Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
10/03/2016 15h09
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (73ª POSTAGEM)

NÍVIA MARIA VASCONCELLOS (1980) poeta baiana, é professora e mestre em literatura e diversidade cultural. Ganhou, em 2007, o 7º Festival Vozes da Terra de Feira de Santana-BA, com a música “Soneto que não queria existir”. Publicou os livros de poesia Invisibilidade (2002), Escondedouro do Amor e Outros Versos sob a Espera (2008) e A Morte da Amada(2013). Integra o grupo de declamação  Os Bocas Do Inferno.

O amor não está na estrela

que, ao cair, carrega o pedido sussurrado,

está no olhar que a percebe  e espera.

 

O amor não está nas cartas

lançadas sobre mesas postas,

está na tensão de quem as ouve e deseja.

 

Búzios, números e datas

não contém o amor,

ele não está numa procura.

 

Rezas, promessas e velas

não trazem o amor,

só a esperança de encontrá-lo.

 

Mas, ninguém encontra o amor,

ele é(misteriosamente) despertado...

num momento de distração e abandono.

 

CAÇOADA

(releitura do poema Consoada, de Manuel Bandeira)

A indesejável das gentes chegou

(Duríssima... nem um pouco caroável).

Eu tive muito medo,

Não sorri e nada disse a iniludível.

O dia não foi bom, a noite não aconteceu.

(Só vieram dela seus sortilégios)

E nada estava pronto: campo, casa.

A mesa não estava posta,

Mas ela veio mesmo assim.

Assim, com tudo fora do lugar...

 

KOPH

Amanhã, talvez seja abril,

E o pior dos meses se faça,

Mas,agora, ao findar-se a noite,

Ressuscitam os girassóis e,

O poeta, de peito aberto,

Entre as molduras da carta,

É a criança que avança

Em minha direção.

 

Mesmo que amanhã haja corpos a enterrar

E digam em alta voz:

HURRY UP PLEASE IT’S TIME,

Hoje há felicidade e o sol encharca o dia de êxito

...........................................................................................

Quando a amada morre,

Não é seu corpo que fenece,

Mas o desejo que existia por ele

E tudo o que era romance e espetáculo.

 

Não é a mulher que padece

Quando a amada morre,

É o amador que deixa de existir

E tudo é enterro, tudo é luto.

 

Não há coisa mais triste

Do que uma amada que morre

E que, quando morre, mata.

 

Quando a amada morre,

Parece a poesia

E viver é expiação e tormento.

 

Mas tudo revive quando,

Como um susto, outra amada surge

E com ela (de novo) o encanto.

 

MAH LUPORINI, (19  ) poeta paulista, é jornalista. Natural de São José dos Campos, reside em São Paulo. Colaboradora da revista eletrônica Mallarmargens, editou seu primeiro livro de poemas Ausências, (2010) de forma independente. Tem trabalhos publicados em sites de literatura. Seu segundo livro, Traço de Sombras, foi publicado em 2014.

CANTOS PAULISTANOS

I

Na Bela Cintra

Com a Alameda Santos

corpos

traduzem sombras

desenhados

pelo giz da noite

como uma pintura

de Modigliani

Amor blindado

nos teus lábios

Quero-te no desequilibrio

do meu riso

II

Consolação

de tornozelos

soltos

no girassol da noite

Sobre nós,

as palavras

deslizam

junto

ao casaco de

oito pernas

meu espírito

se despede

Tenho que

voltar

ao mosaico

do meu corpo

III

Ensaio

de outros eu

Na poltrona

do meu ego

pêndulos dos

corpos

na cômoda

do tempo

transpondo

a imagem

de quem

sou

PARA JACK KEROUAC

Encolho as noites

de setembro

No mural da

tua pele

Os outros em mim

quebram

O silêncio no

sapato da noite

 

 

SIMONE TEODORO(1981) poeta mineira, estudou letras na Universidade Federal de Minas Gerais, foi professora de literatura e fez mestrado na mesma instituição. É leitora compulsiva de poesia. Distraídas Astronautas (2014) é seu livro de estreia. Atualmente coordena as atividades de incentivo à leitura da Biblioteca Pública  de Belo Horizonte. Mas confessa: “poderia ter sido engenheira, lutadora de MMA, freira ou saxofonista. Uma vida só não basta:  sou poeta.

NÃO ERA

Não era vento:

Era ser forte

Era ser fraco

E, às vezes, sem rumo.

 

Não era chama:

Era um gosto na língua

Era umidade entre as pernas

Era angústia de amar.

 

Não era outono:

Era a superfície da pele

Alcatifada por rugas.

 

Não era um trilho de trem

Uma estação ferroviária

Um aeroporto

Nem mesmo o mar

Com um barco distante:

Era a vida que restava

Acorrentada à ausência.

 

Não era chuva:

Era tristeza pura.

E só.

 

DISTRAÍDAS ASTRONAUTAS

O céu sempre me pareceu

tão masculino

todo azul

e com um deus morando  dentro

(segundo as narrativas da mãe

quando eu ainda era o inchaço em seu ventre

e captava sussurros

pelas viscosidades da placenta).

Um deus de barba branca

no trono, ela dizia.

Trovejante voz paterna

ordenando o alternar dos dias

e das estações e dos tons de azul

do céu

que sempre me pareceu tão masculino

Porque lá tinha um trono.

Porque lá tinha uma ordem.

Porque lá tinha um grito.

Mas então vem a lua

e um império inteiro desaba.

Odores de fêmea

umedecem os ares.

A lua, inchada

como a barriga da mãe

quando me contava mentiras

A lua, pálida ou vermelha

ou quando uma sombra ameaça

sua estranha claridade.

E de perto (bem de perto)

-Por dentro-

Uma profusão de chagas escancaradas

Crateras

sobre as quais

distraídas astronautas

de tempos em tempos

vêm pisar

alargando feridas

fincando bandeiras

enlouquecendo

Para, em seguida,

desaparecerem para sempre.

