Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
24/07/2016 01h05
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (78ª POSTAGEM)

ADRIANA BRUNSTEIN (1970 ) poeta paulistana, é PhD em física, escritora, dramaturga e roteirista, com trabalhos em várias vertentes e meios da comunicação. Ganhou o prêmio de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Graphic Novel Prontuário 666 – Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão e foi contemplada no 13º Cultura Inglesa Festival pelo roteiro do curta-metragem Olhos de Fuligem.  Publicou o romance Estado Fundamental.

A gente envelhece

dormindo às dez

acordando às seis

ameaçando pernilongos em voz alta

antes de errar o tapa

A gente envelhece

medindo a circunferência do braço

evitando usar regatas

se cadastrando em site de receitas

e consultando horóscopos

A gente envelhece

dormindo de meias

falando pra manicure

no pé um rosinha básico

A gente envelhece

cantarolando a música

de Ao mestre com carinho

descobrindo na wikipedia

que o sidney poitier

ainda tá vivo

A gente envelhece

recusando convites

lembrando que piqueniques

eram chamados de convescotes

nos clássicos que não lemos

A gente envelhece

gerundiando

esperando uma oferta incrível

da garota do telemarketing

***********************************

Os primeiros planos

para saídas de emergência

traçados ainda

nas barrigas de nossas mães

falharam

E completamos

diariamente

40 anos

ou mais

em meio à multidão

que corre

sabe-se lá para onde

nos labirintos arquitetados

da estação

sem luz

********************************************************

A primeira vez que te vi

não teve a Teresa

de Manuel Bandeira

Eram minhas as pernas estúpidas

Eu andava em L

feito cavalo de xadrez

Eu tava com o dedão do pé inflamado

por conta de um alicate não esterilizado

Eu tava descalça

por conta do dedão inflamado

e do alicate não esterilizado

Eu pensava num roteiro

prum filme de ação iraniano

Eu carregava o cartão de um marceneiro

pra que ele derrubasse as certezas

que eu ninava na parte de cima do beliche

Eu quis te fazer uma carícia pela metade

e te receitar suplementos vitamínicos

aqueles cheios de abecedário

Pra que entre nossas palavras

cruzadas

os espaços fossem grandes demais

para fim

**************************************

Tenho o nome de outro cara

tatuado no cóccix

caso você queira saber

antes de tirar a minha roupa

que as coisas pra mim

mesmo as que não se apagam

não duram muito tempo

EUNICE BOREAL(1984) poeta paraibana, é cineasta e exerce o ofício de artista multimídia. Estuda música na EMAN, com habilitação em violino, e filosofia na UFPB, onde pesquisa estética filosófica. Em 2014 participou da coletiva “Vídeopoéticas” no Centro Cultural São Paulo. Também estuda grego clássico.

POEMA

O verso deita o oito

e o infinito se levanta

DIA-GNÓSTICO

Dessas relações líquidas

Da sociedade liquidada

A única coisa que me vive

Transborda.

Sou toda

Sentido.

E no que me lanço

Sei laço.

Naquilo que

É calculo

Me

Meço

Mas não

Comprimo.

Multiplico torpores

Que beiram abismos

E me absinto de razão.

Vivo sem limiares

Na fusão do que soul

E do que sonho.

A cada passo

Revisito os gritos

Das aves

(Vanguardas)

E vejo:

A elucubração

Que reinventa

A vida

Também Transcende

A Moderna-idade.

 

A POESIA FUGIU DO PAPEL

Saltou aos olhos em câmeras e bits

Criou formas com sprays e mármores

A poesia trocou a métrica

Pela coreografia

E ganhou as teclas sorvendo jornais

A poesia agora só canta em teatro

É a maestrina titular

Que de olhos atentos

Rege outras formas.

 

A poesia que já reinventou o poema

Agora só reinventa a vida.

NÃO ADIANTA IR AO MERCADO

não adianta ir ao mercado

hoje não teremos pão

tome logo o seu café e leve

o jornal, o casaco e a chave

do carro

leve logo tudo

isso

que não tem mais

volta

ontem foi 21

22 é a data de hoje

amanhã será 23

 

e isso

basta.

KARINE KELLY PEREIRA(1994) poeta paulista, é artista e pesquisadora do corpo em artes circenses, dança e poesia. É terapeuta corporal formada em massagem ancestral tailandesa pela International Training Massage School. Publicou o livro de poemas Anotações sobre o azul (2106).

INSÔNIA

Meu corpo não tem cor, idade, sexo ou pátria

restaram os pés ansiando pela dança

a mão trêmula que não cessa de escrever enquanto a poesia me berra por todos os poros e não deixa dormir

: eu obedeço.

VERBO TRANSITIVO DIRETO

Como dançam os cavalos
estendo o corpo à direita feito colar rasgo o dia
reunindo trêmulos espaços

eu estendo em vertical o meu braço
o cotovelo,
o antebraço,
o pulso e os dedos no ar
como quem busca e atira uma flecha.

XII

Caminho pelas ruas pedindo licença por ser mulher

Caminho pela casa da mãe pedindo licença por ser triste

Caminho entre os amigos pedindo licença por ser criança

Caminho entre os amores pedindo desculpa por ser simples

E no arrebol, quando o coração em claroescuro desdobra e acelera em trottoir

Coloco meu casaco ocre, busco

na noite

pés pra caminhar.

 

POEMA XVI

Para transitar de um corpo ao outro,

Bebi Pedro

Comi Pedro

Dentro e fora

Fora e dentro

Dentre verbos

Dentre versos

Tão im-próprios.

