Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
18/03/2023 00h29
UMA HISTÓRIA DE POESIA E CONFRONTO


 

Tem livro de poesia que conta uma história. Seus poemas são começo, meio e fim de uma jornada. Não estou falando das epopeias. De certa forma, devemos admitir que toda antologia ou coletânea conta uma história. O livro “Lindolf Bell – 50 anos de Catequese Poética”, organizado pelo poeta Rubens Jardim, nas suas cento e oito páginas, revela muitas coisas. Conta uma história. Fala de utopia. Fala de um tacape estético e político. Revela um jorro de sangue pulsando na flor da pele. Eis o prato da realidade servido no vômito dos apagões históricos. Este livro resgatou vozes poéticas de um tempo cheio de cicatrizes. Somente por isso, já se justificaria. Mas não é só isso.

Às vezes fico perdido nesta jaula que chamam de contemporaneidade. Como se fosse apenas uma caixinha de curtidas e compartilhamentos digitais do Século XXI. Penso a contemporaneidade de forma ampla. Especialmente quando o assunto é literatura. Muito mais especialmente quando se fala de poesia. Essa coisa que ainda hoje se mistura com a música, com as artes plásticas, com o teatro e que se perde em definições nos âmbitos acadêmicos ou na vontade embriagada dos poetas. Essa vontade de dizer sempre a mesma coisa de outro modo. A contemporaneidade é um tempo expandido e a poesia é uma esgrima atemporal. Portanto a Catequese fala dos nossos dias. Foi ontem.

 

Rubens Jardim e sua militância poética.

 

Quando leio Gregório de Matos Guerra sinto-o no meu tempo presente. Um poeta do tempo presente dizendo versos do tempo presente. Da mesma forma quando leio Oswald de Andrade, Cruz e Sousa ou mesmo Drummond. Nesta segunda década do século XXI este conceito de contemporaneidade parece tão líquido. Por isso me permito transgredi-lo o tempo todo. Maiakovski me diz coisas atuais.  Joan Brossa me empurra para experimentar agora, já. Contemporânea é a poesia viva, pois o resto nem cabe nas memórias do futuro. É o que está neste livro que recupera a Catequese Poética. Movimento social da poesia que sacudiu as ruas de 1964 até 1968. Em alguns estados, mas especialmente em São Paulo. Um tempo de confrontos inevitáveis e vozes que jamais se calaram. Mesmo quando abafadas pela morte.

A contemporaneidade é também a bolha de poetas iguaizinhos, quase gêmeos. Pimpolhos dos Jardins. Só não estão sós. Esta bolha está na contemporaneidade, mas não a representa em sua vocação expandida. Os dias passam. O tempo é uma bola de fogo cruzando um céu de diamantes. Somos produto e razão desta psicodelia. Às vezes parece que nada mudou. O poeta Rubens Jardim sabe que a poesia brasileira não é nenhuma “Serra Pelada”, mas é sempre produto de garimpo. Recentemente publicou - - pela Editora Arribaçã - um verdadeiro mapeamento das mulheres poetas contemporâneas do Brasil. Ele sabe que estamos sempre fugindo do rodo da história. Conhece os pontos de tocaia e escape. Permanecemos enquanto gerações e escolas da palavra e da luta.

O livro “Lindolf Bell – 50 Anos de Catequese Poética” chegou em 2014. Embalado numa bela edição da Editora Patuá. Belo como toda a produção do poeta e editor Eduardo Lacerda. Veio com os traços firmes da história. Trazendo a necessidade de manter viva a chama. Rememorando os que fizeram esta cruzada num tempo de confrontos. Os que berraram poemas no meio das praças, nas avenidas e viadutos. Lá onde as pessoas apostam na invisibilidade enquanto norma de sobrevivência. A “Catequese Poética de Lindolf Bell” completou cinquenta anos há sete anos e teve sua história eternizada por Rubens, um de seus maiores poetas. Um movimento que jamais poderá ser esquecido.

Precisamos ler os poemas de Lindof Bell agora. Um mestre que soltava a voz pelas esquinas. Também os de Iosito Aguiar, Carlos Vogt e sua exatidão. Nilza Barude, Jaa Torrano... Enfim, os que nos trazem um alento para esse tempo de incertezas. Um Rubens Jardim e seus versos espetando a pele. Ensinando a olhar para o nosso tempo. Afinal, estamos partilhando uma mesma época em diferentes períodos. Tempo de avanços e recuos. Avançando pouco é verdade, mas recuando cada vez menos. Eis um livro necessário para ser lido e estudado em 2021, em 2050 e 2100. Porque o tempo nunca atrasa e nossas angústias não se derramam em vão. Nosso Toré é no ritual da Lua Cheia.

“O alvo maior do movimento era catequizar”, disse Péricles Prade. “Levar a poesia ao conhecimento do grande público através de leituras de poemas em lugares previsíveis ou imprevisíveis, como o Viaduto do Chá, estádios de futebol, teatros, boates, feiras, clubes, escolas e eventos de toda a natureza”, conclui. Em plena ditadura. Encarando a vida de frente, de cara e alma limpa. Desafiando os coturnos que rasgaram a história para tingir de sangue uma noite de duas décadas.  “Lindolf Bell dizia seus poemas vívidos e de resistência. Eram manifestações populares, nas ruas, reunindo centenas de ouvintes, que buscavam como ele, fazer algo que falasse do seu inconformismo”, lembra Renata Pallotini.

O livro chegou num outro momento de turbulências. Tormentas recentes que abalaram a frágil democracia brasileira. De 2013 para cá aprendemos muito. Espero que não seja permitido mais um golpe. Assim como foi em 2016, em 1964 ou 1930. O Brasil tem uma tradição de quarteladas, torniquetes narrativos e canetadas. Mas também tem tradição de luta e resistência. Como faziam Castro Alves e Gregório de Mattos Guerra em seus tempos devidos. Como fizeram os Cabanos ou Mariguela. Eis um livro que faz parte de uma caminhada que nunca termina, mas que precisa sempre ser contada. Seja para não ser esquecida, seja para afirmar a Poesia Brasileira em todos os tempos do presente. Aliás, a Poesia Brasileira não se apartou da história. Também não naufragou no que o cânone silencia.

