada e uma confidência

vamos estabelecendo

uma civilizada convivência

MOSAICOS

                a Amaro Bezerra

Qual mosaico mal posto

no tabuleiro do assoalho

o encaixe da palavra

no texto às vezes

soa exíguo

 

Inda que ajustado

a malho (igual

ao desnível do piso

no contexto da sala)

resta ambíguo

 

Mas o resolver-se

que a momento silencia

noutro estala

FAZ DE CONTA

Te esperei

durante oito uísques

três visitas inesperadas

quatro maços de cigarro

enquanto um copo suado

aguardava o brinde a dois

 

E compus frases de efeito

para bem te impressionar

fiz promessas em versos

castelos para te abrigar

mas tu não vieste

na hora marcada

nem depois

 

Madrugada em meu peito

nicotinumedecido

realça o claro escuro

do sonho subtraído

ao dia que vai nascer

ESTRABISMO

Estrabismo

olhar atravessado

tudo eufemisno

para mudar de lado

ANA CAETANO(1960) poeta mineira, é médica e professora da UFMG. Foi co-editora da revista Fahrenheit 451 e do jornal de poesia Dez Faces. Participou da coordenação dos projetos Temporada de Poesia (1994) - em comemoração aos 100 anos de Belo Horizonte, Poesia Orbital (1997) – coleção de livros de 60 poetas de Belo Horizonte, e do CD Cacograma (2001). Publicou os livros de poemas: Levianas (1984), Babel (1994) com Levi Carneiro, e  Quatorze (1997).

Quase tudo pode ser descrito

         menos o escuro

Quase tudo pode ser proscrito

         menos o que eu juro

Quase tudo pode ser previsto

         menos o futuro

ANATOMIA

Qual a matéria do poema?

A fúria do tempo com suas unhas e algemas?

Qual a semente do poema?

A fornalha da alma com os seus divinos dilemas?

Qual a paisagem do poema?

A selva da língua com suas feras e fonemas?

Qual o destino do poema?

O poço da página com suas pedras e gemas?

Qual o sentido do poema?

O sol da semântica com suas sombras pequenas?

Qual a pátria do poema?

O caos da vida e a vida apenas? 

           

ERRATA

Nem tudo que foi dito

é crédito

digno de estória

 

Nem tudo que foi mito

é inédito

repouso da memória

 

Nem tudo que eu repito

é mérito

ou grito de vitória

DILEMAS DE GUERRA

Acertar na mosca é fácil

O difícil é atirar na sorte

 

Confiar na sorte é fácil

O difícil é evitar tempestades

 

Colher tempestades é fácil

O difícil é planejar o naufrágio

 

Sobreviver ao naufrágio é fácil

O difícil é encontrar companhia

 

Ser companhia é fácil

O difícil é acompanhar a batalha

 

Vencer a batalha é fácil

O difícil é descobrir o inimigo

 

Enterrar o inimigo é fácil

O difícil exumar os ossos

 

Destruir o império é fácil

O difícil é recolher os destroços.

PAULA AUTRAN (1974) poeta paulistana, é historiadora, jornalista e mestre em artes cênicas pela ECA. Já teve seis peças encenadas e é integrante do Centro de Dramaturgia Contemporânea. É autora do livro infantil Vovó Rock and Roll e do relato jornalístico A Volta dos Mutantes. Publicou o livro de poemas Manifesto de mim mesma (2014).

Meu corpo que já emprestei 
para o meu filho, 
para os meus amores,
para as minhas dores,

meu corpo com o qual caminhei
por escarpas íngremes, 
por estradas tortas, 
por abismos loucos,

meu corpo apartado de mim
por tanto tempo,
meu corpo do qual me desvencilhei
por séculos,

meu corpo que clamou no deserto 
por mim 
meu corpo que tentou pagar meu resgate
milionário,
meu corpo que sangrou sozinho
enquanto eu vagava por destinos
incertos.

Meu corpo para o qual olhei
por sobre meus ombros,
fingindo não vê-lo
meu corpo jogado em um canto
escuro do calabouço da minha vida,

meu corpo,
meu maior desafio.

Meu corpo: 
(prometo)
estou chegando 
e irei resgatá-lo
para juntos retomarmos 
a caminhada.

MANIFESTO DE MIM MESMA

Ficam revogadas todas as ideias contrárias a mim mesma.

(Ideias minhas, que fique claro).

 

A partir de hoje poderei livremente exercer a mim mesma,

por aqui reinará a mais completa auto-indulgência.

 

Poderei gostar livremente da língua portuguesa.

Poderei amar livremente as palavras sôfrega, irrefreável,

consubstanciosa e soslaio.

 

Poderei livremente renegar o rock,

o fim da poesia dos ônibus de janelas abertas

e o fim do silêncio nos salões de cabeleireiro.

 

Poderei livremente renegar o uso irritante da tecnologia.

Poderei, inclusive, ser muito, muito incoerente

e postar isso no Facebook.

 

Poderei livremente gostar só de músicas de mulherzinhas

da nova safra da MPB

que cantam baixinho

e usam vestidos floridos.

E em seguida morrer de tesão ouvindo

o Mick Jagger cantar Angie.

 

Poderei livremente fritar ao sol sem medo de raios UVA e UVB.

Poderei proibir meu filho de comer chocolate

e ver desenho na televisão,

 

e imediatamente dar a ele café com leite,

e rir com ele vendo Alien X O Predador.

Posso não gostar de gibi, nem de textos pós-dramáticos

e morrer de sono e tédio ao ver uma peça sem narrativa.