 

Inda assim,

Todo dia

Toda a pele

Me ardia,

Feito bruxa na fogueira.

 

TEREZA DU’ZAI (19  )poeta catarinense, natural de Itajaí, é também contista, cronista e professora de Língua Portuguesa e Literatura. Atualmente, a autora tem se dedicado à produção e à divulgação de sua obra literária. Seus poemas têm sido publicados em  revistas, blogs e jornais brasileiros.

VOLÚPIA

Todas nós, mulheres do mundo,

somos Virgens Marias,

parimos virgens e continuamos virgens;

todas nós, mulheres do mundo,

temos um José ausente, insuficiente;

todas nós, mulheres do mundo,

queremos um anjo Gabriel

que nos visite ao anoitecer,

todas nós, mulheres do mundo,

temos um amante invisível,

que nos acende,

nos santifica e nos penetra com seu fogo sagrado;

todas nós, mulheres do mundo,

somos o nosso próprio milagre,

o nosso próprio deus,

o nosso próprio diabo.

Todas nós, mulheres do mundo,

somos mães, irmãs e filhas de nós mesmas.

A MORTE E À MORTE

Ao nada,

minhas ilusões,

ao nada!

Só, eu rio e morro.

Rio de mim e dos outros,

do que fui e dos que se foram.

Vou-me e é justo que me vá assim,

com o corpo envolto em pedras,

e o peito cheio de dores ignoradas.

Não digam que cometi suicídio.

Não se envaideçam.

Não haverá de ser por suas perversidades.

Será por mim.

Egoisticamente por mim.

As pedras hão de me conduzir,

e é justo que assim seja;

afinal, apenas elas me venceram na arte de rolar.

Morro do mal da pouca vida,

Desta sina insana,

deste destino certo.

Envolvida em pedras,

para evitar despesas,

e dispensar protocolos vãos.

Lanço-me ao mar

também por vaidade.

antevendo a primeira mordida,

a disputa por cada lasca de pele,

por cada porção de víscera.

Lanço-me ao mar

a fim de me tornar útil na morte.

Perdoem-me os vermes da terra;

perdoe-me o proprietário da funerária Hees;

perdoe-me, Liz. Cancele as rosas amarelas,

mas os braços do coveiro serão poupados,

uma árvore será poupada,

velas brancas serão poupadas.

Nem rituais, nem hipocrisias.

Esta será a vez das piranhas.

 

REDENÇÃO

Morrer sem perdão, sem arrependimentos;

sem ódios, paixões ou pretensões;

morrer em qualquer idade, em qualquer cidade;

adormecer à beira de qualquer estrada,

indiferente ao desconforto e à violência,

confundindo lobos com cães de guarda,

insensível ao egoísmo e ao preconceito;

abraçar a paz num pesadelo,

descer ao mais profundo abismo

a fim de se encontrar.

FATAL

Eis meus mortos, acuados sob o mármore frio,

ocultos em suas cavernas púrpuras.

Inúteis.

Sem esperanças, sem milagres;

fulminados, aniquilados;

vestidos para a eternidade.

Vencidos.

Não mais o sol os aquecerá, não mais a chuva os banhará;

nenhuma honra os envaidecerá, nenhuma glória os ressuscitará.

Suas sentenças foram cumpridas.

O amor não os salvou.


Publicado por Rubens Jardim em 24/07/2016 às 01h05
 
30/06/2016 22h26
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (77ª POSTAGEM)

VÂNIA AZAMOR poeta carioca, vive em Teresópolis e trabalha como economista do governo do Estado do Rio de Janeiro. É autora dos livros de poesia Olhar mineral (2003) e Facas da manhã (1997), e Cristal Rutilado(2011) Participou na coletânea Caixa de prismas (1992). Teve poemas publicados na revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, nos jornais Poesia Viva, Panorama da Palavra e Rio Letras.

CORDÃO UMBILICAL

Em tudo há mãe

o cerne o começo.

Da minha tenho quase tudo

o sorriso, a face, a vulva

o que insiste e persiste

no dia seguinte

e em mais outro dia

o que a esse se soma

a vontade de mais outro dia.

E como um novelo

desenrolo os dias

até nela chegar.

FOME E NOVELO

Como criar poemas se o que emerge

são os guizos, disfarçados de canto, de uma serpente

invisível bem junto de mim?

Como precisar seu bote

se me escapam meandros e sítios de seu perfume?

Nesta tarde estreita que alastra prenúncios e desfaz pistas

incendeio de alegria e êxtase

adianto o tempo

e reconstruo um namoro

sem carne e curvas

febril   perigoso   e   escorregadio

como um penhasco.

 

O que assusta também me embala

e envenena.

O ATRIBUTO DO AMOR 1

Põe, sem cessar, seu amor em todas as coisas

em silêncio, busca alimento nos ditos do profeta

sem sapatos, vai até a fonte das águas puras

e apura os ouvidos naquele som extasiante

aguça os olhos como diamantes do amor

toca com sutileza sua luz flamejante

Diante da perplexidade, não abrevia a respiração

ao contrário, aprofunda esse aroma de frescor matutino

A esse espetáculo de beleza

regressa cem vezes se for preciso

Não diga nada, para que a quietude do seu voo

seja tão alto e arrebatador como o da Fênix.

ARMAZEM

Em minha rua o armazém anuncia o amanhecer

- pessoas a caminho do dia -

Nas casas o café com leite

a promessa em jornal

e o cesto de pães

O dia cresce em luz

ruído e presença

Vem o bonde à esquina

a criança para a escola

o amor de uma mãe

Chegam criadas ao fogões

o faxineiro que leva o ontem

e o alimento dos loucos

Despertam cedo os que cuidam do mundo..