 

 

POEMAS E POETAS DA CATEQUESE POÉTICA

 

Réquiem

Não escreverei sobre ausências,
Ausência é bandeira de nada.
é ter partido
em direção de um país sem lodo nem lama.
Onde a identidade se faz do afeto.
E a dúvida é poço entreaberto
e o coração um fruto de semente madura.
Ausência é só lembrar, é só lembrar!

Ausência é só lume de esquecimento.
É só limo de eternidade.
É só flor de certeza e agonia.
Só o corpo impedido, só surdo desejo,
só pele mudada em terra,
só tempo feito areia.

Ausência é só lembrar, é só lembrar!
 

II

Um laço que nada prende
e não se desamarra nunca.
A face de Deus azuleja.

Meu coração pensa que sabe tudo.
Todavia, se pergunto de meus amores,
se desfaz em dúvidas
e fica mudo.

 

IX

 

O destino?
Buraco de agulha
onde o homem passa
com sede do camelo
e o coração cheio de graça

Destino?
Agulha no palheiro
onde o homem se procura
o tempo inteiro.

 

Lindof Bell nasceu em Timbó-SC, em 1938. Faleceu em Blumenau-SC, em 1998

 


 

Integração 

Nosso amor ficará gravado
não em árvore
não em pedra
Ficará gravado no colchão de molas!

 

 

Intacta nas tintas

Intacta nas tintas e nos tinteiros
recorres, incorres (mesmo sem correr)
correção parada, errata: breve lapso
orden(h)ando o tacto (mesmo sem mugidos)
moenda, moldura irremovível do teto
intacto, atado em seu próprio tacto.

 

Mallarmargem

Um lance de dados
jamais abolirá o acaso

 

E se é por acaso,
lance de dados.

 

Rubens Jardim nasceu em São Paulo-SP, em 1946.

 

 

 

 

A passeata 

Uma bandeira nova passava pela rua
(pensamos: muito importante era o dia)
julgarás: renovado
Saía a passeata
depois veio o cansaço / aço / aço
construíam ao nosso lado
pensarás: arquiteturas
passava a passeata / ata / ata
a ata na mesa do congresso / esso / esso
pensarás: progresso protesto
petróleo / óleo / óleo
olhamos tudo e não pudemos dizer nada.

 

Habilitar o tempo

Habilitar o tempo e
suas pequenas edificações.
Viver o tempo,
morrer seus antedias,
aceitar seu alimento
e convivência.

Aprendê-lo aos poucos,
guarda-lo na memória.

Penso: tempo ao tempo,
curioso trabalho
de se amontoar retalhos
e se criar o passado.

 

Poemas de Luiz Carlos Mattos, nascido em São Paulo-SP, em 1945. Faleceu em 2000.

O gomo

Asperge sobre mim a tua face,
unindo os gomos de fruta silente,
replanta aqui a primitiva máscara,
que à força de existir se desmembrou.
Não o tempo, mas certo intermédio
gosto, primeira e mais leve certeza,
úmida folha em membrana exposta,
onde a insegura forma se completa.
Em todo gesto sobrenada um outro,
o anterior, sonhado, gêmeo encoberto,
algum canto de remota ternura.
Porém o último permanece intacto,
sombra retida na inculta semente,
e vibra, desperto do sereno ato.

 

 

VII

 

Hoje A tarde enferruja nos cata-ventos
e a voz evita o espaço transcendental.
Um elmo cinza guarda a chaminé antiga
envolvido em grande desamor.
A hera sensual ramifica-se nos muros e paredes
integrados num vento zonzo.
E existe uma passiva redesfiguração nos telhados.

Tantas vezes foi tentado o retorno
e para tanta proibição
hoje vou desertar de mim.

 

Poemas de Érico Max Müller, de Santa Cruz do Rio Pardo – 1945/1995

 

 

Ser rua

Ser rua
e desejar cães vagabundos
que transitam na noite

Ser parque e ver que há muito
os pássaros calaram

Ser árvore
e antecipar a casa
com suas falas muralhas

Ser muro
e anunciar aos vindos
a partida inaudita

ser praia
e sentir o mar
corroendo cadáveres

 

 

Assim seremos tigres

Assim seremos tigres,
E no jângal deslizaremos em combates.
Assim seremos faunos,
E nas campinas dançaremos a aurora.
Ah! Tivéssemos jamais amado,
E alguma rosa terisa lâmpadas de riso,
Em algumas árvores ser[íamos mais sóis.
Assim estaremos, cansados
Dos templos que fizemos em segredo.
Das preces, todas elas sem resposta.
Os deuses dormem!
Assim extinguiremos.
Unos, com tudo o que nos mata.
Uno, com tudo o que matamos.

 

 

Iracy Gentili, nasceu em Barra Mansa-RJ, em 1930. Morreu em Salvador-BA, em 2001

 

 

 

congestionamento do tráfego interno

mau tempo e excesso de tráfego
atrasaram hoje 43% dos meus voos de imaginação
dos meus projetos secretos
quase não tenho mais sonhos
não tenho como decolar
nem como aterrissar
minhas torres de controle congestionadas
meus controladores de voo
em licença médica eterna
só fazem provocar acidentes

piloto automático, por favor
seja o que deus quiser

 

 

tudo bem

escrever poesia
como se fosse uma solução

uma saída?
canções,
modos estranhos de ser

danço na rua
canto no chuveiro

a menina do andar de baixo
diz: puxa que voa bacana!

Vontade de chorar

 

Poemas de Ronald Zomignan Carvalho, Rio de Janeiro-RJ, 1944

Cantar de só

Estou perplexo.

Da minha solidão
ecoa um grasnar
de cisne ferido.
Escrevo e o poema cessa.

 

 

Maria Antônia

Selvagem adolescente.
Seremos ventre de mulher.
Entre duas paredes
circula corrente nova.

