Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
22/06/2020 11h14
ELEGIAS NASCEM ENTRE DESESPERO, ÊXTASE, CONSÔLO E AMPARO

ELEGIAS DE DUINO: UM DOS LIVROS MAIS IMPORTANTES DA MINHA VIDA – Há 92 anos, num dia 13 de fevereiro, essa coletânea de dez poemas de Rainer Maria Rilke foi publicada, em Leipzig, Alemanha. Considerados como um dos mais importantes exemplos de lirismo no século 20, os poemas que compõem o livro foram iniciados no Castelo de Duino, perto de Trieste, onde Rilke morou, entre 1910 e 1912, a convite da princesa Maria von Thurn und Taxis, sua amiga e mecenas. E o poeta só terminou o livro em 1922, dez anos após tê-lo iniciado, no Castelo de Muzot, posto a sua disposição por um amigo: Walter Reinhart. O tema central das Elegias de Duino é o mistério do homem e de seu destino. Algo que não tem nada a ver com a pressa e a superficialidade dos tempos atuais de fast food. Aliás, Maria João Cantinho faz uma pertinente observação, citando Rilke, Eliot e Trakl: “Têm uma digestão lenta e complicada e não nos deixam em repouso com o mundo. Não são poetas que celebrem a alegria de viver, o sucesso, os dias felizes que hão-de vir, mas sim poetas que atravessam escombros e ruínas, para aí descobrirem a miséria e a sublime grandeza da alma humana, redescobrindo um esplendor essencial. São poetas que obedecem ao seu instinto, que é o de devolver por inteiro a humanidade ao homem, reinvestindo-o da sua dimensão essencial e, por isso mesmo, trágica. São os poetas da solidão e do desamor, do desamparo, da escuridão.”
Numa carta em que responde às questões "incômodas" do seu tradutor polaco, Rilke escreve assim (citação extraída do prefácio de Maria Teresa Dias Furtado):
“E sou eu que tenho de dar a verdadeira explicação das Elegias? Elas ultrapassam-me infinitamente. Considero-as um aperfeiçoamento na sequência daqueles pressupostos essenciais já presentes no Livro das Horas e que em ambas as partes dos Novos Poemas se servem experimentalmente de uma imagem do mundo, vindo a concentrar-se de modo conflituoso nos Cadernos de Malte em que voltam a confrontar-se com a vida e aí quase demonstram que esta vida suspensa no abismo é impossível. Nas Elegias, e partindo dos mesmos dados, a vida volta a ser possível [...] A afirmação da vida e da morte constitui uma única e mesma coisa nas "Elegias" [...]
Para celebrar esse poeta que me acompanha desde a juventude, divulgo a primeira elegia que abre o livro e foi escrita quando o poeta, após receber uma carta sobre um assunto desagradável, saiu para passear nas proximidades do Castelo. Foi nessa caminhada que Rilke—vocacionado a crer em visões, premonições e advertências telepáticas situadas além das fronteiras do real – “ouviu a voz do vento chegar no verso de abertura da primeira elegia. Pouco tempo depois, a segunda elegia também estava escrita.Trechos de de outras nasceram do mesmo modo assim como outros fragmentos. Mas vamos deixar de interpretações e vamos ao que interessa mesmo:
Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
me ouviria?
E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração,
aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte.
Pois que é o Belo senão o grau Terrível
que ainda suportamos e que admiramos
porque, impassível, desdenha destruir-nos?
Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro.
Ai, quem nos poderia valer?
Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo neste mundo definido.
Resta-nos, quem sabe, a árvore de alguma colina,
que podemos rever cada dia;
resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face - a quem furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto
para o coração solitário?
Será mais leve para os que se amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias?
Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos - talvez pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num voo mais comovido.

Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga,
ou quando passavas sob uma janela aberta,
uma viola d'amore se abandonava.
Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre distraído,
à espera, como se tudo anunciasse a amada?
(Onde queres abrigá-la, se grandes e estranhos
pensamentos vão e vem dentro de ti e,
muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Tua quase as invejas - essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes
que as apaziguadas.
Retoma infinitamente o inesgotável louvor.
Lembra-te: o herói permanece, sua queda mesma
foi um pretexto para ser - nascimento supremo.
Mas às amantes, retoma-as a natureza
no seio esgotado,
como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar
uma jovem qualquer, abandonada pelo amante:
por que não sou como ela?
Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos?
Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda,
para ser no voo mais do que ela mesma.
Pois em parte alguma se detém.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas os santos ouviam,
quando o imenso chamado os erguia do chão;
eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam.
Não que possas suportar a voz de Deus, longe disso.
Mas ouve essa aragem, a incessante mensagem
que gera o silêncio.
Ergue-se agora, para que ouças,
o rumor dos jovens mortos.
Onde quer que fosses, nas igrejas de Roma e Nápoles,
não ouvias a voz de seu destino tranquilo?
Ou inscrições não se ofereciam, sublimes?
A estela funerária em Santa Maria Formosa...
O que pede essa voz?
A ansiada libertação da aparência de injustiça
que às vezes perturba a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
à rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medroas,
não mais o ser; abandonar até mesmo
o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos.
Estranho, ver no espaço tudo quanto se encadeava,
esvoaçar, desligado.
E o estar-morto é penoso e quantas tentativas
até encontrar em seu seio um vestígio de eternidade.
- Os vivos cometem o grande erro de distinguir
demasiado bem.
Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades
a corrente eterna arrasta.
E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós,
eles que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal.
Mas nós, ávidos de grandes mistérios,
nós que tantas vezes só através da dor atingimos
a feliz transformação, sem eles poderíamos ser?
Inutilmente foi que outrora, a primeira música
para lamentar Linos violentou a rigidez
da matéria inerte?
No espaço que ele abandonava, jovem, quase deus,
pela primeira vez o vácuo estremeceu em vibrações –
que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.
(Tradução de Dora Ferreira da Silva)


Publicado por Rubens Jardim em 22/06/2020 às 11h14

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