 

JARDINAGEM II

O jardim era belo

Visto por qualquer passante.

Visto de qualquer ângulo,

era incrivelmente belo.

Tulipas

Gérberas

Miosótis

E cravos.

De qualquer ângulo,

Não havia dúvida.

Mas não para quem

ousasse se deitar

Entre os canteiros.

Não para quem

atraído pelo pulsar das cores

enxergasse o jardim pelo avesso

ao se aproximar demasiado

deixando o olhar escorrer

por um caule

até encontrar

sob a umidade da terra

fixadas

monstruosas raízes.

 

SOBRE ARDER

Eu sei

Ousei flertar com claridades

Mas sou filha do breu

E agora me recolho

Barroca e contorcida

 

(Minhas frágeis asas de cera...)

 

E ela era um verão

Inteiro em minha cama

Ardendo


Publicado por Rubens Jardim em 10/03/2016 às 15h09
 
22/02/2016 01h02
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (72ª POSTAGEM)

ELIZABETH VEIGA(1941) poeta carioca, estreou em livro em 1972, com o volume Gosto de fábula. Vinte anos depois veio A paixão em claro e dez anos mais para a publicação de Sonata para Pandemônio(2002).Em 2007, A estalagem do som.

PERDA

Da primeira vez que me quebraram

toda

dobrei os joelhos,

caí sem joelhos,

me dobrei toda sobre

o vazio dos braços.

Os ossos tiritavam,

a cabeça estalava

um sino:

toda um estaleiro

sem navios,

só pavios de viagem,

toda uma estalagem

bêbada de sombras

e sinas,

não sabia mais

quantas primaveras

fazem um cisne,

não sabia

beber a não ser

com as mãos em cuia,

eu era um pires

com a cara redonda

que os gatos lamberam

e fugiram,

um piano com febre

em desarticulação nervosa,

uma pátina derretida,

uma patavina

atarantada

com os caracóis da poeira

sumida no horizonte.

 

SONATA ACHINCALHADA

1 (coisas de superegos)

 Canonizaram o esqueleto da burra.

Entronizaram-lhe os quartos traseiros

num andor.

Suas mandíbulas

atarracadas

silvam bênçãos.

Condenaram-na ao inferno.

 

2 (esquisitices de ego)

 Na algibeira da muleta

carrego

a panela de pressão social

fervendo,

e uma xícara de chacota

sem açúcar.

E resfolego, mula,

sem pretender o Olimpo

das belas letras,

vou trôpega,

vou pelo avesso

empacada.

Quem quiser que funcione:

eu sou um parafuso a menos

da máquina do mundo.

 

CONTEMPLAÇÃO DA OVELHA

Tão de banda, comovia,

tão folclore de branco nos pêlos

era grisalha

nervosa, nas patadas de cabrito,

tosquia das nuvens do sonho,

tão sweater parecia vermelha

tão sweeter

de ternuras obsoletas,

negra

de pêsames e algias,

ovelha nas orelhas

abaixadas,

nos quadris redondos

e na postura

de galinha choca envergonhada,

derramada de lã,

enovelada debaixo dos cabelos,

era a ovelha de noiva

cerzindo meias e remendos,

tremida

nas lágrimas de um copo d´água.

 

O AMOR

O amor subverte

todos os espaços,

ocupa o relógio inteiro:

explode

as horas que não são suas.

O amor dissolve o diário,

calendário, lenda,

brinca do que não existe.

O amor rasga o fogo

com os dentes:

a surpresa ilumina.

 

HILDA MACHADO(1952-2007) poeta carioca, foi professora, estudiosa de cinema e cineasta premiada. Não publicou nenhum livro e foi descoberta pelo pessoal da revista Inimigo Rumor que publicou, em 2004, dois poemas de sua autoria. Mais adiante, em 2009, vieram à luz mais 9 poemas inéditos publicados pela Modo de Usar&Co.

 MISCASTING

               “So you think salvation lies in pretending?”

                                                                Paul Bowles

estou entregando o cargo

onde é que assino

retorno outros pertences

um pavilhão em ruínas

o glorioso crepúsculo na praia

e a personagem de mulher

mais Julieta que Justine

adeus ardor

adeus afrontas

estou entregando o cargo

onde é que assino

 

há 77 dias deixei na portaria

o remo de cativo nas galés de Argélia

uma garrafa de vodka vazia

cinco meses de luxúria

despido o luto

na esquina

um ovo

feliz ano novo

bem vindo outro

como é que abre esse champanhe

como se ri

 

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope

armou a sua armadilha

cisco no olho da caolha

a sua vitória de Pirro

cidades fortificadas

mil torres

escaladas por memórias inimigas

eu, a amada

eu, a sábia

eu, a traída

 

agora finalmente estou renunciando ao pacto

rasgo o contrato

devolvo a fita

me vendeu gato por lebre

paródia por filme francês

a atriz coadjuvante é uma canastra

a cena da queda é o mesmo castelo de cartas

o herói chega dizendo ter perdido a chave

a barba de mais de três dias

 

vim devolver o homem

assino onde

o peito desse cavaleiro não é de aço

sua armadura é um galão de tinta inútil

similar paraguaio

fraco abusado

soufflé falhado e palavra fútil

 

seu peito de cavalheiro

é porta sem campainha

telefone que não responde

só tropeça em velhos recados

positivo

câmbio

não adianta insistir

onde não há ninguém em casa

 

os joelhos ainda esfolados

lambendo os dedos

procuro por compressas frias

oh céu brilhante do exílio

que terra

que tribo

produziu o teatrinho Troll colado à minha boca

onde é que fica essa tomada

onde desliga

 

CABO FRIO

Nuvens passageiras

miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste

queda de folhagem

muda retórica

 

O Sudoeste dá rédeas à repulsa

nuvens erráticas devoram rivais

Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor

 

Em dia sem vento

a falta de engenho permite

purezas de sabão e macieiras em flor

talco no chão do banheiro

sorvete marca Aristófanes

 

Mas quase sempre ele pisa seus véus

 

Duas mãos de cinza desmaiado

sobre fundo esmaltado é perícia

renda

luxo magnífico e corrupto

realização elegante de algum mandarim

leque de plumas de avestruz tintas de rosa

levemente agitado diante da luz

 

O CINEASTA DO LEBLON

“Aquele que escavar em sua consciência

até a camada do ritmo e flutuar nela

não perderá o juízo.”