 

Hora Secreta

Sinto no rosto tuas mãos e canto
Eu te amo, eu te amo
Ainda que minhas asas se estendam para o zodíaco
eu te amo, eu te amo
Em beatitude, absorvido pelo espetro
Que passa num leve sopro
Eu te amo, eu te amo
A inquietude envolve meu coração
E esta é a hora secreta
Quando o ferido bebe o vinho
Consuma-se o mistério
A barca adentra a baía
Minha alma se dilata
Enquanto deslizo pelo asfalto
Não sei me conter
Esta luz, este órgão imenso
Tangido pelo anjo de sempre
Liberta melodias que aprendi
Quando uma pata de tigre
Arrancou-me as entranhas

 

Iosito Aguiar – nasceu Parnamirim-BA, 1941, morreu em Curitiba, 2001.

 

 

Bibliografia precoce

Fui aprender linguística para entender as palavras
ensinei semântica ao acreditar que tudo tem sentido
escrevi livros sobre a linguagem buscando não perder
as farpas das circunstâncias
traduzi textos de hermética lógica e mitológicas
depois de viajar por binarismos e termos médios
sem deixar de girar por gerações de frases bobas
volto ao ponto de que partia:
vejo-me gramaticalmente indecifrável
diante da técnica da poesia

 

 

Identidade

Um homem tem muitas mortes:

aquela que irá morrer porque nasce
aquela que matará o seu batismo
ou o simples nome que lhe é atribuído
enfim todas aquelas em que morrerão
as máscaras sociais
com que foi sendo vestida sua vida

 

Anfitriã

Não se decepcione:
a vida o convidará
para outros fracassos.

 

Carlos Vogt, nasceu em Sales de Oliveira-SP, em 1943.

não importam

não importam olhos elétricos

e mãos resplandecentes
o que importa é que se impeça a derrubada do verde
o que ponham de lado lençóis de paz
não importam cabelos abandonados
sem mãos cantantes sobre eles
nem corpo florido sem esperança do fruto
o que importa
é que se impeça a derrubada do verde

 

as forças surgem

as forças surgem rompendo as arestas do centro vital.
meus braços crescem da placenta da minha vontade.
o silêncio permanece.
a luz saiu do casulo.
o fio da seda é translúcido e cristalino como os poemas
cada vez mais sem palavras.
um dia nada restará.
o poema será silêncio
e o silêncio tudo dirá.

 

 

quando a tristeza é muita

quando a tristeza é muita
escorre em correntes de lágrimas até lavar o coração.
depois deixa na alma uma espécie de mancha rocha
que minha avó chamava de melancolia...

 

Nilza Barude, nasceu em Araçatuba-SP em 1946

 

 

MUNDICÓRNIO

O touro eterno tem a pele cerzida
de despedidas. Atrás de seus chifres sabemos
que, vítimas possíveis de seu furor sem ira,
o touro eterno é besta, nem sabe
que estamos montados em seu dorso
onde se repete a mesma infinita despedida.

O touro é uma serpente circunferente
que se movendo engole a si mesma.
Estes dentes somos que se enterram
no próprio corpo da serpente
e fincando os dentes nos despedimos
da vida que montados no touro tivemos.

O touro no escuro de nós se despede
como um sol que se põe e se repõe sem ficar
claro quem se despede e somos.

 

 

AMOR ME CHAMASTE

Amor, me chamaste ao amanhã onde resides, mas nós
não saímos de nossa reminiscência, tudo permanece
irreal cujas raízes todas se aprofundam no
real cujas raízes irreais são todas as coisas, e
quando amanhecer a próxima noite
o ontem será hoje.

 

Amor, copulamos envoltos pelo plenilúnio do agora
quando eu procuro a sós o dia em estarei con-
tigo e de que com tanto júbilo agora me recordo
simulvisíveis o vindouro e o ido.

Amor, me chamaste ao amanhã onde resides, mas nos
caminhos da terra marinhos celestes caminhos
e os mesmos pássaros espalmados no ar.

 

Jaa Torrano, natural de Olímpia-SP – nasceu em 1949.

 

 

Resenha do poeta Lau Siqueira

 


Publicado por Rubens Jardim em 18/03/2023 às 00h29
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16/01/2023 19h54
DIA 25 DE JANEIRO HOMENAGEM AO POETA.

Será na Patuscada, livraria&*café  ponto de encontro de poetas e escritores.

Sinta-se convidado e convocado a participar. Ou assistir. O evento começa por volta

das 19h30 e reúne poetas de várias gerações. Local: Rua Luis Muirat, 40 - V. Madalena

 

Poeta paulista, escritor, jornalista e crítico de arte, Soulié fez parte da primeira equipe de jornalistas que criou o Jornal da Tarde, em 1966 e, dois anos depois, a revista Veja.
Com 22 anos, seu primeiro livro Procura e Névoa, conquistou o prêmio Jabuti. Fez parte também dessa geração que, nos anos 60 procurou, através de leituras públicas, uma aproximação maior com o povo. Organizou, com Alvaro Alves de Faria e Eduardo Alves da Costa, o Comício Poético da Praça da Sé.(1965).Publicou mais dois livros: Morte na Rua Simpatia  e Verba.


Publicado por Rubens Jardim em 16/01/2023 às 19h54
 
16/01/2023 19h32
ELE LUTOU A VIDA INTEIRA CONTRA A CARETICE E OS CONSERVADORES

Ele divulgou e traduziu poetas da geração beat como Kerouac e Ginsberg.

Também não deixou de lado Artaud e Lautréamont. Sempre curtiu muito a literatura transgressiva.

Uma das grandes referências de Willer foi o poeta inglês William Blake.

Tinha também um carinho especial por San Juan de la Cruz e Jorge de Lima.

 

SÁBADO NO VELÓRIO DO WILLER reenconrei um número enorme de pessoas queridas e tive a oportunidade de manifestar um certo estranhamento em relação aquele velório realizado no Crematório de Vila Alpina. Achava --e continuo achando-- que uma figura da dimensão pública do Claudio Willer deveria ter uma velório também de dimensão pública. Ou seja: em um espaço público como a Biblioteca Mário de Andrade, o Centro Cultural São Paulo, a Casa Guilherme de Almeida.