 

Posso ensinar o hino do Corinthians ao meu filho,

dizer a ele que esmalte é coisa de mulher

e depois deixá-lo usar meu batom e andar com meus

sapatos de salto alto.

 

Posso olhar para um homem e dizer:

quero te beijar agora

e chorar como uma virgem em casa

de solidão e saudade.

 

Posso não prestar continência a ninguém.

Posso não ter medo de nada,

só do meu desassombro.

 

Posso tudo o que eu quiser

do jeito que eu quiser

na hora que eu quiser.

 

Porque quando eu atravessar a rua

amanhã de manhã

ou agora mesmo

bem daqui a pouquinho,

 

diferente de você,

tenho certeza de que um caminhão

bem grande,

bem veloz,

bem veloz mesmo

e

desgovernado

pode acabar

com qualquer certeza,

medo,

raiva,

tédio

ou

rancor.

ALGUMA EPIFANIA

E sendo a noite o final do dia deveria

trazer alguma epifania

para rimar, para fazer sentido,

mas não traz.

 

Os desafios auto impostos

crescem gigantes

à minha frente

 

como as bocas dos dragões

que meu filho coleciona

e que no escuro das horas insones ( perdidas)

me metem medo de verdade.

 

Mas fé é para ser tirada do bolso

nesses momentos.

Para que lembremos com destemor

que o mistério é a matéria

que habitamos todos os dias.

 

E que ir e vir é só o que podemos fazer entre

nascer ( vindos de um lugar que não conhecemos)

e morrer ( indo para um lugar que não sabemos se existe).

 

Então, parece mesmo que não há jeito:

o mistério é estar aqui

agora.

 

E disso tiremos o melhor:

procuremos sem descanso o abismo que

melhor nos apraz para sentarmos em sua beira

e balançarmos os pés despreocupadamente,

 

pois para isso

é necessário que eles não estejam fincados

com segurança em terra firme

alguma.

 

POR TÃO POUCO...

Olho para o sabonete na pia.

Ele está no final.

Gosto de usar os sabonetes até o finalzinho.

E pensar o que acontece com eles.

 

Sobram sempre alguns pedaços.

Eles não se extinguem por completo.

Nem o shampoo, a pasta de dente

ou o perfume.

 

Há sempre uma gota no final do frasco,

do recipiente, da embalagem.

Como os grãos de arroz, o pó do café.

 

Nós é que desistimos deles.

Desistimos de apertar o tubo,

de catar migalhas,

de bater no fundo do frasco.

 

Um dia cansamos de nos esforçar

por tão pouco.

MARIA REZENDE (1978) é poeta carioca, atriz e montadora de cinema e televisão. Aprendeu a dizer poemas aos 18 anos com a poeta e atriz Elisa Lucinda. Em 2012, não sendo juiza, nem celebrante religiosa, celebrou alguns casamentos com sua poesia. Publicou 3 livros de poemas : Substantivo feminino(2003), Bendita Palavra(2008) e Carne do Umbigo(2014). Os dois primeiros vinham acompanhados de CDs.

PAU MOLE

Adoro pau mole.

Assim mesmo.

Não bebo mate

não gosto de água de coco

não ando de bicicleta

não vi ET

e a-d-o-r-o pau mole.

 

Adoro pau mole

pelo que ele expõe de vulnerável e pelo que encerra de possibilidade.

 

Adoro pau mole

porque tocar um pressupõe a existência de uma intimidade e uma liberdade

que eu prezo e quero, sempre.

 

Porque ele é ícone do pós-sexo

(que é intrínseca e automaticamente

- ainda que talvez um pouco antecipadamente)

sempre um pré-sexo também.

 

Um pau mole é uma promessa de felicidade sussurrada baixinho ao pé do ouvido.

 

É dentro dele,

em toda a sua moleza sacudinte de massa de modelar,

que mora o pau duro e firme com que meu homem me come.

                

ECLIPSES EM ESCORPIÃO

mudança

revolução

 

Eu estou trocando de pele

e isso não é uma metáfora

 

Feito cobra nas vigas de outra casa

feito um feto quebrando cromossomos

 

Eu sou de outra galáxia

sou invenção de passarinhos

eu não existo exatamente

eu estou de onda com a sua cara

 

Eu sou exuberante

eu sou exagerada

sou a morena peituda

com que você sempre sonhou

 

Sou uma célula tronco

carne do umbigo

sou minha própria cura

drama discreto

lua em Leão

 

Eu não morro

eu vivo

eu sou a regeneração

ORIGEM

Uma mulher é uma mulher ainda que.

Palavras e formas não comportam o conteúdo.

Uma mulher pode ser um jeito

Uma costela, um defeito.

Uma mulher transborda pelos cantos

Enche as medidas

Contorna o desafino.

Toca punheta e toca sino.

Uma mulher pode ser um grito

Uma barriga

Um precipício.

Uma mulher pode um abismo ou um porto

E pode ser os dois

E é.

MORRER PODIA SER SÓ UM POUQUINHO

podia ser um passeio

viagem pela noite que acaba num café

Morrer como uma aventura

uma montanha

andar o deserto a pé e depois voltar

Como dançar de olho fechado

se perder em outro corpo

como uísque bom, um sono inteiro

um prazer, um cheiro

Morrer podia até ser um castigo

porta fechada com prazo de fim

mas não esse buraco, esse abismo

seu riso pra sempre ausente

sua música soando e mim


Publicado por Rubens Jardim em 02/09/2015 às 19h55

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