GISELLE RIBEIRO(1967) poeta paraense, é professora de teoria literária na UFPA. É autora também dos livros de poemas: Objeto Perdido (2004), Pequeno livro de poemas para vestir bem (2011) e Isso não é um livro. Isso é um caracol (2013), lançado na XV Feira Pan-Amazônica do Livro. Seu último livro,  69 (2014) reúne 69 poemas de amor erótico.

PRÊT-À-PORTER

Primeiro leia este livro

sem compromisso maior.

E se algum poema

nele contido

lhe vestir bem,

sem precisar de ajustes,

ele será todo seu.

 

Para ir à igreja,

um encontro marcado,

um passeio no bosque,

uma reunião de negócios,

piscina, praia ou cinema.

Para fazer cooper, yoga

ou jogar sinuca.

 

Afinal, para que mais serve o poema?

TAREFAS DA VIDA COTIDIANA

Lavamos

todos os dias

a palavra amor

até desbotar.

Passamos a ferro

todos os dias

a palavra desejo

até evaporar.

Depois,

lavamos as mãos.

 

E quando a iluminura

do amor se apaga,

gradativamente,

dizemos aos sonhos:

a convivência mata.

VISITA À CAVERNA

O gigante acordando abre os olhos

ele que jamais cria na aurora boreal

Acorda agora

Diante da porta de entrada da tua caverna

 

Labia majora

Labia minora

 

E ele toca com  suavidade

Nas pregas finas

Da cortina do teu prazer

O corpo dele estremece

O teu é todo frisson

 

O gigante chega ao corpo esponjoso

Ele planta flores naquele amontoado

De vasos capilares

E quando o teu clitóris se entumesce

Bem diante dos olhos dele

A aurora boreal aparece

ROLEPLAY

Interessa-me aqui, as pernas grossas do poema

Para abrir e fechar

Quando eu quiser entrar.

 

Interessa-me  também

O beijo de língua molhado ou seco

Do poema

Pedindo para me tocar.

 

Interessa-me muito também

A vontade, a voluptuosa vontade do poema

Em me ter completamente nua

Para ser só sua.

 

O resto desta história,

Eu deixo aberto,

Como as pernas grossas do poema

Para quando você também quiser entrar.

IOLANDA COSTA (1967) poeta baiana,  é filósofa, arte-educadora e especialista em História Regional. Estreou como poeta na antologia Poetas Novos da Região Cacaueira, em 1987. Em 2004, lançou seu primeiro livro individual, Poemas Sem Nenhum Cuidado e, em 2009, Amarelo Por Dentro. Editou, artesanalmente, folhetos de poesia. Tem poemas publicados em jornais, antologias e blogs. Participou da agenda Livro da Tribo (2013). 

VIOLINOS QUE MIAM

últimas horas dessa cronologia

obsoleta

travessia de tempo retirado.

nenhuma praia do sul

arderá em mim

mais que a poesia torta

encurvada em pélvis

e em pêlos

- nossos sais.

a poeta, o colchão

o violino e seus miados.

FESTIM

louca, sim

variada no tempo

saltada de dentro do jarro

como nenúfar, lava

palhaço de molas.

 

ossos sobre restos.

 

a fome diária e contumaz

dos ossos como festos

sentenciando a carnadura

fremindo o sal, o veio

o passar do poema pelo sangue.

 

atirou-se sobre ela, um dia

o amor

puxando-lhe o braço, a albumina

o cálcio, o nutriente

a bacante e a sua boca

de tremores.

COLAR DE ABSINTO

do colo ao quadril adorna

e flamba a carne

adereço que a restaura, abjurada

em chamas.

formoso é o pescoço

e as sete vértebras

que o estende aos ares:

lava. pira. serpe.

o pescoço de labirinto e de fogo

por onde ardeja, verde

o absinto que me trazes.

a losna-maior farfalhando

como folha (em nervuras e exílio),

teus delírios.

ANÍMICO

anuncia o princípio anímico

e todas as coisas se enchem

de alma.

vela o Verbo

espia a pena

ratifica as Escrituras, o Talmude,

                                                         o Tao.

Deus imana e eu amo as hortaliças

de verde enluarado.

e o centeio e o peixe e o orvalho

e a pedra e a trovoada e  a magnólia.

tudo exala. nada transcende.

o vácuo é composto de falenas.

 

GERUZA ZELNYS, poeta paulista é doutora em Literatura pela USP e dá aula na PUC-SP. Também trabalha com formação de escritor na Casa das Rosas e faz mediação em Clubes de Leitura pelo Grupo Movimenta. Criou o curso de Escrita Curativa realizado em ambiente terapêutico (Instituto Naturare). Publicou o livro de poemas Esse livro não é pra você (Patuá, 2015)

o dia amanheceu

como amanhecem os pães

 

sobras do ontem esse hoje

murcho

e marrento

CORRESPONDÊNCIA

tatuei sobre toda extensão da pele

com tinta vermelha e sangue azul

com rimas e versos portugueses

atados à ponta afiada

da agulha

 

uma carta de amor

 

dobrei-me sobre mim mesma

selei-me de saliva

calei a esperança de resposta

e mergulhei numa garrafa

de vinho

 