Nina Gagen-Torn

 

O brilho de laranja ao sol

amendoeira rubra e pavão

oculta sobressaltos faustianos

encenam-se dramas na alma

suadas peripécias

lágrimas

mímesis

em sítios escusos está a mocinha raptada por um turco

e a nudez do missionário espancado

folheia-se uma antologia de acidentes

títulos afundam

e no lodo

personagens sem nome

e escândalos de fancaria

 

O comércio incessante

distrai das caudalosas sociologias do fracasso

idades do ouro perdidas

terror espetacular

recorta o esforço de colosso trágico

alçar-se acima da imensa massa de vencidos

violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa

carnaval exterior que é dublagem

 

Nos domingos de lua cheia

um infante sôfrego obriga a minuciosos tratados

miuçalhas

monopólio

asperezas

contrabando

e então

razias de corsário

 

na lua nova cruzo a cidade pra beijar a sua boca

transpor morros e encontrar a elevação

tropeça-se em pétalas de rosas

em trufas

visitas ao paraíso

as quartas-feiras são turvas

e trazem as penas do inferno

telefonemas seus

telefonemas meus

telefonemas da outra

e a ex

compomos o obrigatório conflito

repetir com honestidade a velha trama

até que ao fim do primeiro bimestre

erra-se no açúcar

escorrega-se na farsa

e mudam-se todos para a novela das 7

 

Homem da lua

fantasia de rudes hormônios

o bicho se coça

fervor marcial e bico de passarinho

cavalo rampante que rasga com as patas convenções de estilo

atravessa pontes queimadas

alcançou o vale feroz

terremoto maior que o de Lisboa arrasa cidadelas

afrouxa parafusos

e do colchão abala a mola-mestra

 

ouviu, carro?

tribos bárbaras desabam sobre a minha Europa

 

ouviu, montanha?

mudaram os livros que eu agora levo pra cama

antigas lendas fabulosas

uma grosseira rapsódia

cinco escritos libertinos

eu bebo como num banquete em Siracusa

e gozo como as prostitutas de Corinto

palmeira, ouviu?

 

O NARIZ CONTRA A VIDRAÇA

como a paisagem era terrível

mandou se fechassem as janelas

o nariz contra a vidraça e o fla-flu comendo lá fora

genocídios, promessas, plenilúnios

O festim de Nabucodonosor, a vitória dos pó-de-arroz

as dores do pai e os gritos de amor

são agora aquarelas pitorescas

 

O nariz contra a vidraça

melhor ainda atrás da persiana

ela com seus preciosismos

unhas feitas entre desfiladeiros de livros

barricadas contra o sublime e o medo

 

Discreta voyeuse

o sofá combinando com o tom das exegeses

a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos

perífrases sobre paninhos de crochê

e em vez de carne poemas no congelador

 

Anônima, dizia sempre à manicure

e apesar das mãos que enrugam

as unhas bem curtas e o esmalte claro, por favor

 

Um dia, o leite derramado na cozinha, saiu

garras vermelhas, bateu à porta do vizinho

JULIANA KRAPP(1980) poeta carioca, é jornalista e  mestre em comunicação social pela UERJ. Participa do grupo CAC (Comunicação, Arte e Cidade).Inédita em livro, tem poemas publicados em revistas como Inimigo Rumor, Germina e Poesia Sempre.

A ESTRUTURA ÍNTIMA DAS HORAS

Acontece apenas no mar

de concreto protendido à beira

da estrada e apenas quando a estrada

tem algo de fogo

ensurdecedor:

 

um lagarto, osso

de candura, rompe

a respiração da tarde, penetra

em todas as substâncias — as rochosas

e as celestes, os líquidos escuros e

sua pantomima de espelhos

 

Enquanto tudo ao seu redor é ênfase

(profusão de tecidos

lancinantes),

o seu avesso

é puro vidro

ardoroso: quer partir

entreabrir-se em sulcos

lentos, desdobráveis

 

Você, ao volante, não percebe

mas isso tudo é como nós dois,

na Cinelândia, às cinco horas

de uma tarde de verão, com uma

caixa de alfajores e vontade de café, quando

há no ar algo de concha,

estiramento, zona cega: a experiência

do precipício

 

PUNÇÃO

campanários. isso sim é uma casa

não aqui

onde os objetos sequer conspiram

onde a pele não se reconhece pele

e não se engendra cápsula de outra cápsula

posse de um único mistério

com seu agravo inabalável. uma casa

 

requer formas como dormideiras

que se recolham à carícia quando todas as carícias

são íntimas é tão surrado reconhecer

nas paredes que a única propriedade possível

é a fuga e mais ainda o sono profundo e

que sobretudo os mais elaborados sinais de chuva

não passam de sentinelas

resfolegando seu passo de partida

 

esta casa

não é minha: não se alcança daqui o brejo

afetuoso ao fundo de todas as coisas

não se vê o fosso

translúcido extorquindo das frestas

as esquadrias

 

tampouco há cantigas

emudecedoras

quando as horas se constrangem ao toque

ou ao contato do antebraço

com o repuxo invisível do acrílico

 

nesta casa

(assim como em todas as outras)

só resiste a ânsia de um veneno

afogado

em seu desleixo por lãs e puxadores

um veneno tão debilitado e circunstante

inabitável

quanto a certeza de que há ainda

no mundo tanto tremor

por tão pouca terra

 

FALÁCIA

Você falou que gostava dos nomes que parecem interrompidos

Conrad, Murdoc

Eu disse sic. Não atenda, por favor.

