Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
18/03/2023 00h29
UMA HISTÓRIA DE POESIA E CONFRONTO


 

Tem livro de poesia que conta uma história. Seus poemas são começo, meio e fim de uma jornada. Não estou falando das epopeias. De certa forma, devemos admitir que toda antologia ou coletânea conta uma história. O livro “Lindolf Bell – 50 anos de Catequese Poética”, organizado pelo poeta Rubens Jardim, nas suas cento e oito páginas, revela muitas coisas. Conta uma história. Fala de utopia. Fala de um tacape estético e político. Revela um jorro de sangue pulsando na flor da pele. Eis o prato da realidade servido no vômito dos apagões históricos. Este livro resgatou vozes poéticas de um tempo cheio de cicatrizes. Somente por isso, já se justificaria. Mas não é só isso.

Às vezes fico perdido nesta jaula que chamam de contemporaneidade. Como se fosse apenas uma caixinha de curtidas e compartilhamentos digitais do Século XXI. Penso a contemporaneidade de forma ampla. Especialmente quando o assunto é literatura. Muito mais especialmente quando se fala de poesia. Essa coisa que ainda hoje se mistura com a música, com as artes plásticas, com o teatro e que se perde em definições nos âmbitos acadêmicos ou na vontade embriagada dos poetas. Essa vontade de dizer sempre a mesma coisa de outro modo. A contemporaneidade é um tempo expandido e a poesia é uma esgrima atemporal. Portanto a Catequese fala dos nossos dias. Foi ontem.

 

Rubens Jardim e sua militância poética.

 

Quando leio Gregório de Matos Guerra sinto-o no meu tempo presente. Um poeta do tempo presente dizendo versos do tempo presente. Da mesma forma quando leio Oswald de Andrade, Cruz e Sousa ou mesmo Drummond. Nesta segunda década do século XXI este conceito de contemporaneidade parece tão líquido. Por isso me permito transgredi-lo o tempo todo. Maiakovski me diz coisas atuais.  Joan Brossa me empurra para experimentar agora, já. Contemporânea é a poesia viva, pois o resto nem cabe nas memórias do futuro. É o que está neste livro que recupera a Catequese Poética. Movimento social da poesia que sacudiu as ruas de 1964 até 1968. Em alguns estados, mas especialmente em São Paulo. Um tempo de confrontos inevitáveis e vozes que jamais se calaram. Mesmo quando abafadas pela morte.

A contemporaneidade é também a bolha de poetas iguaizinhos, quase gêmeos. Pimpolhos dos Jardins. Só não estão sós. Esta bolha está na contemporaneidade, mas não a representa em sua vocação expandida. Os dias passam. O tempo é uma bola de fogo cruzando um céu de diamantes. Somos produto e razão desta psicodelia. Às vezes parece que nada mudou. O poeta Rubens Jardim sabe que a poesia brasileira não é nenhuma “Serra Pelada”, mas é sempre produto de garimpo. Recentemente publicou - - pela Editora Arribaçã - um verdadeiro mapeamento das mulheres poetas contemporâneas do Brasil. Ele sabe que estamos sempre fugindo do rodo da história. Conhece os pontos de tocaia e escape. Permanecemos enquanto gerações e escolas da palavra e da luta.

O livro “Lindolf Bell – 50 Anos de Catequese Poética” chegou em 2014. Embalado numa bela edição da Editora Patuá. Belo como toda a produção do poeta e editor Eduardo Lacerda. Veio com os traços firmes da história. Trazendo a necessidade de manter viva a chama. Rememorando os que fizeram esta cruzada num tempo de confrontos. Os que berraram poemas no meio das praças, nas avenidas e viadutos. Lá onde as pessoas apostam na invisibilidade enquanto norma de sobrevivência. A “Catequese Poética de Lindolf Bell” completou cinquenta anos há sete anos e teve sua história eternizada por Rubens, um de seus maiores poetas. Um movimento que jamais poderá ser esquecido.