Como a gente não consegue refazer ou retraçar o passado --o ontem ou o anteontem-- podemos juntos realizar uma homenagem ao Willer em algum desses espaços. Para tanto peço, solicito e imploro o envolvimento de amigos e amigas no sentido de encaminhar essa proposta aos responsáveis pela programação.

Essa ideia já foi compartilhada com vários poetas presentes no velório. E todos estão dispostos a participar e lutar para que isso ocorra o mais rápido possível.


Publicado por Rubens Jardim em 16/01/2023 às 19h32
 
09/06/2022 15h18
A POÉTICA DA DESOBEDIÊNCIA E O INTERTEXTO NOS ESCRITOS DE RUBENS JARDIM

Na mochila ou na valise

a rigidez das fronteiras

é uma ordem. Desobedeça!

Rubens Jardim

 

COM AFETO E SEM FRONTEIRAS

Invisível nas asperezas do campo do mercado financeiro, a poesia – indo aonde não é chamada – escava espaços, tempos e dizeres advindos do onirismo e da realidade imediata. Muitas vezes, tangencia o delírio. Seus caminhos não se repetem; não se agarram ao limbo repetidor de ordens. Ver, ouvir, dizer e sentir o que nunca foi visto, ouvido, dito ou sentido, eis a função do eu-poético, seguindo percursos da poiesis – dos jogos inventivos do poema − que se iniciam no arcaísmo da imaginação. Em esquiva de modelos e paradigmas, o poeta escava os meandros da antelinguagem, para conhecer e trazer ao mundo dos sentidos matérias e visões próprias do universo anímico.

 

Na obra poética de Rubens Jardim, percebo essa disposição do eu-poético percorrendo uma grande variedade de temas e olhando o mundo de modo libertário, ao realizar entrelaçamento de estratos poéticos e éticos. Desse modo, ele insere a poesia num complexo imagístico-simbólico-ideativo que, a partir da antelinguagem, inaugura ou recria a linguagem, ao percorrer o mundo do afeto, através de espaços e tempos imagísticos inscritos em sua poesia e no trabalho de outros escritores com quem se põe em diálogo.

 

Voltada para a alteridade, a poesia de Rubens Jardim nos faz vivenciar misteriosos sentidos trazidos à práxis no cotidiano. Suas imagens do amor nos conduzem aos impulsos do amar; nos caminhos da solidão, percebemos veredas que nos cercam e sufocam, então temos vontade de mudar esse estado de coisas; nos meandros da solidariedade, somos chamados a participar da vida no plano coletivo.

 

Em 2021, numa live organizada pelo Canal do Poetariado, em homenagem a Rubens Jardim, eu lhe disse que gostaria de escrever um texto sobre sua poesia. Uma semana depois, o poeta me enviou por e-mail os seguintes escritos: Carta ao homem do sertão; Fora da estante; Jorge de Lima, 80 anos; Antologia de poemas inéditos; Homenagem ao poeta Lindolf Bell; Diálogos. Seus trabalhos favoritos? Não importa o motivo da seleção. E, em sendo muito mais extensa a produção literária do autor, não me seria possível no espaço deste texto abordar todos os escritos. Então, impulsionada pelo afeto, aos textos recebidos pela internet, anexei mais dois títulos: Mulheres poetas na literatura brasileira; Cantares da paixão.

 

Conheço quase toda a obra poética de Rubens Jardim. Por isso, ao escolher um elo que percorresse seus escritos, segui veio ideativo e traço estilístico próprios da sua produção literária. Quanto ao veio ideativo, orientei-me pela desobediência e seu convincente chamamento a desconhecer a imposição das fronteiras. É uma questão de vida; uma definição de modo de vida, em oposição ao mando autoritário. Quanto ao estilo, enfoquei a recorrência ao intertexto, que igualmente perpassa toda as suas obras e se dispõe ao dialoguismo, isto é, enseja a possibilidade de escuta da fala que não a do próprio Rubens Jardim, com afeto e sem fronteiras.

 

 

A DESOBEDIÊNCIA

Relendo os escritos mencionados, localizei a desobediência como ponto norteador do pensar e do atuar de Rubens Jardim, com vistas a defender a liberdade dos humanos. Por isso a escolha da epígrafe, que me faz sublinhar o seguinte fato: não se trata da liberdade no sentido romântico e ou utópico. Percebo em sua obra literária o enfoque libertário como determinação da possibilidade de cada indivíduo realizar escolhas que se iniciam na prática dos Direitos Humanos, no dia a dia. Trata-se de desconhecer limites espaciais e sociais impostos de modo hierárquico, ao convidar o leitor a andar pelas ruas, ouvir, opinar e ser ouvido. Enfim, viver.

 

Oriundo da Geração 60, período em que se propôs a combater a truculência da ditadura militar, Rubens Jardim – seguindo metas humanitárias − até hoje se mantém fiel aos princípios emancipatórios no âmbito da coletividade. Nesse amplo espectro do ser livre e do existir em liberdade, o eu-lírico e o eu-indivíduo têm algo em comum: a irreverência. Na epígrafe, o desobedeça sinaliza a escolha da vida plena, o acolhimento do outro. Seu pensamento, seus atos e escritos convergem numa luta contra as desigualdades sociais.

 

Observe-se que, no cotidiano e na escrita, a vida plena transcorre na dimensão poética, opondo-se à necropolítica operante nos nossos dias. Resistir é preciso. A vida plena pode ser o objetivo de todos no dia a dia. Quem foi que disse que a poesia tem que viver nas alturas? Nesse sentido, torna-se relevante destacar duas estrofes de um poema que tematiza sua meta libertária em que o eu-poético e o eu-indivíduo, mais uma vez, se fazem espelho um do outro na desobediência ao status quo, que se marca pela arbitrariedade do poder:

 

[...] Não vim para me resguardar

ou resguardar minha poesia.