O céu não entende de marte, mas você disse

e marte ficou estranha, um olhinho exasperado

enciclopédico

como o sexo que fizemos depois. De certa forma precoce,

ficou revoando no papel pardo da janela

até encontrar uma fissura — toda vidro, toda alhures

 

Você falou plâncton, lítio (rocha sedenta)

árduos assassinos de aluguel espreitando nas masmorras

e, num murmúrio: “treliças”

“orquídeas”

arrebite

para que se ache um ponto de fuga, um ósculo rude

boca vulva narinas — orifícios de luxo

espiando de soslaio fluxos

de palavras novas

e líquidos pela metade.

Você falou alcagüete

e adormeceu com a mão um pouco trêmula sobre a minha perna.

 

PRETEXTO

o olho da rua é seco, sarcástico

do mesmo gênero das abotoaduras

e toucadores

 

de tudo resta sempre o seu mistério virgem

a beleza de íris os ares encardidos a córnea

tal qual um diadema espavorido

sobre nossas cabeças

 

então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia

e travou o zíper sobre a pele

POLLYANA QUINTELLA (1992 ) poeta carioca, é historiadora de arte e co-editora da revista Usina. Cursou a PPGArtes da UERJ e a  Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Trabalhou em diversos museus: Dom João VI, Museu de Arte e na Chácara do Céu.  Não tem nenhum livro publicado.

DEPOIS DE ARTAUD

“Detemos as palavras nos seus pequenos odores de trufa sem descer em seus ossários?” Artaud

 estou

numa tarde

muito quente

em que pessoas

tiram a pele de palavras

e expõem seus ossos

como coisas cruas

contorcendo-as

em carne viva

enquanto me

cumprimentam

(ao cumprimentar

escondem as palavras

debaixo da língua

e emitem sons

estranhos

códigos vazios

entre bomdias

e obrigados)

pra que serve essa coisa

de língua que falam

a dos bonsdias e obrigados

não conhecem

são eles que

são conhecidos pela língua

porque do bomdia

não sabem do d ou do dia

(então como explicar

essa substância venenosa

que vomitam todos os dias?)

e agora

assombrados por esta coisa

que os conhece

não querem línguas escavadas

não querem línguas cariadas

querem dentistas da língua

profissionais que lhes tapem

os buracos ambíguos

dos seus enunciados

de noite pesadelam

com línguas que perfuram

órgãos

e palavras que engasgam

para matar sensatos

e acordam comprometidos

a aprender latim

ou qualquer língua

sem nativos

e nunca mais usar

as aspas

na esperança de fundar

significados imobilizados

com seguros de vida

pensam estar livres da maldição

mas temem que o estupro

do corpo das palavras

traumatize seus sentidos

seus certificados

suas consoantes

e seus acentos

numa grande explosão

vulcânica e sanguinária

já não se entendem

os dentistas estão loucos

a lava das palavras

lambe chão

e sulca coisas

e derrete mundo

os dentistas estão loucos

correm para tratar dos dentes

por onde elas passam

antes que apodreçam

o espírito

 

2.

diante do espelho

finalmente a garota

era preciso isto: 

embaçar a retina 

desconhecer os poros usuais 

pela investigação da imagem 

irreconciliável

da máquina corpo os encaixes falhos 

(os deslizes da engrenagem 

      os lapsos venosos)

um medo do mecanismo que sou 

—— o que é isto —— 

que enguiça no instante imponderável 

que enferruja e destroça os hábitos 

e um dia escangalha as funções 

sem mais nem menos 

assim 

pelas rédeas da contingência

eu que conheço pouco 

eu que no espelho fico 

até estranhar tudo 

longos e largos minutos 

pergunto ao relento 

o que faço com isto

 

4.

encontrava-me baldia

terra salgada de fronteiras

estéreis

buscava em par de olhos

os sonhos desabrigados

a pele vestida de miudezas frescas

nua do profundo

e de repente

o garoto rondava

meus cantos ermos 

minhas quinas pontudíssimas

minha janela dura defeituosa

sem que eu pudesse casar as mãos

nas suas mechas negras 

violentas de vida

estive então a cuspir tudo

a enquadrar o mundo

e arredondar as ruas

estive a dançar nas bordas

do risco

pra fecundar meu cultivo

de ramagens inexplicáveis

e é a entrega uma selva que sacode o horizonte.

 

5.

dois corpos num outono movediço.

(arranha na canela um vento dos penhascos sólidos, 

e marrons das folhas secas desidratadas)

preveem juntos uma vida de estações 

de azuis e amarelos 

invernos alérgicos

primaveras claras

verões alquímicos

vislumbram os ciclos coerentes

dos astros que não veem 

e resistem 

às catástrofes que varrem os

homens-cidade 

 


Publicado por Rubens Jardim em 22/02/2016 às 01h02
 
01/02/2016 14h43
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (71ª POSTAGEM)

CLAUDIA SCHROEDER (1973) poeta gaúcha, é formada em publicidade e propaganda pela PUCRS .Publicou um livro aos 14 anos e outro aos 17 na sua cidade natal, Santo Ângelo. Hoje é Diretora de Criação de uma agência de propaganda e mãe de Theodoro. Publicou o livro de poemas Leia-me toda (2012)

ÚNICO

No fundo, no fundo

no fundo

do útero

da banheira plástica

do berço

e da casa

somos só eu

e você.

Qualquer terceiro

nos sobra.

 PÁLPEBRAS

Quando as pálpebras dobram duplamente

é porque estou velha.

É porque estou anja, calejada, já eterna.

É porque sou passada do tempo

mesmo que o cônjuge me ache linda

ao vento.

Quando o espelho mostra que o meu piscar

faz duas dobras

eu vejo tudo o que sobra

tudo o que fica

e o que me conforta.

Vejo que o tempo não passou:

está passando

bem na minha porta.

Mas não tenho mais fôlego

para trocar de endereço.

Ele me acha, mesmo assim:

tem um pacto com os correios dos anos.