Precisamos ler os poemas de Lindof Bell agora. Um mestre que soltava a voz pelas esquinas. Também os de Iosito Aguiar, Carlos Vogt e sua exatidão. Nilza Barude, Jaa Torrano... Enfim, os que nos trazem um alento para esse tempo de incertezas. Um Rubens Jardim e seus versos espetando a pele. Ensinando a olhar para o nosso tempo. Afinal, estamos partilhando uma mesma época em diferentes períodos. Tempo de avanços e recuos. Avançando pouco é verdade, mas recuando cada vez menos. Eis um livro necessário para ser lido e estudado em 2021, em 2050 e 2100. Porque o tempo nunca atrasa e nossas angústias não se derramam em vão. Nosso Toré é no ritual da Lua Cheia.

“O alvo maior do movimento era catequizar”, disse Péricles Prade. “Levar a poesia ao conhecimento do grande público através de leituras de poemas em lugares previsíveis ou imprevisíveis, como o Viaduto do Chá, estádios de futebol, teatros, boates, feiras, clubes, escolas e eventos de toda a natureza”, conclui. Em plena ditadura. Encarando a vida de frente, de cara e alma limpa. Desafiando os coturnos que rasgaram a história para tingir de sangue uma noite de duas décadas.  “Lindolf Bell dizia seus poemas vívidos e de resistência. Eram manifestações populares, nas ruas, reunindo centenas de ouvintes, que buscavam como ele, fazer algo que falasse do seu inconformismo”, lembra Renata Pallotini.

O livro chegou num outro momento de turbulências. Tormentas recentes que abalaram a frágil democracia brasileira. De 2013 para cá aprendemos muito. Espero que não seja permitido mais um golpe. Assim como foi em 2016, em 1964 ou 1930. O Brasil tem uma tradição de quarteladas, torniquetes narrativos e canetadas. Mas também tem tradição de luta e resistência. Como faziam Castro Alves e Gregório de Mattos Guerra em seus tempos devidos. Como fizeram os Cabanos ou Mariguela. Eis um livro que faz parte de uma caminhada que nunca termina, mas que precisa sempre ser contada. Seja para não ser esquecida, seja para afirmar a Poesia Brasileira em todos os tempos do presente. Aliás, a Poesia Brasileira não se apartou da história. Também não naufragou no que o cânone silencia.

 

 

POEMAS E POETAS DA CATEQUESE POÉTICA

 

Réquiem

Não escreverei sobre ausências,
Ausência é bandeira de nada.
é ter partido
em direção de um país sem lodo nem lama.
Onde a identidade se faz do afeto.
E a dúvida é poço entreaberto
e o coração um fruto de semente madura.
Ausência é só lembrar, é só lembrar!

Ausência é só lume de esquecimento.
É só limo de eternidade.
É só flor de certeza e agonia.
Só o corpo impedido, só surdo desejo,
só pele mudada em terra,
só tempo feito areia.

Ausência é só lembrar, é só lembrar!
 

II

Um laço que nada prende
e não se desamarra nunca.
A face de Deus azuleja.

Meu coração pensa que sabe tudo.
Todavia, se pergunto de meus amores,
se desfaz em dúvidas
e fica mudo.

 

IX

 

O destino?
Buraco de agulha
onde o homem passa
com sede do camelo
e o coração cheio de graça

Destino?
Agulha no palheiro
onde o homem se procura
o tempo inteiro.

 

Lindof Bell nasceu em Timbó-SC, em 1938. Faleceu em Blumenau-SC, em 1998

 


 

Integração 

Nosso amor ficará gravado
não em árvore
não em pedra
Ficará gravado no colchão de molas!

 

 

Intacta nas tintas

Intacta nas tintas e nos tinteiros
recorres, incorres (mesmo sem correr)
correção parada, errata: breve lapso
orden(h)ando o tacto (mesmo sem mugidos)
moenda, moldura irremovível do teto
intacto, atado em seu próprio tacto.

 

Mallarmargem

Um lance de dados
jamais abolirá o acaso

 

E se é por acaso,
lance de dados.

 

Rubens Jardim nasceu em São Paulo-SP, em 1946.