endereçada ao mar

NOITES BRANCAS

naquelas noites brancas

minha avó tricotava na poltrona

e na caneca grossa palavras fumegantes

de uma história que eu não bebia porque esses versos não tem matéria

nem memória

apenas significantes

imagens bonitas que se aconchegam bem ao poema

principalmente em dias de frio porque a página é sempre pista de gelo

mas hoje está calor e tudo queima

minha vó nunca tricotou e eu não lembro das histórias que contou

se lembrasse também não sei se caberiam num poema

vidas não cabem no poema

estendem-se infinitamente e ele tem pressa

palavras fumegantes, casacos, meias e cachecóis demandam tempo

adio a velhice boicotando o tempo da vida

escrevendo poesia

coleciono suicídios

e juventude porque jovem é o verso

corda elástica de bungee jumping que só estica até o limite do chão

é esse o tempo que me cabe

não serei avó nem terei história

mas aprendi o tempo da poesia

e bebo num só trago o que me desce queimando

depois enfio duas grossas agulhas no pescoço e tricoto apertando bem a grossa lã até fechar totalmente o vão oco da garganta

prendo as pontas com um nó

e pulo

AÇUCENA

aqui jaz um ponto

coberto

de açucenas, mas

 

não, não há ponto nenhum

muito menos açucenas pra cobrir o que não existe

 

não há nada aqui: você foi embora e só o poema

da falta implorou uma flor: açucena

bulbosa é a planta que pranta sua partida, chuva

seca que desaba

dos meus olhos

 

você cavou um poço e me deixou sem água

açucenas

precisam desaguar em algum lugar: esse oco

ecoando flor

na cozinha vazia de fome, só os garfos miam

surdamente

pousada na boca do fogão a chaleira não pia

porque tudo é luz agora que você foi embora

e levou os escuros do meu café, antes forte

e hoje nem

amargo

ele era


Publicado por Rubens Jardim em 30/06/2016 às 22h26
 
02/06/2016 23h24
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (76ª POSTAGEM)

ELIANE ACCIOLY (1941) poeta mineira, é artista plástica, psicanalista, mestre em psicologia clínica, doutora em comunicação e semiótica, pela PUC de São Paulo. Publica em revistas científicas e tem poemas, artigos e livros traduzidos ao espanhol, francês e inglês.

A SURPRESA

O gato-maravilha que em mim morreu

retorna às vezes, cara redonda e invisível

 

Sombra errante corre

a saudade de bandos vadios

e arrepia as ruas de meu corpo

 

Lábio de lua crescente

fixo só na aparência

ri de mim, Alice,

prisioneira dos contrários,

o país dos espelhos

onde me extravio

 

na aprendizagem banal e mágica

de ser humana

QUARTETO

quatro

ouvindo violino

 

solo

 

só quatro

chorando na platéia

 

c(h)oro

O MENINO E O MEDO

                                   para Gianluca

um mosquito entra em casa

um avião invade o quarto

um helicóptero pousa no peito

 

entre pêlos e arrepio

o grito morre

 

na hora da guerra

mãe não socorre

MISTÉRIOS DE ACALENTAR MINHA MÃE MARIINHA

- Senhora dona Sancha

coberta de ouro e prata

na infância da língua

eras uma rainha

 

-Que anjos me rodam?

 

Ando velha e medrosa

não mais toco o piano

sinfonias não componho

 

- Senhora dona Sancha,

 

silhuetas, sombras

vestidas de branco

guardiões de vossos sonhos,

dispensamos ouro e prata

mal nunca vos faremos

 

- Estou velha

bem velhinha

tenho medo de morrer

 

- Medo? Pois pois,

por que medo?

por que medo?

 

Se no vosso coração

canta uma menina

com quem brincamos de roda?

 

Dona Sancha

nossa senhora,

vos espantastes a morte

como se espanta galinhas,

shô morte, shô

 

- É verdade, é verdade,

shô morte, shô

 

Para os prados partirei

cavalgando meu cavalo

Sobre a cama da fazenda

me aguarda o vestido

feito na minha medida

 

Anjos meus por onde andais?

Senti algum calafrio

 

- Sombras vestidas de branco

somos a infância da língua

somos vossos guardiões

Vosso medo espantamos

com histórias que contamos

 

- Anjos, brancas silhuetas

segurem a minha mão

e dormirei sossegada

para acordar na fazenda

onde me aguarda azul

o vestido, nos braços

de meu namorado

 

Segurem a minha mão

como minha mãe segurava

quando eu ia ao dentista

 

Shô, morte shô

montada no meu cavalo

espanto muitas galinhas

DEISE ASSUMPÇÃO (1946) poeta paulista, nasceu em Pirassununga e vive em Maua´, ABC paulista, desde 1968. Formada em letras, especialização em literatura brasileira, tem uma longa atuação no magistério. Participa de congressos e outros eventos da área, tendo vários trabalhos publicados.Alguns de seus poemas constam de antologias, revistas e sites literários. Cofre é sua primeira publicação em livro.

PURGATÓRIO

a mãe gemendo de dor

(sem remédio)

o irmão sem dentes e emprego

(e bêbado)

pai e avô caducando em asilo

(em cheiro de urina)

sobrinhos e filhos e netos

(bisnetos)

alongando a caravana

(em deserto)

 

eu parede de palavras

a repercutir seus ais

(só em versos)

 

se eu morrer só poeta

ouvirei em juízo:

tive fome e me deste poesia

HERANÇA MATERNA

Agora que já te foste,

fiquei a reaprender

a lição do berço de ser poeta:

 

Se tu vinhas

e eu te via,

então tu eras.

Mas tu ias

e te acabavas.