E então eu tento não piscar resoluta

para que as pálpebras não se dobrem

absolutas.

Mas elas o fazem bem no risco

entre a sombra

e a pele virgem:

uma dobra entre a fronteira da maquiagem

e da estiagem

do tempo sobre a minha pele.

Quando há dobras nas pálpebras

o meu eu se dobra

para o tempo

agora.

 EM BRANCO

As minhas canetas sem carga

deixaram tudo em branco:

os bilhetes

as cartas

o papel da pipoca perdido no banco.

Só podiam ver o escrito

tocando os dedos.

(O afundar da ponta da caneta sem tinta

deixou escrito o que eu tinha a dizer:

todos os meus segredos.)

E a vida ficou em braile às avessas.

EU

Eu só queria que você olhasse

para a minha alma

e visse

a calma

a cama

a ama

a dona

a chorona

a fraca

a frágil

a mesma.

 

Por fora sou uma.

Por dentro sou tantas

aos prantos

(Mas só

de vez

em quando).

ADRI ALEIXO(1975) poeta mineira, é formada em letras pela UEMG  e escreve poemas desde a juventude. De vez em quando arrisca alguns contos. Possui textos publicados em jornais locais e no espaço virtual  Pétalas Poéticas. Publicou os livros de poemas: Des.caminhos(2014) e Pés (2015).

CONFISSÃO

Você pensa, mas pouco me sabe

talvez saiba daquele nosso crepúsculo

que o rosa-azul-lilás é a cor que me furta

e algumas bobagens que disse pra te distrair

mas  não sabe que se saio ao sol

é porque me chove e  me alago de ti

nem que meu solo é grave.

Sou teu verbo: defectivo.

O que não confesso

inscrevo em versos.

Eu, precipício

você, cântaro amor.

 

CALEFAÇÃO

Os pés cansados:

cadafalso, candelabro.

Pisar minúcias

nas costas, o mundo

os filhos nos braços.

 

E você diz que a mulher deve ter pés delicados.

 

VOO

vê, são flores

mas parecem palavras

voando

à procura de pouso

 

REGOLITO

Quando saio,

nunca sei aonde vou

me perco entre as ideias do caminho.

Meus pés querem céu

meu corpo, um canto ribeirinho.

Se volto, é porque um astro

me prende ao chão.

 

O antúrio sempre me cumprimenta à porta.

LOU VILELA(   ) poeta potiguar, é administradora especialista em logística. Vive no Recife desde a infância. Possui poemas publicados na agenda da Tribo (2012/2013/2014), e em diversos sítios na internet. Foi incluída no livro Maria Clara – uniVersos Femininos (2010). Publicou o livro  de poemas Pulgas de Concreto(2014)

IX

a moça da saia vermelha

nada me dizia

estava ali, impassível, em sua beleza ácida

queria voar

não havia asas

apenas poesia – ponte aérea

entre vãos

e todas aquelas vozes celulares

ar rarefeito unindo

motivos, vidas, saguão

TARDE GRIS

não me tomes por triste quando relato

o meu, o teu - o nosso cansaço

entrecortado

animosidade gutural

não me tomes por triste

só poeira, olhar alérgico

descompasso

trans.formação

não, não me tomes por triste

cada veio, cada rasgo provém

de um tempo que esfola

e abriga

REFLEXOS

é esse teu olhar invasivo

que atordoa...

 

essa tua tatuagem olfativa

que embriaga...

 

tuas unhas que marcam,

tua saliva que cura.

 

são os teus trejeitos que ins.piro,

os teus trajetos que invado

entre mentes dentes dedos e falo.

enquanto transbordas

me alago.

 

FLUIDEZ

Acordei com o sal da palavra.

Logo hoje, dia de deslembrar,

Invade-me traçado

Um corpoema.

Acordei com o sal da palavra.

Toda a metáfora liquefeita

Entre os vãos

De minhas coxas,

Vontade de escorrer

Sem margens.

SILVANA GUIMARÃES (1969).poeta mineira, é socióloga e escritora. Organizou e participou de algumas coletâneas, entre elas, Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014) e 1917-2017 — O Século sem Fim (Org. Marco Aqueiva, Patuá, 2017). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Lança seu primeiro livro, de poesia, em 2018.

habeas corpus

nada como a esperança para curar as dores

de uma era oca: beco da morte-sem-saída

 

nada como o ódio para acelerar o rumo de

uma história infeliz de busca & apreensões

 

[quando a minha fome beija a sua sede

meus olhos se encontram com meus olhos

 

minha alma fareja o que sobrou dos restos

mais humanos do corpo ultrajado: o meu]

 

descarregaram a ira em apenas um que era

multidão: ela atira tinta em vez de sangue

 

aqui não é paris: mas a estrela brilha sobre

os ratos de ocasião: dizem que vão pegá-los

 

que venham os bárbaros: inda que seja tarde

que cheguem com mais fúria: com mais medo

 

banquete

a mesa posta

cerejas lichias

uvas castanhas

ameixas pão

 

o corpo morto

abocanhado

vida-vísceras

cristo-a-cristo

 

repartido em vinho

comungado no pernil

 

o estupor nos

fios de ovos

no arroz com

passas & nozes

 

nas asas fincadas

ao meu redor

mamuskas

a trisavó cresceu com a mania de recolher nuncas

a bisavó passou a vida colecionando nãos

a avó, entre rezas, reunia quimeras

a mãe empilhava lamúrias

ela habituou-se aos muros

a filha junta janelas

a neta, pássaros

CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA

impossível fechar as pernas

e matar a borboleta que

voa voa voa entre elas

 


Publicado por Rubens Jardim em 01/02/2016 às 14h43
 
14/01/2016 13h52
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (70ª POSTAGEM)

SOCORRO LIRA (1974) poeta paraibana, é psicóloga, foi professora e organizou grupos de mulheres, com vistas à ocupação de terras na região do Brejo Paraibano. É pesquisadora, compositora, instrumentista e cantora com vários discos gravados e inúmeras apresentações em shows. Seu primeiro livro de poemas Aquarelar, foi publicado em 2007 e A pena secreta da Asa, segundo livro, veio à luz em 2015.