 

 

 

 

A passeata 

Uma bandeira nova passava pela rua
(pensamos: muito importante era o dia)
julgarás: renovado
Saía a passeata
depois veio o cansaço / aço / aço
construíam ao nosso lado
pensarás: arquiteturas
passava a passeata / ata / ata
a ata na mesa do congresso / esso / esso
pensarás: progresso protesto
petróleo / óleo / óleo
olhamos tudo e não pudemos dizer nada.

 

Habilitar o tempo

Habilitar o tempo e
suas pequenas edificações.
Viver o tempo,
morrer seus antedias,
aceitar seu alimento
e convivência.

Aprendê-lo aos poucos,
guarda-lo na memória.

Penso: tempo ao tempo,
curioso trabalho
de se amontoar retalhos
e se criar o passado.

 

Poemas de Luiz Carlos Mattos, nascido em São Paulo-SP, em 1945. Faleceu em 2000.

O gomo

Asperge sobre mim a tua face,
unindo os gomos de fruta silente,
replanta aqui a primitiva máscara,
que à força de existir se desmembrou.
Não o tempo, mas certo intermédio
gosto, primeira e mais leve certeza,
úmida folha em membrana exposta,
onde a insegura forma se completa.
Em todo gesto sobrenada um outro,
o anterior, sonhado, gêmeo encoberto,
algum canto de remota ternura.
Porém o último permanece intacto,
sombra retida na inculta semente,
e vibra, desperto do sereno ato.

 

 

VII

 

Hoje A tarde enferruja nos cata-ventos
e a voz evita o espaço transcendental.
Um elmo cinza guarda a chaminé antiga
envolvido em grande desamor.
A hera sensual ramifica-se nos muros e paredes
integrados num vento zonzo.
E existe uma passiva redesfiguração nos telhados.

Tantas vezes foi tentado o retorno
e para tanta proibição
hoje vou desertar de mim.

 

Poemas de Érico Max Müller, de Santa Cruz do Rio Pardo – 1945/1995

 

 

Ser rua

Ser rua
e desejar cães vagabundos
que transitam na noite

Ser parque e ver que há muito
os pássaros calaram

Ser árvore
e antecipar a casa
com suas falas muralhas

Ser muro
e anunciar aos vindos
a partida inaudita

ser praia
e sentir o mar
corroendo cadáveres

 

 

Assim seremos tigres

Assim seremos tigres,
E no jângal deslizaremos em combates.
Assim seremos faunos,
E nas campinas dançaremos a aurora.
Ah! Tivéssemos jamais amado,
E alguma rosa terisa lâmpadas de riso,
Em algumas árvores ser[íamos mais sóis.
Assim estaremos, cansados
Dos templos que fizemos em segredo.
Das preces, todas elas sem resposta.
Os deuses dormem!
Assim extinguiremos.
Unos, com tudo o que nos mata.
Uno, com tudo o que matamos.

 

 

Iracy Gentili, nasceu em Barra Mansa-RJ, em 1930. Morreu em Salvador-BA, em 2001

 

 

 

congestionamento do tráfego interno

mau tempo e excesso de tráfego
atrasaram hoje 43% dos meus voos de imaginação
dos meus projetos secretos
quase não tenho mais sonhos
não tenho como decolar
nem como aterrissar
minhas torres de controle congestionadas
meus controladores de voo
em licença médica eterna
só fazem provocar acidentes

piloto automático, por favor
seja o que deus quiser

 

 

tudo bem

escrever poesia
como se fosse uma solução

uma saída?
canções,
modos estranhos de ser

danço na rua
canto no chuveiro

a menina do andar de baixo
diz: puxa que voa bacana!

Vontade de chorar

 

Poemas de Ronald Zomignan Carvalho, Rio de Janeiro-RJ, 1944

Cantar de só

Estou perplexo.

Da minha solidão
ecoa um grasnar
de cisne ferido.
Escrevo e o poema cessa.

 

 

Maria Antônia

Selvagem adolescente.
Seremos ventre de mulher.
Entre duas paredes
circula corrente nova.