 

Teu vaivém

me deu a luz

de saber-te ser

quando não te via,

de imaginar

que tudo é.

 

Quero saber que inda tu és

e assim crerei

que também sou.

ASSALTO

No cristal impermeável

do espelho do meu quarto,

olhei brincos e batom,

tom de vestido e sapatos,

cheiro de gotas de almíscar,

dobras da seda da gola.

 

No espelho transparente

do vidro do meu carro,

colou-se um prato de fome,

sobrenome de menino

registrado em cartório

de latrocínio de nomes,

em expediente encerrado.

 

E eu me vi,

e tive medo.

CONTEMPORIZANDO

O tempo me vestia com mangas compridas

que engalfinhavam as mãos

e pernas largas.

E eu ficava esperando demorada

o passeio de bicicleta

e o macarrão de domingo.

E eu pensava que podia guardar

no bolso do pijama de flanela

o pequeno fósforo de artifício já aceso.

 

O tempo me despe das leituras que nunca fiz,

dos poemas que não escrevi,

dos orgasmos que adiei.

Esconde-se em limpar armários

e arrancar ervas daninhas

numa indolência que leva a semana de roldão

à prestação.

 

O pêndulo é o mesmo da casa antiga

e eu já nem sei se na eternidade

terei de volta o amor,

ou o que fugiu nos amando,

ou o que ficou nos perdendo.

 

JUÇARA VALVERDE (1948) poeta gaúcha, é médica e dedica-se também às artes plásticas, precisamente escultura e pintura. Já coordenou semana de artes em hospitais e concursos de poesia. Publicou o livro Espírito do Tempo (2007) e participou de várias antologias e leituras públicas de poesia.

MULHER EM TEMPO INTEGRAL

Amor sem amizade é palavra vazia

esquece a alegria dos dias azuis

despido de porquês e senões.

 

Com afeto e ternura viaja no tempo

supera culpas e desculpas

aprecia um dia de cada vez.

 

Abusa do prazer do agora

esquecendo atas, atos e ateus.

É livre, leve e solto.

 

Vê o desfile da  vida

no choramingo de neto, na risada de filha

nas lembranças do ontem.

 

Percebe o encontro do perdão

os abraços da esperança

o calor de um dia de sol.

 

E na conquista diária, de quando em vez

abre o livro

vira a página.

 

E quando sopra o vento das possibilidades

torna a mulher plena e completa.

VÉUS

Vestida de véus em seu devaneio

ora cigana ou cavaleira

em busca de desejos.

A procura de cama ou feno,

por mais uma noite,

por mais um amor.

Repleta de ardor,

satisfeita,

vai de partida.

Despedida cheia de vida

Despida.

CERTEZAS

Serei

água que banha o solo e canta na cascata,

chuva forte que lava e alimenta as folhagens,

por do sol que encanta o fim do dia.

Talvez

coração que se enternece com risada de criança,

lágrima que escorre pela desigualdade,

cultura que divido com todos.               

Quiça

cheiro de terra molhada do início da chuva,

som de vassoura varrendo a calçada.

natureza nutrida de sonhos.

Quem sabe

onça que luta por seus filhotes,

mulher alimentada pela esperança,

poesia que transborda a alma.

 

Sou,

certeza de resistência.

Desistência?

Jamais.

SENSAÇÕES

Nos porões da esperança

brinco como criança

na busca de meus tesouros;

           memórias esquecidas.

 

Entre sombras e baús,

meus fantasmas imaginários

rodopiam seus mágicos bailados,

                                    desengonçados.

 

Participo da festa.

Deixo a espera vadia,

entraves e outros porquês

                     do lado de fora.

 

Recolho pó, teias e cacos.

Limpo, organizo,

desentulho...

                      Libero espaços.

 

Desbravo o sombrio.

Rompo,

abro janelas.

Feixes de luz bem-vindos.

 

Espaço readequado,

conquistado.

Aurora?

         Liberto a alma.

AUGUSTA FARO(1948) poeta goianense, é pedagoga e mestre em teoria de literatura e linguística. É pioneira da poesia infantil no estado de Goiás e escreve também contos. Publicou Mora em mim uma Canção Menina (1982); Lua pelo Corpo(1984); O Estado de Graça(1988);Avesso do Espelho,(1995) prêmio nacional UBE-Rio de Janeiro.

COMPROMISSO

Nada a ver com a voz

mas a palavra

 

Nada a ver com o pulso

mas o sangue

 

Nada a ver com as chaves

mas a terra

 

Nada a ver com as sombras

mas os gestos

 

Nada a ver com a oferta

mas o pranto

 

Nada a ver com o fardo

mas o caminho

 

Nada a ver com a guitarra

mas a canção.

MOIRA

Nasci do ombro esquerdo de minha avó,

por isso tenho um olho no meio da testa,

que vê o fundo dos rios

e o contorno mais longe das montanhas.

 

Nasci em noite de tempestade

quando um raio abriu a concha

da escuridão mais escura.

 

Nasci olhando de lado,

como quem vê a poesia

brotando do chão

e me encharcando os sapatos.

RETRATO

Aparente momento

atuando no tempo.

Pausa de paz desenhada

impressa transparência

— um sorriso.

 

Depois do instante

aderido às veias do papel

— quais as faces?

 

BALANÇO

Metade de mim é manca

outra parte se arrasta

um tanto meu se desfaz

outra tenta se afirmar.

 

Parte de mim desconheço

parte reconheço e fico

outra porção me reparto

multiplico os duros olhos

e somos a boca fechada.