A cor que me deste em rosa

me despertou assim despetalada

já meio parto dessa madrugada

nasci doente de amor, passada

da minha hora de nascer e à luz

de uma velinha que cobriu o mundo

e deu-me a sombra dada ao vagabundo

que tem o céu por casa sem o ter

e o azul por manto protetor

para vestir a pele quando a dor

o visitar na hora de viver

 

O QUE É NOSSO

Tornar universal um amor que é meu

tomar do universo uma dor que é sua

tirar da vida o pão de cada dia

palavra por palavra

– a poesia

 

A LÍNGUA

Revirando gavetas do tempo

retirando poeira dos cantos

reencontro você, bem no ponto,

que paramos de andar adiante

e escrevemos um pequeno conto...

Com a vida, a nossa, escrevemos

poucas linhas pra contar o quanto

foi de prima, de cara, o encanto

registrado no canto da alma

onde fala, o amor, esperanto

 

EU

Sou das rodas e da feira

da tapioca e beiju

da lata d’água, peneira

nada mais, além de tu

e nem aquém

Sou loiceira

no barro, moldando a vida

farinha de mandioca,

na oca, é minha comida

Entendo de linha torta

e de fazer despedida

portanto, entendo de asa

assim como de voar

– voar é voltar pra casa

que não se sabe onde estar

mas ir, faz parte da ida

assim como o faz, ficar

 

PRISCA AGUSTONI (1975) poeta nascida na Suiça, vive no Brasil desde 2003. É professora de literatura italiana na Universidade Federal de Juiz de Fora, tradutora e autora de literatura infantojuvenil.  Já fez parte de grupo teatral e já foi publicada em Portugal, Suiça e Espanha. No Brasil publicou 3 livros de poemas: Inventário de Vozes (2001), Irmãs de Feno( 2002) e Dias emigrantes y otros poemas (2004).

FESTA

Cada palavra tem seu espaço.

 

Mesmo o silêncio

tem espessura de homem.

 

Os tambores escutam

em surdina

a entrega do corpo.

 

Eis o cenário

onde a palavra se renova

 

pesando eternidade.

 

1.

após dar três voltas

na chave, hermética, a porta

de entrada fica ali, branca

e pura pomba da asa cortada

a insinuar o voo — un vol

que havia, a vida que havia

antes que o chão não fosse

tição ardente sob os pés

ou tapete de ladrilhos

numa igreja sem fiéis

 

3.

não há lugar

digo e repito

estou cheia de se

onde quando e

talvez amanhã

tente outra vez

toca e vê se tem

um canto digo

um apenas

para a palavra

 

               trégua

 

4.

roçar de palavras

é acender a estrela-guia

do corpo:

dedos e unhas

na ponta de cada sílaba

são facas sutis ao adentrar

a língua

para expelir

os ungüentos oleosos

do texto

 

VIVIANE BARROSO (1979) poeta carioca, escreve desde os 12 anos e não publicou nenhum livro. Ao pedir sua minibio, ela escreveu-me: “não possuo cursos, nem formação acadêmica e nem trabalho em área ligada à literatura ou magistério. Sou uma pessoa sem nenhuma ligação com o sistema. Sou poeta na crueza do termo e porque esse dom me foi dado”.

BIOGRAFIA MUDA

Minha linguagem é feita de silêncio.

Da densidade sólida

Que corrói as paredes

De todos os templos.

Prece muda, quase um fluído

Se esvaindo do pensamento.

O verbo que fala de mim, sussurra.

Está noutro tempo,

Noutra rima,

Noutro verso.

Verbo imperfeito

Que não quer virar palavra:

Verbo que cala,

Verbo que morre,

Verbo que mata.

Assim, sou um rascunho

Entre junho e julho,

Quando o frio é um poema fatigado

De esperar o inverno puro de agosto.

 

EU, PALHAÇO

Como um louco eu me enfeito:

Espelho de palhaço eu sou!

Caí de um circo que por aqui passou

E fiquei em mim.

Deixei de querer ser outro

E virei esse mesmo reflexo

De quando nasci -

O avesso de um bordado

Que ninguém vê.

Encanto de cores alcalinas

Decapitando a normalidade

Adquirida.

Sou um verão

Que nunca quis ser estação,

Mas brinca feliz

No calendário ensolarado

De janeiros.

O POETA É UM MÁRTIR

Sempre que há uma ponte
No caminho entre a Poesia e o poeta
Aborta-se a Palavra.
Entre a Poesia e o poeta
Deve existir um rio sem travessia.
E o poeta,
Para tocar o vértice da Poesia,
Deve fundir-se à sua correnteza.
É o suplício que fecunda o verso:
Morto o poeta,
Nasce o poema.

DESCRENÇA
Alguém me disse
Que outubros são pra caçar verbos.
Olhando pela janela ainda é maio.
Então eu guardo meu estilingue
Entre meus livros velhos
E vou dormir
Para espantar o tempo dos olhos.
Dou boa noite à Poesia 
Que arranca de mim
O meu relógio quebrado
E as pedrinhas que me dera quando,
Testando a minha crença no mundo,
Pendurou aquela paisagem
No vidro inocente do meu quarto.

 

LÍVIA NATÁLIA (1979) poeta baiana, é doutora em estudos literários e professora de teoria de literatura na Universidade Federal da Bahia. Realiza oficinas de criação literária e publicou 2 livros: Água Negra(2011) premiado pelo Concurso Literário do Banco Capital e Correntezas(2015). O poema Quadrilha foi colocado em outdoor –programa Poesia nas Ruas --e causou polêmica em  Salvador.

QUADRILHAS

Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM.

Maria guardou todos os seus sapatos.

 

ÁGUA NEGRA

Chove muito na cidade.

