07/10/2014 13h19
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA(54ª POSTAGEM)
SANDRA FONSECA(1961) poeta mineira, escreve desde a adolescência, é psicóloga e trabalha como terapeuta. Participa de alguns sites de literatura na internet e de antologias poéticas no Brasil e Portugal. Seu primeiro livro “Dez Violinos Marinhos e Uma Guitarra de Sal” foi publicado este ano, em setembro de 2014 É AQUI É aqui Onde toco as palavras Que sei de mim Alguma certeza A alma contra a luz Do dia Os ossos, a carnadura A leveza do ouvido Colado à brisa A canção que só a mim Cabe silenciar E a boca pausada Se movimenta E articula a beleza Secreta e sedenta O mistério da palavra Ouvi A poeia me canta Por dentro Como um pensamento Como uma coisa imorredoura Sangramento Sem causa E sem pausa Arrastamento É aqui Que eu encho os meus olhos De absurdo E de espanto É aqui que eu fecho os meus ouvidos E canto
POESIA LÍQUIDA Meu verso Rompe veias, barreiras Rio sem freios Que me carrega Sangra num fio De água doce
Sangria louca Que não se estanca Palavra-lava Que se derrama Sem derradeiro Ponto final
Meu verso É vício Ferida, carne viva Renda e filigrana. É remendo às pressas Veneno, promessa Desengano
É mel na boca Sorrindo, a louca Sonhando a lua Correndo nua Desaba inteira Feito tempestade Sobre a cidade Meu coração
Meu verso É lenda, profanação De almas e sonhos A fina dama, tonta Obscena Úmida, lânguida Poesia líquida
MEMORÁVEL Pousou sobre As suas coxas Era um frêmito Um alvoroço de plumas Penugens Pelos
A boca sabia A sal A pele roçava nua Abriu-se dócil A intenção do ato O que a língua fala E o desejo Compactua
Ligeiros Ágeis espasmos Estertores De prata e espuma A noite testemunhava Plácida bruma A cena memorável: Um pássaro pousado No ventre da lua.
TECEMOS Tecemos a vida Como fio de seda, Teia rara. Fiamos Da roca tosca, Pouca, Esse algodão, Pura malha. Tecido Com suor E lágrima, Tessitura cara Leve folha Flor e asa
Construída De afeto Ilusão e fato De repente Afronta-nos A falha A pausa Que a perda Causa Diante do olhar Da dor O dissabor Nos cala De onde surgirá Nova manhã Clara E luz Sobre a tua sala
De onde Menos esperas Recebes Das mãos Do menino-anjo da guarda Preciosa senha Em silêncio passada E voltas À antiga roca Reaprende o ofício Retornas Ao teu fazer mais caro Construir a malha Contar tua história Ora aprendiz Ora senhora Sempre co-autora Criatura De prima-obra... ELAINE PAUVOLID (1970) poeta carioca. Publicou: Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela... ( 1998), Leão lírico (2008) e O silêncio como contorno da mão (2011). Colaborou ativamente com resenhas literárias durante 10 anos (1999/2009) para jornais, como: O Globo e Jornal Commercio. Ultimamente também vem se dedicando às Artes visuais. Escrevo e desenho para pedir socorro, mandar um sinal, senão eu morro.
Alguém ouve o traço, vê o grito e manda resposta.
Ou sou eu que leio, vejo, traço, respondo e movo o que não é novo.
NÓS Quem sou, senão o misto de uma centena de gentes que correm? Sou esta velha mineira, ou a velha judia comunista? Sou a filha da Ucrânia ou a da França? Tenho os traços da Itália, da Alemanha? Sou a que guarda imagens da Guatemala, de Espanha, do Peru e da Urca, que não se define. Gozo com Piazzola a entrar em mim e o Villa entendo quando ouço Cartola. Tremo quando ouço falar em tortura, estremeço diante da Copa. Orgulho-me de Leila Diniz, de Elis. Falo mal minha própria língua e admiro Tolentino, ou uma atriz de teatro idosa quando tão bem a utilizam. Divirto-me e aprendo com Jorge Amado, compartilho da alegria autêntica de Caetano, Meu queixo cai enquanto Paulo Coelho escreve. Assisto a tudo isso e tento esboçar o que percebo. Conseguem escutar o que digo quando escrevo-lhes poemas? Espero que sim; Que não esteja falando para mim mesma.
trago-o, fim
CARTA Meu caro amigo, estou cansada de tentar fazer o correto; tudo me desalinha. Sigo, decerto, sem a menor noção do que é certo; vou bem.