Vim para revelar que o poeta

não ficará de braços cruzados

 

porque nós ainda acreditamos no mundo novo

nós ainda construiremos o mundo novo!1

 

Na poesia de Rubens Jardim, o desobedeça não é um imperativo, mas um chamamento à participação no campo social e incentivo à reflexão sobre os destinos dos humanos, rumo a mudanças que resultem num mundo novo. Os princípios e o alcance desse chamamento opõem-se a tudo aquilo que se refere à morte e, também, à carapaça dos rinocerontes soltos pelas ruas das cidades, que, assim como na peça de Ionesco, aceitam tudo o que lhes é imposto pela força bruta ou branda, essa que, com garras de lobo, se disfarça de cordeiro. Realizando uma poética da desobediência, Rubens Jardim recorre ao intertexto – citações e outros referenciais − para intensificar nos seus escritos o estrato poético-ideativo de cunho libertário.

 

 

O INTEXTEXTO

Genericamente, o intertexto pode apresentar-se como citação de texto literário ou até mesmo discursivo, mas pode surgir de outras formas, como referência a outras artes e a outras formas culturais. Pode, inclusive, surgir como referência a algum aspecto da sociedade, a fatos históricos, políticos etc., e até como referência a lugres. Do ponto de vista estilístico, seja no escrito poético ou no ficcional, o intertexto caracteriza-se como alusão direta ou indireta, que pode revelar negação ou aceitação de algo, dando ao texto diversidades semânticas convergentes no ideário do autor, de modo poético.

 

Na obra de Rubens Jardim, os sentidos da desobediência são estilisticamente revelados pelo intertexto. Esses referenciais voltam-se para a consagração de grandes momentos de passagens literárias e filosóficas, leituras de obras de arte, memória e fundação de lugares do afeto, contendo a ideia de transformação, dinamismo da vida, solidariedade, em que a resistência se faz ponto nodal. Trata-se de resistir a todas as formas de opressão, como veremos nos textos que me foram enviados pelo poeta.

 

 

Em Carta ao homem do sertão, realizando um longo inventário do interior e de suas gentes, Rubens Jardim criou um longo intertexto relativo a Grande sertão: veredas, aludindo a lugares e personagens, numa homenagem ao centenário de Guimarães Rosa. Visitando trechos desse romance e fragmentos de escritos de outros autores, Rubens Jardim desbrava o sertão, visto como parte de Minas Gerais e território do mundo, onde o ermo se abre ao caminhante do encantatório. Tão logo iniciada a leitura, o autor ressalta a presença marcante de Diadorim, a partir da sonoridade do nome:

 

Eu não sou de Cordisburgo, nem Rio

Baldo. Também não sou Dia,

Diá, Di, Dor, In.

Não sou personagem

nem persona

de nenhuma

das tuas estórias. [...]2

 

Privilegiando o poético, Rubens Jardim apresenta nesse livro montagem de imagens visuais e de trechos de outros autores que homenagearam Guimarães Rosa. Nosso poeta nos deixa entrever que, em Grande sertão: veredas, entre o regional e o planetário, o homem se faz mistério em busca de si, querendo saber se o demo existe mesmo. Desenhando veredas através de uma carta-poema, emerge um monólogo posicionando Rubens Jardim no meio do sertão: palco de onde fala a Guimarães Rosa e ao mundo.

 

Na fala de Rubens Jardim, o intertextual entrelaça trechos poéticos e filosóficos, embasando seu pensamento poético, ao aludir à amplitude do sertão, em meio ao mundo e dentro do mundo. O mundo se revela sertão habitado e desabitado, à espera de um leitor que perceba diferenças e parecenças entre a solitude do agreste e a da urbe. Nesse trabalho, ressalto ainda a reprodução de fotografias e textos históricos referentes ao tema, o que acrescenta ao escrito caráter de pesquisa sobre o autor de Grande sertão: veredas.

 

Enfatizando os espaços geográfico e social, e ressaltando belezas e asperezas do lugar, o poeta destaca a resistência do sertão e a persistência da vida, como atos de desobediência às forças que os cercam. Assim como Ribaldo, Rubens Jardim descobre que o demo não existe. Se o que existe é o homem, a desobediência acena para a transformação das veredas mundo afora. Eis o grande não dito de Guimarães reafirmado pela poesia de Rubens Jardim.

 

 

À escrita de Fora da estante, Rubens Jardim se lança ao intertexto, a partir do conhecido poema de Drummond intitulado A flor e a náusea, dando destaque ao verso: “Que tristes são as coisas, quando consideradas sem ênfase”. Ao enfatizar a vida e o sentimento, nosso poeta compõe versos que, de modo implícito e explícito, se referem ao mundo enfocado sob os desígnios do capitalismo e do poder econômico reificando os humanos.

 

Nessa mesma obra, Rubens Jardim igualmente relembra poetas e filósofos, que também optaram pela desobediência, para dar vida às coisas neutras ou àquelas assinaladas só por valores financeiros, que nos cercam de modo inexorável. E, assim, nosso poeta segue mundo afora em viagens feitas ao exterior. Entre muitos exemplos dessa perplexidade ante as coisas vistas sem ênfase, a poesia de Rubens Jardim enfoca sua visita à Grécia, onde − ao buscar a fábula − encontra lugares circundados pelo capitalismo. Ao chegar a Santorini, em meio ao mundo monetizado, o poeta subsome voz interrogativa, tal como se perguntasse sobre os seres encantados: Ubi sunt? Onde estão as ninfas? Os sátiros? Onde está a Filosofia? Eros? Onde a imaginação para transformar o mundo?

 

 

 

Na obra intitulada Jorge de Lima, 80 anos, escrito que rememora os 80 anos de nascimento e 20 anos da morte do poeta, Rubens Jardim apresenta verdadeiro ensaio poético, conduzindo uma biografia afetiva, que envolve encadeamento de trechos de entrevistas, como se Jorge de Lima narrasse sua própria vida. Sob esse enfoque, inscrevo aqui intertexto de minha autoria: ressalto que, sob o ângulo ideativo, Jorge de Lima voltou-se para a crítica do sistema de aparências que envolve a vida em sociedade. Entre vários exemplos, note-se que o autor de Invenção de Orfeu é também autor do poema de inspiração surrealista intitulado O grande desastre aéreo de ontem, em que tematiza a morte e, através da metapoesia, revela a imagística da alienação:

 

Chove sangue sobre as nuvens de Deus.