No asfalto betumoso um sangue transparente,

ora de um rubro desencarnado,

ora encardido de um cinza nebuloso,

é vomitado em cólicas

por toda a parte.

Das paredes duras vaza um mais escuro que,

imagino,

seja a água mordendo as estruturas.

A água é assim:

atiçada do céu,

infinita no mar,

nômade no chão pedregoso,

presa no fundo de um poço imenso:

a água devora tudo

com seus dentes intangíveis.

 

OSUN JANAÍNA

Descobri que, para mim,

ser mulher basta.

Para puxar véus,

levantar saias

pintar as unhas de vermelho feroz –

mesmo que seja só para dizer: para.

Ou para ver a dança des-contínua do seu corpo

sobre o meu (o meu oposto)

pelo espelho que se emancipa

das paredes deste quarto

e desta tarde delicada.

Mas sempre ser mulher basta:

posto que é inteiro e vão,

onda que bate na pedra e despedaça

apenas para voltar inteira

– afogada –

num mar de (in)diferenças

onde cada gota solitária e única

forma um discurso descomposto,

cambiante,

plural:

mesmo quando me atiro sobre esta pedra,

que me rechaça.

 

ODISSEU

Seu corpo cresce em puro júbilo de ser.

E só.

Sobre a cabeça, dança uma juba arisca

alimentada pelo vento e pelos sonhos

com que embala o mundo.

Seus gestos firmes cortam o tempo,

inscrevendo,

na pele crua da memória,

seu rastro.

Sua voz,

saltando frenética sobre os átimos,

devassa as franjas silenciosas que embainham

o mundo.

Mas quando seu corpo ressona nos lençóis,

onde o espero,

é meu o seu silêncio

e a calma do depois.

É no meu corpo que escreves

sua narrativa mais primeira

e definitiva.


Publicado por Rubens Jardim em 14/01/2016 às 13h52
 
22/12/2015 12h56
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (69ª POSTAGEM)

ANA ESTAREGUI(1987) poeta paulista, nasceu em Sorocaba, e vive em São Paulo desde 2005. É formada em artes visuais. Participou da Antologia Portapoema e produziu alguns livros independentes:  Para desprender dores (2011) e Poemas de sofá - achados ordinários de uma caipira (2012). Publicou Chá de Jasmim (2014), premiado pelo ProAC  em 2013, na categoria poesia.

GEOLOGIA

essas minhas linhas

da mão

me dizem que nasci

sem sorte

pro amor

a linha do coração: uma trilha

entrecortada descontínua atravessada

andarilha

seguem até o meio da palma, aos buracos

aos tropeços, ainda que sem pedra

no caminho

do médio

ao indicador

como se o abismo

fosse apenas

um vão entre os dedos

 

POEMAS DE KITNET (lifestyle)

na quitinete de 45 metros

tenho todas as solidões

que envolvem poeiras e

buracos desocupados

roseira sem flor e rosas avulsas

ganhadas no dia da mulher

 

tem o filtro de barro que não enche

sozinho os copos

os lírios que nascem e morrem

cristalizados

em fotografias digitais

na velocidade do congelador

criar crostas brancas

e o teto refletir a rua em formas móveis

e geométricas

toda noite

toda noite tem as janelas

dos vizinhos classe média

tingindo o escuro com

as cores luz do plasma

e dos cristais líquidos

 

os garfos a mais

as facas a mais

as taças de vinho que esperam

os talheres que sobram

sou só eu, não preciso de mais

que um copo

um garfo

uma faca

um prato

e um horizonte entrecortado de prédios desbotados.

 

UMA PALAVRA PODE SALVAR UMA MANHÃ

em algum lugar leio a palavra monóxido.

e durante a manhã fico pensando nela

como se fosse sólida

fico amando ela e ela me deixa bem (talvez me ame)

gosto de saber que existe essa palavra: monóxido

pra mim ela é inteira feita de titânio e pesa

tanto

que nem cimento e mesmo sendo gasosa

assenta as páginas brancas

das coisas que nem foram escritas ainda

 

NOJO

da janela do ônibus enxergo debaixo do pontilhão uma família de mendigos dormindo num monte de colchões finos e sujos misturados a papelão e jornal e sobre o chão porco de fuligem tóxica. os cinco dormem com cobertores novos de motivos infantis ultra coloridos. de relance na contraluz do túnel a imagem é tão bonita: um amontoado de pelúcia artificial com motivos meio nelson leirner meio leda catunda sobre as inúmeras variações de cinza de poeira fumaça fuligem pó.

por causa dessas e outras é que às vezes sinto nojo da estética.

VANESSA MOLNAR (19  ) escritora paulista, transita entre a poesia e a prosa. É historiadora e publicou em 2008 o livro Crônicas de uma tara gentil, prêmio PAC 2007.Participa ativamente das oficinas literárias na região do ABC, especialmente na Escola Livre de Literatura, em Santo André. Colabora em sites e revistas e mantém o blog O Mundo da Maga.

MULHER

Quando vai aprender que seu sexo é Terra?

Encosta o ouvido em seu  ventre de Ariadne

e escuta

a ausência do tempo febril

que perfura seu labirinto fechado

o eco

que rasga o vazio dos teus ossos

o silêncio

desse Dionísio que te fecunda.

 

PUTA

Sou um martelo, uma lâmina

uma corda

Instrumento suicida

Puta e santa

Cadela líquida

Agulha de cristal.

 

Sou uma granada, uma chaga

uma morta

Instrumento para a descida

Puta e santa

Sangue e líquen

Pedra enterrada no quintal.

 

Sou uma flor, um poema

uma açucena

Instrumento para a subida

Puta e santa

Punhal e carabina

e trago dentro da vagina

pássaros de sal.

 

DENTRO

Há uma produção noturna de orvalhos

inspirada

pela impossibilidade da palavra

que se encontra costurada

na garganta de um cavaleiro marfim.