 

Hora Secreta

Sinto no rosto tuas mãos e canto
Eu te amo, eu te amo
Ainda que minhas asas se estendam para o zodíaco
eu te amo, eu te amo
Em beatitude, absorvido pelo espetro
Que passa num leve sopro
Eu te amo, eu te amo
A inquietude envolve meu coração
E esta é a hora secreta
Quando o ferido bebe o vinho
Consuma-se o mistério
A barca adentra a baía
Minha alma se dilata
Enquanto deslizo pelo asfalto
Não sei me conter
Esta luz, este órgão imenso
Tangido pelo anjo de sempre
Liberta melodias que aprendi
Quando uma pata de tigre
Arrancou-me as entranhas

 

Iosito Aguiar – nasceu Parnamirim-BA, 1941, morreu em Curitiba, 2001.

 

 

Bibliografia precoce

Fui aprender linguística para entender as palavras
ensinei semântica ao acreditar que tudo tem sentido
escrevi livros sobre a linguagem buscando não perder
as farpas das circunstâncias
traduzi textos de hermética lógica e mitológicas
depois de viajar por binarismos e termos médios
sem deixar de girar por gerações de frases bobas
volto ao ponto de que partia:
vejo-me gramaticalmente indecifrável
diante da técnica da poesia

 

 

Identidade

Um homem tem muitas mortes:

aquela que irá morrer porque nasce
aquela que matará o seu batismo
ou o simples nome que lhe é atribuído
enfim todas aquelas em que morrerão
as máscaras sociais
com que foi sendo vestida sua vida

 

Anfitriã

Não se decepcione:
a vida o convidará
para outros fracassos.

 

Carlos Vogt, nasceu em Sales de Oliveira-SP, em 1943.

não importam

não importam olhos elétricos

e mãos resplandecentes
o que importa é que se impeça a derrubada do verde
o que ponham de lado lençóis de paz
não importam cabelos abandonados
sem mãos cantantes sobre eles
nem corpo florido sem esperança do fruto
o que importa
é que se impeça a derrubada do verde

 

as forças surgem

as forças surgem rompendo as arestas do centro vital.
meus braços crescem da placenta da minha vontade.
o silêncio permanece.
a luz saiu do casulo.
o fio da seda é translúcido e cristalino como os poemas
cada vez mais sem palavras.
um dia nada restará.
o poema será silêncio
e o silêncio tudo dirá.

 

 

quando a tristeza é muita

quando a tristeza é muita
escorre em correntes de lágrimas até lavar o coração.
depois deixa na alma uma espécie de mancha rocha
que minha avó chamava de melancolia...

 

Nilza Barude, nasceu em Araçatuba-SP em 1946

 

 

MUNDICÓRNIO

O touro eterno tem a pele cerzida
de despedidas. Atrás de seus chifres sabemos
que, vítimas possíveis de seu furor sem ira,
o touro eterno é besta, nem sabe
que estamos montados em seu dorso
onde se repete a mesma infinita despedida.

O touro é uma serpente circunferente
que se movendo engole a si mesma.
Estes dentes somos que se enterram
no próprio corpo da serpente
e fincando os dentes nos despedimos
da vida que montados no touro tivemos.

O touro no escuro de nós se despede
como um sol que se põe e se repõe sem ficar
claro quem se despede e somos.

 

 

AMOR ME CHAMASTE

Amor, me chamaste ao amanhã onde resides, mas nós
não saímos de nossa reminiscência, tudo permanece
irreal cujas raízes todas se aprofundam no
real cujas raízes irreais são todas as coisas, e
quando amanhecer a próxima noite
o ontem será hoje.

 

Amor, copulamos envoltos pelo plenilúnio do agora
quando eu procuro a sós o dia em estarei con-
tigo e de que com tanto júbilo agora me recordo
simulvisíveis o vindouro e o ido.

Amor, me chamaste ao amanhã onde resides, mas nos
caminhos da terra marinhos celestes caminhos
e os mesmos pássaros espalmados no ar.

 

Jaa Torrano, natural de Olímpia-SP – nasceu em 1949.

 

 

Resenha do poeta Lau Siqueira

 


Publicado por Rubens Jardim em 18/03/2023 às 00h29
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