A VELA A Gerardo Mello Mourão in memorian Sólida, esqueci de ser eu mesma. Areia, virei estrela. Mas estrelas que são, senão rasgos da luz nova?
Palavras utilizadas, lume. Palavra, dobrada palavra. Por minhas entranhas encontrá-la dita e salgada, cristalizá-la. Fechar os olhos, lembrar-me do mar. O mar que lembra o fechar dos olhos e o riso deles nos nossos ouvidos. Vela acesa nas noites sonâmbulas. Deixá-la queimar perene e calma, transportando o silêncio para além, prometendo a eternidade na chama queimando, penitente, a transmutar-se chama sempre, queimando por dias, ensolarada vela de insônia, do sem-nome. Um homem que, podendo navegar e cerrar os olhos, o faz serenamente.
JOANA CORONA (1982-2014) poeta paranaense, editora e artista visual. Foi mestre em literatura pela UFPR e viveu em Curitiba. Publicou o livro de bolso literário-visual OQ? (2006), em parceria com C. L. Salvaro. Também publicou fanzines coletivos, Potlatch (2 edições)e Lá (5º edição). Morreu, lamentavelmente, em março deste ano, aos 31 anos. PETRÓLEO sombra: ATRAVES AMENTO rabo de sol sob o móvel, fixo. na pele, manchas de calor e, flutuante, a poeira dança à luz - aleatória tua existência, violenta e aérea, cruzada na minha. intransitória. imovível. corpórea memória metafísica. lugar localizado entre dois - vácuo dos corpos que nos atravessa.
ESFERA lado a lado (e junto) vida que me descobre cada vez mais nua. descubro descoberta, como ir ao outro lado da tua esfera metade escuro-chumbo metade prateada de concreto luminoso e aerado atravesso, feito raio numa reta enviesada tua cidade circular.
ENTARDECER voam em bando. estardalhaço. feito vento nas folhas barulhentas. as asas, simultâneas: tambores. avoada, nem vê, de perto. o fim de tarde sonoro a manchar o céu (alaranjado) com sua listra negra e ligeira. NINA RIZZI, (1983) poeta paulista, vive atualmente em Fortaleza. Formada em arte dramática (ECA/USP) e história (UNESP), coordena o Centro de Artes 7 Setembro. Participa de saraus, festivais de arte, eventos literários e palestra sobre poesia, literatura, gênero e artes e é engajada em movimentos sociais como o MST e o Movimento Arrastão. Lançou em 2012 tambores pra n’zinga. em lugar de poesia então eu cruzo as pernas com essa cara falsificada de foda-se. chiarescuro. entenda. aquela ribanceira ficou toda assoreada e era tão escuro e tanto vento e tamanha solidão, que montanha despenquei forte escorregada, esses malditos sapatos de plástico roxo. nãnã de lama. e você não estava lá pra me estender o braço esquerdo como bem-casadinho numa igreja de santa clara. entendo. suas pernas lazarentas e essa cara falsificada de te venero. chiarescuro. e não estou numa igreja de são francisco pra te cuidar. amor, ateu amor.
in:dependência amor, ah, desculpe, se te firo, digo : amiga
(ainda que aqui permaneça e seja sempre amor uma parte-toda história minha, e mais, hein : o amor é meu e foda-se você se não o quer, é em mim que ele está e independe de você)
então, amor, é que comigo não tem essa de se re-encantar do desencanto, ou se está e quer e é ou nada disso basta.
eu não sou brincadeira (apesar de me-nina sem eira nem beira) : uma pipa que sobe em altos ventos voos cai no mormaço e corta a linha quando tão alta.