 

E essa imagem me cavalga

sobe  rápida em minhas roxas coxas

aniquila minhas vértebras

me suja

 

e me sinto nua

feito um feto protegido

dentro da barriga do juízo final

 

e  me torno muda

como uma criança encontrada viva

em uma fotografia de Auschwitz.

 

BATISMO

Com o sêmen do passado

eu resgato

nossos órgãos divididos

entre a Chuva e o Cerrado

e me banho de novo

na incomunicabilidade

de uma tarde esguia.

E deixo que me atinja

com sua saliva lasciva

e que tinja minha vulva

com um vermelho marfim

E para enxugar os pecados

do meu dolorido corpo

 permito que você seja parido

no mais fundo de mim

 e te batizo de novo

e proclamo o fim dos sonhos

e te conto

 que se o mundo não fosse tão líquido

nós não seríamos assim.

CARLA NOBRE ( 19  ) poeta amapaense, é graduada em letras e especialista em língua portuguesa. Professora da rede estadual, é fundadora da associação literária e teatral Abeporá dsas Palavras, onde desenvolve trabalho voltado para a difusão da literatura produzida na Amazônia. Publicou os livros: Sobre o Adeus e o encelado de Saturno (2007) O amor é urgente e Exageros e  delicadezas(2013)

Deixo contigo

O mistério escuro dos corais

 

Levo comigo o desejo

De que teu barco

Permaneça ancorado

 

Em meu cais

 

SONETO DA PALAVRA NUA

Quero para minha poesia

Todas as palavras nojentas

As obscuras, as ambíguas

Uma linguagem piolhenta

 

Não me envergonho das minhas escolhas

Minha palavra é minha pepita

Catarro, mentira, dor, sangue

Suvaco, urubus, bruxaria, bauxita

 

Todas as palavras são bem vindas

E com elas as penas, a moela, as tripas

E todos os seus sentimentos e suas histórias

 

Das mais tristes às mais lindas

Fico com o verbo parir

E toda a sua memória

 

CANSEI DE SER SEREIA

Meu peito é mole, sim

Minha boca é carnuda

E eu gosto

Meu jogo é aberto

E eu posso

 

Minha vontade

Bole no mundo

 

Não sou de esconder as estrias

Não tenho medo da celulite

 

Eu sou Fada

Dama da noite

Afrodite

 

Não me venha com papo furado

De tia ou madrinha

 

Minha bunda é caída,

Sim, senhor!

E não é por isso que eu vou

Tapar o sol com a peneira

O que eu não tolero

É asneira

 

Eu sou uma mulher inteira

Plena de desejo

 

Não tenho medo de olhar,

De arranhar, de gritar...

Só não me venha

com modelos

Que eu não sou de apelar

 

Eu ando no mundo

Com o salto

que eu quiser

 

Eu me jogo do trampolim

me atiro sem para quedas

fumo

tomo gim

 

Se for preciso

mando até a merda

 

 

Cansei de ser sereia

Viúva negra

Bela adormecida

Chapeuzinho vermelho

Com medo do lobo

Eu? Medo?

Eu quero é comer o lobo!!!!

 

Principalmente se ele for mau

Lindo

E beijar devagar

E gostoso...

 

Eu quero é ser

Aranha caranguejeira

Quero ser de ostentar

Quero ser Mulher

Pronta para arrasar.

 

NÃO TE DEI O MAR

Não te dei o mar

Porque sou feita de rio

Te ofereci minha agua doce

Mergulhões

Sol quente batendo n’agua

Te ofereci meu coração líquido

Espalhado em tuas mãos

 

Não te dei o mar

Porque sou feita de rio

Te ofereci minhas sementes boiando

Minha guerra de peixes e cobras

Amazonas que seguem amando

 

Não te dei o mar

Porque sou feita de rio

Te ofereci minha boca

Te convidei a naufragar

No meu vento

Na força das minhas marés

 

Não te dei o mar

Mas minha agua barrenta

Seguirá sempre molhando teus pés

 

CLARISSA MACEDO(1988) poeta baiana, é mestre em literatura e diversidade cultural e doutoranda em literatura e cultura pela UFBA. Está presente em diversas coletâneas. É autora de O trem vermelho que partiu das cinzas (2014) e com os originais “Na Pata Do Cavalo Há Sete Abismos” conquistou o prêmio nacional de poesia da Academia de Letras da Bahia(2013)

DANIEL

                                            Para Gabriel Ferreira

Vem descendo da torre

como quem desce ao Jardim.

 

O semblante em asas.

 

Caminha forte, assombrado

de luz, coberto de si.

 

Na cova, onde pasmado

contempla jubas alegres,

toca o fogo que aparece:

anjo comensal da Graça.

 

Nessa Fé, toda em redemoinho,

já não se sabe quem é

anjo, leão, homem ou nada.

Todos voam na cova

em aurora, todos passarinhos.

 

FENDA

Há tempo o menino ficou lá fora.

Espera, espreita a barra da porta,

mas já não pode passar.

 

Todos os longos anos de preparo –

escola, dentista, boxe –

e a busca pelos jogos de montar,

pelo seio roído da mãe que já foi.

 

Uma vida de busca e solidão,

a passagem do peito fechada:

 

só o túmulo aberto da infância.

 

EXERCÍCIO

Cerrar os olhos

para que a última

lágrima cresça.

 

Cerrar os olhos

para que o mundo

seja memória.

 

Abrir os olhos

para que, afinal,

tudo se perca.

 

AQUELA QUE NÃO QUIS SER...

Nunca a mulher eleita

a mãe, a caseira. Jamais

a primogênita aceita.

 

Nunca a preferida assumida

ou a bela primeira legitimada.

 

Sempre a repartida, a preterida.

Dentre todas inteiras, a fragmentada.

 

Nela só a astúcia cruel,

molemente enraizada.

 

 

Só que a vida deu de adoecer

nela se putrefar

deu de sucumbir, se escrever

desabrochar

 

e desabafando,

a jogou bem no meio do mar.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 22/12/2015 às 12h56



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