 

O que resta de mim,

salgo com sal grosso

e ponho no varal

para secar.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 02/06/2016 às 23h24
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08/05/2016 16h18
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (75ª POSTAGEM)

ZILA MAMEDE(1928-1985) poeta paraibana, formou-se em biblioteconomia, trabalhou no Instituto Nacional do Livro, em Brasília.Foi diretora da biblioteca da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde viveu a maior parte de sua vida e onde o mar a levou para sempre. Publicou : Rosa de Pedra (1953), Salinas (1958), O Arado (1959), Exercício da Palavra (1975), A Herança (1984) e Navegos (Poesia reunida 1953-1978).

A PONTE

Salto esculpido

sobre o vão

do espaço

em chão

de pedra e de aço

onde não

permaneço

                   - passo.

SONETO DA TUA VINDA ANTECIPADA

Chegaste antecipado de mistérios

tendo na face, amorfo, o meu segredo.

Na argila do teu beijo adolescente

trazes canções molhadas de esperanças

 

sobrepairando lábios e hemisférios

onde se oculta, informe, o teu degredo.

Te vejo aproximado e intransparente,

te sinto inatingido de lembranças.

 

Por onde andaste, ó ave de granito,

plantando os pensamentos? Onde a veste

a seduzir-te chamas, branco e espaços?

 

Meus olhos te investiram de infinito

guardando, intato, o amor que não trouxeste

na tarde prematura dos teus braços.

RUA(TRAIRI)

Nos cubos desse sal que me encarcera

(Pedras, silêncios, picaretas, luas,

anoitecidos braços na paisagem)

a duna antiga faz-se pavimento.

 

Meu chão se muda em novos alicerces,

sob as pedreiras rasgam-se meus passos;

 

e a velha grama (pasto de lirismos)

afoga-se nos sulcos das enxadas,

 

nas ânsias do caminho vertical.

Ao sono das areias abandonam-

se nesta rua vívidos fantasmas

 

De seus rios meninos que descalços

apascentavam lamas e enxurradas.

Meu chão de agora: a rua está calçada.

BILHAR

                                a Ludi e Oswaldo Lamartine

Na medida exata

em que a noite corre

não fico: me ausento

como quem morre

 

Entre lousa e livro

- único disfarce

que concedo ao tempo =

mudo-me a face

 

que, no entanto, vária,

inábil, reprimida,

perde-se no encontro

tátil da vida

 

Bola sete em rude

pano de bilhar

marco meu sem rumo

jogo-de-amar.

HELENA PARENTE CUNHA (1930 ) poeta baiana, é pós-doutorada em letras e fez carreira acadêmica como professora universitária da UFRJ. É também ficcionista, pesquisadora, ensaísta e crítica literária. Seu livro de estréia, Corpo do gozo (1960) foi premiado no Concurso de Poesia da Secretaria de Educação e Cultura da Guanabara, em 1965. Tem mais de 25 livros publicados entre poemas, contos e ensaios.

QUEM

quem me habita provisória

nesta paisagem súbita

onde sou?

 

quem chora pranto antigo

nos meus olhos contemporâneos

desta viagem?

 

quem fui quando passei

aqui tão longe

de onde sou agora?

BLOQUEIO

onde sopra agora o vento

que levava o que eu dizia?

 

onde se perderam os nomes

que tantas coisas tiveram?

 

onde ficaram as coisas

chamadas em minha voz?

 

e minha voz

como assim subtraída?

 

gosto de pedra

na saliva em minha língua

 

as palavras me emparedam

onde houvera minha boca

GEOMETRIA

paralela ao espelho

avanço

nos pontos

e nas linhas

que me traçam

 

as côncavas mãos

onde

me elipso

 

no riso horizontal

meu rosto

vertical ao

pranto

PERTO

Daqui

desta janela ocidental

da minha rua das laranjeiras

entre os cabelos assustados

dos dois coqueiros frente ao meu prédio

daqui

junto ao convite maternal das mangueiras

daqui

deste instante brasileiro

que se move aberto

pela minha janela carioca

daqui

da minha verde verdade tropical

eu vejo

sim eu vejo

daqui

a limpidez dos cedros

e a serenidade inequívoca dos pinheiros

plantados no outro lado do dia.

MARIA CONSUELO CUNHA CAMPOS (19  ) poeta matogrossense, nasceu em Porto Quebracho, MS, mas reside, desde os 8 meses, no Rio de Janeiro. É ensaista, contista e doutora em letras pela PUC-RJ. e professora de literatura brasileira da UERJ, nos cursos de graduação e pós-graduação .Publicou :Mineiridade(1980) (Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal) e Inácio de Loyola, o poema de Deus(1986).

FACHADA PARA BALANÇO

Por fora, uma boa mão de tinta.

Por dentro, um aviso prévio às ilusões, perdidas

No atrito do tempo com o ralo

Quotidiano.

Eis a casa interior,

Esta habitação do hábito

De novo pronta para o convivio

E para tudo.

 

Chatos

Como vitoriosos medíocfres

Seres clichês

Todos eles estão convidados,

Súbito convíveis

Sem mais hiperglicemia ou enxaqueca...

Ah, as fachadas,

Com que a casa acorda

Para o mesmo incolor nosso de cada dia!

FECHADA PARA BALANÇO

Persianas e venezianas, brasilianas

Fechadas

Bem trancadas todas, dentro de mim,

Que apuro débitos (muitos)

& créditos (poucos)

neste viejo almacén de secos ou de molhados

em que se transformou

meu quarto interior de guardados,

onde jaz, sem remorsos, a utopia não realizada

e as mil investidas contra moinhos de aço escovado

high tech design assinado

como se fossem apenas de vento...