E há poetas míopes que pensam que é o arrebol!3

 

Jorge de Lima foi também um poeta inovador dos modelos temáticos comuns à sua época. O grande circo místico mostra espécie de estranhamento relativos aos costumes consagrados em seu tempo, por isso posso dizer que há certa afinidade ideativa entre ele e Rubens Jardins pela desobediência.

 

Nessa homenagem póstuma, o intertexto colhe a palavra poética a partir dos poemas escritos por Jorge de Lima na infância e completa-se com reproduções de fotos e reportagens sobre esse autor, numa pesquisa apoiada no profundo conhecimento literário de Rubens Jardim, o que lhe permitiu citar textos sobre a vida de Jorge de Lima. Aprofundando o teor intertextual desse escrito, o autor incluiu o poema “Recitativo próximo a um poeta morto”, de Cecília Meireles, em que a poeta homenageia esse autor, por ocasião da passagem de duas décadas de sua morte.

 

 

 

Em Antologia de poemas inéditos, nosso poeta segue vários rumos; aproxima-se da saudade, do amor, da vida, da solidão; enfoca viagens, lugares do afeto e rememora com ênfase a casa da infância. Nesse escrito, o intertexto vai ao universo da arte de Bernini, de Michelangelo e de outros artistas, num simbolismo que se completa nas imagens de outros poetas, entre eles João Cabral de Melo Neto e Jorge de Lima. Abrindo-se à paisagem do mundo das viagens, aqui o intertexto alcança lugares visitados por Rubens Jardim, na Itália e na França. Nessa obra merece destaque a desobediência libertária revelando-se metapoesia, no poema denominado Travessia:

 

Prefiro a palavra que inaugura

um espaço novo na mente

do leitor. Aquela que o arranca

do torpor e o faz embarcar no trem,

na carroça, no ônibus ou avião.

A palavra que o arranca do chão

ou da poltrona. No poema a palavra

é travessia. Por isso, venha comigo

 

Vamos descarrilhar esse trem.4

 

No poema citado, o poeta identifica padrões convencionais que levam os humanos e o mundo à imobilidade. Na travessia da palavra – na passagem da antelinguagem ao verso −, através da metáfora, Rubens Jardim põe em relevo a força dos não ditos intuídos nas decifrações do leitor, que é convidado a participar no descarrilhamento, ou seja, a posicionar-se em desvio do marasmo da fala repetida e das coisas vistas sem ênfase. Aqui, a travessia se torna senha para atingir o poético.

 

 

No escrito intitulado Homenagem ao poeta Lindolf Bell, caracteriza-se um longo e significativo intertexto que se inicia com a apresentação de um poema do próprio homenageado. Ainda que mencionando vários outros poetas, cujos textos se expandem num extenso diálogo com Lindolf Bell, a homenagem registrada por Rubens Jardim revela-se, em verdade, longo monólogo poético em torno da vida e da poesia de Bell.

 

Tal escrito centraliza a relevante participação de Lindolf Bell na chamada Catequese Poética. Vinculado à Geração 60, esse movimento – no qual Rubens Jardim teve grande participação – acentuou naquele tempo a magia do poético em seu alcance político e ético, buscando derrubar fronteiras. E, assim, catequese, palavra advinda do verbo grego, que se refere “ensinar através da fala”, ganhou caminhos da transmissão oral no momento em que a poesia ensejou posicionamento libertário diante da ditatura militar, um posicionamento emancipatório que deixou lastro relevante nos dias atuais.

 

Nessa Homenagem ao poeta Lindolf Bell, Rubens Jardim enfatiza a pujança da palavra poética transmitida pela voz, pelo som, pelo ritmo, ao atrair o público por meio do fascínio das figuras de linguagem trazidas às ruas e às escolas. Nesse movimento de transformação do pensar e do atuar, a desobediência até hoje resiste à opressão e se fundamenta no diálogo aberto a todos.

 

 

Em Diálogos, Rubens Jardim menciona o tempo da adolescência, quando se deu sua iniciação à poesia. Bem acompanhado por poetas de várias épocas e estilos, aqui o intertexto se faz amplamente explícito em suas conversações, ao dialogar com um poema de outro autor. Como a poesia imortaliza e atualiza temas e imagens, Rubens Jardim rememora Manuel Botelho de Oliveira, com quem dialoga e, em lirismo, tematiza Anarda, em um dos poemas desse escrito. Note-se que a imagem de Anarda ressurgirá em outros poemas – de autoria de Rubens Jardim − que constam de Cantares da Paixão e, certamente, Manuel Botelho de Oliveira se orgulharia de assiná-los, se vivesse nos dias de hoje.

 

Dando continuidade às travessias da antelinguagem aos enunciados poéticos, nosso poeta rememora junto a Ezra Pound certos detalhes do universo classe A, numa viagem de avião. Visitando Mário de Andrade, ele se lança às imagens do Tietê, para constatar mudanças no rio e na cidade através dos tempos. Ampliando tais conversações, Rubens Jardim entra na interlocução de Maiakovski com o fiscal de rendas e, junto com João Cabral de Melo Neto, dispõe-se à decifração do canto dos galos. E, ouvindo Serguei Iessiênin, opta pela vida ao disparar “o gatilho da palavra”.

 

Nos Diálogos, Rubens Jardim visita poetas de vários estilos até chegar à contemporaneidade, quando, ao exaltar a relevância da voz feminina, troca poemas com várias poetas contemporâneas. Sempre voltado para questões do afeto e da coletividade, Rubens Jardim focaliza o amor erótico e o sentimento de fraternidade, ao visitar lugares e acontecimentos. E, assim, entrelaça versos que envolvem outra vez A flor e a náusea, de Drummond:

 

[...]