FICHADA PARA BALANÇO

Até a próxima ditadura

Certamente civil,

Sorridente, cordial,

Ou até alguma razzia

Contra os opositores da globalização neoliberal

Ou- quem sabe?- mesma alguma simples blitz local

Contra os despossuídos de poder

De sempre...

(Só a ironia- esta bóia inflável- me salva do naufrágio cotidiano!)

LAURA NOGUEIRA(    ) poeta paraense, dedicou-se desde os 15 anos a escrever e reescrever a obra Porque Uma Flor é Grito Matéria, ganhadora, em 2012, do Prêmio Literário Vespasiano Ramos, promovido pela Academia Paraense de Letras, no gênero poesia. Formou-se em letras pela Universidade Federal do Pará e é professora de língua portuguesa. Participou das plaquetes 30 poetas,30 poemas (2015)e Belém 400 Anos(2016).

AUTO-RETRATO DE VAN GOGH

Há uma tempestade de luz sobre o rosto,

luz escura de agonia.

O amarelo como um golpe,

um susto e um surto.

Seria tua veia na fímbria da roupa o grito vermelho?

Estaria tua orelha esvaída na borda da camisa,

aba do chapéu, barba?

Tua face bordada pelo sangue

na tela sangrada de sombras.

Na tua boca o silêncio de cabelos brancos.

A estridente cabeça observa com olhos de turbulência.

NOITE ESTRELADA DE VAN GOGH

Na noite estrelada,

o acorde da angustiada guitarra.

O laranja ressoa

Na pele nasce violino estridente.

Da mão, o fogo redemoinha.

O gesto vermelho pare as chamas,

e uma voz negra.

Uma voz noturnamente azul

De absurdos silêncios e lembranças.

FEITOS

Atraí com o bico

do lápis

um pássaro

que sonhei.

Atirei-me ao precipício

do poema

com a pedra do sonho

amarrada ao pescoço.

MELANCÓLICO

                                                                           Ao amigo Marcos Palheta

Meu amigo é melancólico.

Os melancólicos também são pessoas interessantes, nos disse.

Cava com o olhar, na parede um mapa de filosofias.

Olha para nós como para o fundo de um poço.

Os olhos são poços com águas negras de melancolia.

 

Meu amigo vive um constante mergulhar.

Às vezes some numa frase.

Emerge depois como voltasse do mar,

E o mar fosse assombro.

 

Meu amigo retorna como quem volta ao distante.

Galga o sabor de vinhos antigos.

Quer ter um odre de poesia na adega de sua velhice.

É de temperamento plácido como a lagoa, a estrada sem viajantes,

Sol neutro na água.

Vê música no poema e sorri,

riso por vezes debulhado da angústia.

 


Publicado por Rubens Jardim em 08/05/2016 às 16h18
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04/04/2016 01h21
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (74ª POSTAGEM)

JANDIRA ZANCHI(19  ) poeta curitibana, é ficcionista e educadora. Tem cursos de pós-graduação em astronomia e educação e é profissional de magistério. Trabalhou na Universidade Agostinho Neto, Luanda – Angola, entre 1985 a 1987. Como poeta publicou Gume de Gueixa (2013),. o livro virtual A Janela dos Ventos (2012) e Balão de Ensaio (2007). Participa do cosnselho editorial de mallarmargens, Revista de poesia e arte contemporânea.

SISOS

...quase todos os instantes do dia

ocupados em desfazer as pistas

 

das grandes vertigens

           dos alpendres de muitas fases

dos minúsculos pormenores dialogados

enfrentados na tábua rasa dessa empáfia

oscilante e deslizante

 

comemorada em sisos e risos

           eloquentes

disparados ao sol e ao sul — de mim..

 

SENHORA

Foi na última noite.

A primeira tempestade da madrugada

Anunciava a chegada do alvorecer

E todos os raios que partiram

Em viagens ignoradas

Voltarão em um clarão de lucidez.

 

Eu só me ria, só me ria

correntes e grilhões desabando

nem barreiras nem segredos

como vivemos por tantos anos

agrilhoados obstinados.

Mas, tem a primeira madrugada.

 

Antes de adormecer grande despertar

palavras e conceitos

– não refaço não repiso não teorizo.

Prática pré-praxis teoria depois

sonho agora nessa madrugada.

 

 

castigos e fetiches

coração eterno coração

detive incansável

que ronda teus passos

 

deve estar na poeira dos teus pés

o segredo da minha paz.

 

17. OUTONO

estamos erguidos

em moreno quintal

 

jardim sem vícios

ou virtudes

por cem anos aspiraremos

um ar de maribondos

e metamorfoses

 

ondulando-nos

entre as crases

parágrafos

como germens

de cevadas

ou frutos de

outono.

 

UMBIGO

fumava fumaças

de charutos rútilos

desejava desvios

de prantos e pratas

nádegas de defuntos

 

esquálida e vibrante

essa face nódoa

amante do umbigo

 

fertilizadora de silêncios.

 

CARLA ANDRADE(1977 ) poeta mineira, é jornalista e vive em Brasília há sete anos. Alguns de seus poemas foram premiados em concursos em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Publicou três livros: Conjugação de Pingos de Chuva(2007) Artesanato de Perguntas(2013) e Voltagem (2014).

EMBRIAGUEZ

Acordei com gosto de ontem na boca.

Vontade de ser um bálsamo.