Sem ênfase

Ninguém salva as Flores

Do Mal. Nem as Cinzas

Das Horas.5

 

Reunindo nesse escrito múltiplos referenciais temáticos e intertextuais, o poeta expande seu ideal de liberdade em âmbito mundial e para isso inclui, nesse escrito, poemas exaltando a Revolução dos Cravos e a Guerra Civil Espanhola, que, numa leitura atual, nos fazem refletir sobre o fascismo hoje.

 

 

MEU INTERTEXTO

Além das obras que me foram encaminhadas pelo poeta, acrescentei duas outras, que, por impulsos intimistas, constituem intertexto explícito dirigido à poesia de Rubens Jardim: Mulheres poetas na literatura brasileira e Cantares da paixão. Note-se que Mulheres poetas na literatura brasileira realiza o mais extenso intertexto do poeta – grande diálogo com o feminino – em que o organizador da publicação apresenta a poesia escrita por mulheres a partir do século xix, passa pelo século xx e abrange nossos tempos. Numa primeira etapa, os poemas foram publicados, semanalmente, no blog de Rubens Jardim. Pouco depois, foram reunidos numa antologia virtual, em três volumes. E, em 2021, veio a público a edição de um volume impresso, uma vez que, por motivos vários, o organizador não conseguiu autorização de inúmeras poetas e ou de parentes, para a publicação.

 

Tenho a alegria de ver poemas meus nessa antologia, além de ser autora do prefácio ao volume III da publicação virtual. Importante ressaltar que, ao escolher os poemas, Rubens Jardim não se rendeu às referências e escolhas das grandes mídias nem aos nomes consagrados pela crítica oficial. Seu espírito de pesquisador conduziu-se pela escolha das mulheres poetas de várias épocas, sob o ângulo da escrita. Nessa obra, o poeta deixa transparecer projeto político fundamentado na igualdade, quanto ao direito à escrita, à expressão livre, à palavra como desvelamento. E ato libertário.

 

Ao ouvir e valorizar a voz feminina a partir da poesia, e além dela, Rubens Jardim mostra-se desobediente a padrões que, através dos séculos, tentam calar a voz feminina. Por isso, no prefácio ao volume III, assinalei: “Não podemos esquecer que, numa extensão planetária, as mulheres foram por muito tempo alijadas dos processos de aprendizado escolar, das decisões de alcance coletivo e, até mesmo, impedidas da realização das aspirações íntimas. Ainda hoje, por motivos vários, e em muitos lugares e circunstâncias, elas não alcançaram de modo pleno tais direitos.”

 

 

Por fim, minha visita a Cantares da paixão, obra de 2008, que reúne poemas inéditos; alguns outros já publicados à época da edição e, ainda outros, que, no futuro, ganhariam nova publicação. Articulando a palavra à visualidade, o poeta atinge desdobramentos no âmbito dos vários gêneros poéticos; ainda que se mantenha fiel ao dizer em primeira pessoa, o eu-lírico abrange e tonaliza certas dicções épicas e trágicas, ao longo dos poemas. Entre os cantares e a paixão, entram em cena inúmeras formas de intertexto, incluindo a interação com a imagem visual, seja como ilustração, seja na consecução do poema visual, em suas várias experiências formais, ao lançar-se à procura das raízes do verso:

 

E eu fico aqui me perguntando

onde está a palavra antes da palavra?”6

 

A palavra antes da palavra”, como a deseja Rubens Jardim, eis a instância da antelinguagem regendo sua poesia. Em minha leitura de sua obra poética, sinto-me à flor da pele do impulso originário do sentir. Por isso, aderindo à poética da desobediência, vivencio nos poemas de Rubens Jardim o intertexto a articular aspectos poéticos e éticos na expressão da poesia como práxis emancipatória, em que o poético envolve a alteridade. Falar e ouvir o outro. E esse outro é coletivo: o conjunto dos habitantes da Terra.

 

Em certo sentido, em Cantares da paixão, o poeta exalta os humanos do ponto de vista do corpo, do corpo que se põe em ação para viver a vida plena, do corpo atuante no dia a dia, do corpo que necessita de alimento. E de poesia. No conjunto dos poemas cantados pela paixão ou nascidos da paixão, Rubens Jardim desenha, de modo implícito e explícito, a imagística do corpo como foco de desobediência aos desígnios da morte, através de imagens visuais e figuras de linguagem. Da morte, invisível foice, só sabemos os efeitos. E, assim, através do ato de alimentar o corpo, o poeta sonoriza verdadeira homilia poética tematizando de modo simbólico o provimento do pão e a continuidade da vida:

 

Eu duvido da vida

da vida devida

da dívida

da di vi sa

 

Deve Davi

dever a vida?

 

Não,

não dou ouvido

ao vidro da vida

 

Eu di vi do a vi da

E dou o pão

di vi di do7

 

Nesse poema, entre inúmeros outros tropos, em “vidro da vida” localizo a metáfora possível de aludir a várias dimensões da morte a serem superadas pelo ato de compartilhar o existir e o pão. E nada devemos, nem Davi. Sei que uma figura de linguagem não se traduz em palavras, mas seu substrato conduz-se pelo sentimento advindo da antelinguagem, que chega aos versos − numa sutil e tenaz desobediência – desafiando os poderes que anunciam e antecipam a morte daqueles que não possuem conta bancária. Mas ressalto: a par dessa interpretação, o sentido poético não se esgota nessa leitura. E permite vários outros desdobramentos simbólicos.

 

Tudo que pudesse ser dito sobre Cantares da paixão seria supérfluo, diante desse conjunto de poemas de formatação diversa, incluindo o soneto, em meio a formas modernistas e contemporâneas, ao que se soma o alcance do visual, seja como ilustração, como intertexto ou estrutura poética. Percebo, nesses Cantares, intensidade da vida e sobrevivência poética do corpo atuante, em sua grande oposição à morte, tal como Rubens Jardim expressou no seguinte poema que se constitui indagação intimista e solidária:

 

Mas como

como explicar este corpo

que é a única coisa que me pertence

e que não me abandona

e que carrego 24 horas por dia

incansavelmente nestes 37 anos.

Corpo que é meu retrato

no álbum de família

minha identificação

e única forma que tenho de estar aqui

e não em outro lugar.

Corpo que é meu limite

minha margem

minha transitória presença no mundo.

Corpo que já coube num abraço

num berço

e que certamente vai caber num caixão

vai caber

como a última roupa vestida às pressas

vai caber

como o último sapato vai caber

como vai caber tudo aquilo que nunca coube

e nunca teve cabimento.

Corpo que é minha represa

meu olho-d’água

e que vai secar como o fundo de um rio

do Nordeste

como um cachorro atropelado

num dia de sol quente

ou como o molho de macarrão que aqueceste

no fogo.

Esqueceste?

Mas como esquecer

este fogo irrompendo de uma panela

em uma cozinha

dentro de uma casa

junto de uma família

e que ainda hoje está aqui

queimando

como o pavio de um lampião que acaba

de arder

que acaba

como a luz acaba dentro de um corpo

quando ele acaba

quando ele

quando?8

 

Fazendo minhas as indagações do poeta, acrescento: como falar sobre a poesia de Rubens Jardim? Como explicar o indizível? Como dizer da sutileza das imagens, dos ritmos e da musicalidade dos versos? Como expor as aventuras da vida em nome da liberdade da espécie humana? Diante desse impasse, para concluir este escrito, transcrevo um poema de minha autoria − Enigmas e cantares − lido por ocasião do evento “Gente de Palavra”, em homenagem ao poeta, em 2019. Em resposta a suas perguntas, inicio pelos seus versos que escolhi como epígrafe:

 

Enigmas e cantares9

 

Mas como
como explicar este meu corpo [...] ?”

Rubens Jardim

 

 

Não me perguntarei pelo teu corpo.

Mas como
como não me perguntar
sobre teu sentimento
sem margem e sem limite
explodindo o fôlego do poema?

Não me perguntarei pelo teu corpo.


Mas como
como não me perguntar
pelo arremesso da palavra gerando
o alimento na panela?


Como não me perguntar pelas chamas
dançando na cozinha ao preparo do teu verso?


Como não me perguntar pelo enigma
da lâmpada iluminando o sol
na véspera do teu poema?

Tudo que me perguntei
sobrevive naquilo que desconheço:
enigma da paixão sonâmbula
despertando teus cantares.


Por isso
não me perguntarei pelo teu corpo.

Tua poesia me basta.

 

Teu corpo, tua poesia.

 

 

 

Através desse poema, lanço-me ao intertexto, para sentir a poesia de Rubens Jardim, naquilo que se revela fundamental: a vida plena. E a poética da desobediência, ao alcance de todos, para viver a vida plena.

 

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BIBLIOGRAFIA

 

CARVALHO, Cesar Augusto de (Org.). Rubens Jardim. São Paulo: Patuá, 2019 .

 

JARDIM, Rubens. Carta ao homem do sertão. Blog de Rubens Jardim. São Paulo, 2007. Disponível na internet em: https://rl.art.br/arquivos/507267.pdf?1528125713

 

----------------------. Fora da estante. Coleção poesia viva. Centro Cultural. São Paulo: São Paulo, 2012. Disponível na internet em: https://rl.art.br/arquivos/5399098.pdf

 

----------------------. Jorge de Lima, 80 anos. Criação, pesquisa, seleção de textos, montagem, projeto gráfico, editorial e notas de Rubens Jardim, Ed. 2, São Paulo: 1973. Disponível na internet em: https://rl.art.br/arquivos/198687.pdf?1244516286

 

----------------------. Antologia de poemas inéditos. Edição do autor: São Paulo, 2018. Disponível na internet em: https://www.rubensjardim.com/blog.php

 

----------------------. Homenagem ao poeta Lindolf Bell. Disponível na internet em: https://www.rubensjardim.com/blog.php

 

------------------------. Lindolf Bell – 50 anos de Catequese Poética. São Paulo: Patuá, 2014.

----------------------. Diálogos. Disponível na internet em: https://www.rubensjardim.com/blog.php

 

----------------------. Cantares da paixão. JARDIM, Rubens. Cantares da paixão. São Paulo: Manuela Editorial (Arte Paubrasil), 2008

 

----------------------. Mulheres poetas na literatura brasileira, vol. 1, vol. 2 e vol. 3. Edição virtual, 2018. Disponível na internet, respectivamente, em:

https://issuu.com/rubensjardim/docs/livro_mulheres_poetas_a1

https://issuu.com/rubensjardim/docs/livro_mulheres_poetas_volume_2_final

https://issuu.com/rubensjardim/docs/livro_mulheres_poetas_volume_3_final

 

---------------------. Mulheres poetas na literatura brasileira. Arribaçã: Cajazeiras, 2021.

 

1 JARDIM, Rubens. Cantares da paixão. São Paulo: Manuela Editorial (Arte Paubrasil), 2008, p. 21.

2 JARDIM, Rubens. Carta ao homem do sertão. Blog de Rubens Jardim. São Paulo, 2007. Disponível na internet em: https://rl.art.br/arquivos/507267.pdf?1528125713

Obs. Nota número 2, no original de Rubens Jardim, citação do texto do professor José Carlos Garbuglio sobre o nome “Diadorim”.

3 LIMA, Jorge. O grande desastre aéreo de ontem. Disponível na internet em https://www.escritas.org/pt/t/6594/o-grande-desastre-aereo-de-ontem

4 JARDIM, Rubens. Antologia de poemas inéditos. Edição do autor: São Paulo, 2018. Disponível na internet em https://www.rubensjardim.com/blog.php

 

 

5 JARDIM, Rubens. Diálogos. Disponível na internet em https://www.rubensjardim.com/blog.php

 

 

6 JARDIM, Rubens. Cantares da paixão. Op. Cit., p. 28.

7 Ibidem. Idem, p.22.

8 ----------------------. Cantares da paixão. JARDIM, Rubens. Cantares da paixão. São Paulo: Manuela Editorial (Arte Paubrasil), 2008, ps. 132-133.

 

9 CARVALHO, Cesar Augusto de (Org.). Rubens Jardim. São Paulo: Patuá, 2019, página não numerada.


Publicado por Rubens Jardim em 09/06/2022 às 15h18
 



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