Procissão meus pensamentos,

sem velas, no escuro,

não há mãos dadas.

Vão-se ideias em vão.

Já vivi em livros

Suprimi vertigens

E não há mais vinho.

Estou extinta há anos.

 

O MOTIVO DO SILENCIO

Dendê, a palavra.

É pimenta que anula.

Gravata do sentimento.

Para o amor, envergadura.

 

A palavra

tem pele dura,

sem âmago.

É entranha de

fagulha.

 

A palavra é bêbada,

branca de desejo.

Vândala armadura.

 

Prende em ecos

o ar azul do dialeto,

rouba mãos, grossas veias,

esconde os dentes do afeto.

 

Invade a semântica do silêncio

a metáfora dos amantes.

Subverte o não nascido,

transverte

o que deve ser

                     polpa.

A palavra endireita

o que é certo torto.

Empobrece da alma o abismo.

 

Corpos nus

não conjugam verbos na cama.

 

MARCADOR DE LIVRO

 Esta fita vermelha

é como o fingimento dos seus quadris.

Sempre fecho o livro

quando não entendo o ritmo

das letras.

 

As perguntas tão

desinteressadas nas respostas.

 

Certos movimentos

automatizados

não me coram mais.

 

Mesmo assim,

rápidas,

lubrificantes de ponteiros

são as minhas mãos,

num seminário do desejo.

 

Na nudez do escuro,

nada é tão impuro.

 

BARRA GRANDE

Levei um ano para ver estrelas de novo.

Olhei muito para cima nesse intervalo,

mas elas se escondiam entre prédios com sobrenomes.

 

Tinha que voltar...

colecionar  as conchas que o mar

não nos trouxe,

como uma antologia

de tudo

que não se pode repetir.

 

ANA KEHL DE MORAES (1987) -poeta paulistana, fez curso de cinema na Universidade Federal Fluminense. Voltou pra São Paulo em 2010 e, no ano seguinte  publicou seu livro de poemas NÃO FALO(2011). Atualmente se dedica à permacultura, música, comunicação não-violenta, meditação e outres aprendizados – além da poesia.

1.

O mar: um fato,

uma gota e já é mar.

 

Amor: um fato,

uma gota e já é mar.

 

AMAR

Matutando.

Não sei o vento que me bate

na cara.

Se me levanta

ou se me resiste,

e não sei em que sentido:

de cima pra baixo

ou contra meu grito,

não sei em qual abismo

 

estou voando.

 

7.

João

é um chão firme.

Mas entre os grãos dessa terra

se forma uma colmeia

onde zumbem

os voos, viagens,

os muitos olhares de João.

 

Ele é um surto,

e também nossa rotina.

Abriga minha paixão,

abriga minha guerra.

 

Força bruta crua,

pensamento,

braço – barba – uma risada,

cara lunática.

muita estrada.

 

João está

onde eu vá.

Por toda a minha pele.

 

CALEIDOSCÓPIO

A presença é mais poderosa do que a simpatia,

a fotografia - dizem as mulheres quêchua -

dribla as almas,

os cometas nos espelham,

a saudade

é um artifício

dos deuses

pra nos lembrar quantos mundos somos.

 

ALICE SANTANA (1988) poeta carioca, estreou com o livro Dobradura, em 2008. Lançou também as plaquetes Pra não ficar na gaveta e Bichinhos de luz, em tiragens limitadas. Seu livro Pingue-Pongue, em parceria com Armando Freitas Filho, foi lançado 2012. Seus poemas estão em várias antologias. Rabo de Baleia(2013) é seu último livro.

na esquina da rua

um piano que toca

notas esparsas

em lá menor

 

nunca vi

o rosto de quem

se esconde por trás

de acordes sustenidos

 

e que desfila dedos no teclado

com a leveza de quem

sustenta passarinhos

no ar

 

COSTELAS DE ADÃO

não serve de nada a janela

a não ser para amparar do vidro do carro

a estrada que escapa veloz

e separar a montanha do céu noturno

na linha que divide o escuro do ainda mais escuro

você no banco um pouco mareado

estar perto não quer dizer muito

enquanto ainda não se chega lá

olhar pela janela uma tontura

a mesa que espera em casa

firme em suas quatro pernas

sustenta o vaso verde e nele

duas costelas de adão

as folhas estão prestes a irromper do vaso

assim que a luz for acesa

são fogos de artifício

estourando na fotografia

 

UM ENORME RABO DE BALEIA

cruzaria a sala nesse momento

sem barulho algum o bicho

afundaria nas tábuas corridas

e sumiria sem que percebêssemos

no sofá a falta de assunto

o que eu queria mas não te conto

era abraçar a baleia mergulhar com ela

sinto um tédio pavoroso desses dias

de água parada acumulando mosquito

apesar da agitação dos dias

da exaustão dos dias

o corpo que chega exausto em casa

com a mão esticada em busca

de um copo d’água

a urgência de seguir para uma terça

ou quarta boia e a vontade

é de abraçar um enorme

rabo de baleia seguir com ela

 

AUSÊNCIA

tenho te escrito com calma

cartas em um caderno azul

arranco da espiral e não posto

por preguiça ou nem morta

tenho medo da espera

durante dias ou semanas um animal horrível

(espécie de raposa) vai me perseguir

por dentro, ou serei eu mesma 

(um rato?) a me roer

enquanto a resposta não chega

perco muito tempo tentando

dar nomes aos bichos

que sobem a cortina do quarto.

 


Publicado por Rubens Jardim em 04/04/2016 às 01h21



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