pode me chamar de pândega, quadrada, pandorga, pipa, papagaia ou tudos que sonhar, mas eu tenho um nome muito meu, viu! não sou um teu iô-iô que vaievem.
e aí vo(u)o ou (r)acho-a?
outra variação, outra
em te sonhar fiquei tão santa que agora pra me comer só de joelhos.
sanguidolente tenho dois homens ao meu lado. um me disputa com lembranças d’uma época em que só havia por comida xapati com açafrão e nossas ânsias; promessas d’um futuro. o outro me vem com canções, essa sua carne que me quer poemas pra dentes. há ainda um terceiro, o que me pega e tem, essa chuva. tardia chuva-súplica que não veio em dia de são josé. a chuva que me traz saudades de tudo que não vivi, símbolo desse homem que não está e me é. chuva-choro de mim. chuva-você que me cai, dono de todos os meus ais. os dois primeiros me cospem, me rasgam. vão-me embora. fica o homem que me dói e gargalha. mas não me restam autopiedades. é bom também doer. as cólicas hemorrágicas e as pedras na vesícula; o pedaço de ostra que me ficou por indolência no dedão do pé esquerdo; ter uma dezena de filhos de cócoras; não tomar drogas e ter os piores pesadelos. dessa vida suicida, tudo: a morte lenta e dorida, a morte boa overdose de gozo. E os poemas impossíveis, que até chão seco dá semente.
Publicado por Rubens Jardim em 07/10/2014 às 13h19
11/09/2014 21h38
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (53ª POSTAGEM)
MARIA JOSÉ GIGLIO (1933) poeta paulista, publicou em sua trajetória de mais de 50 anos de poesia quase 20 livros. Versos a um Polichinelo (1958) registra a sua estréia. Participou de antologias e foi traduzida para o italiano, espanhol, inglês, francês e até hungaro. Ativista literária, organizou eventos, criou prêmios e fundou a casa do escritor(1982) em São Roque. Outros livros da autora: Labirinto(1964), 5 Elegias( 1972), Salmos abstratos(1974) e Não(1986). OPUS VI Ouço trovões como tubas alardeando a chuva
Ouço glicínias glissando no terraço
e a natureza assente ao drama de si mesma.
Ouço o silêncio do mundo.
OPUS XVII Toca a vespa no vidro fixo da janela uma fuga impossível.
Rascante rumor de patas na transparência falsa.
Escala repetida sem escape ou pausa.
Em surdina agora inútil o par de asas. FLASHE 12 Vazio e forma se equivalem. IV no limiar deste OUTONO apesar da terra árida e o tempo escasso.
Estação das cigarras da carnação dos frutos do afã dos casulos sob as folhas ásperas.
Intermezzo que fecha o ciclo, e reinicia.
No monturo dos anos gastos viceja, sim, rasteira a melancolia. MARINA COLASANTI (1937) poeta ítalo-brasileira, jornalista, escritora, roteirista e artista plástica. Recebeu quatro prêmios Jabutii: poesia, crônica e literatura infantil. O primeiro livro de poesia é Cada Bicho seu Capricho (1992).Na sequência vieram muitos outros: de contos, crônicas e de poesia infantil. Um dos mais recentes é Passageira em Trânsito (2009). ANTES QUE Preciso ler um bom poema antes de dormir antes que a noite escorra o diário inventário das lembranças antes que o sono cale a boca e olhar, antes que o prumo caia horizontal. Preciso ler um bom poema antes que seja tarde que fique escuro que chegue o frio. Ler um bom poema antes que a morte venha e escreva o seu.
SEXTA-FEIRA À NOITE Sexta-feira à noite os homens acariciam o clitóris das esposas com dedos molhados de saliva. O mesmo gesto com que todos os dias contam dinheiro papéis documentos e folheiam nas revistas a vida dos seus ídolos.
Sexta-feira à noite os homens penetram suas esposas com tédio e pênis. O mesmo tédio com que todos os dias enfiam o carro na garagem o dedo no nariz e metem a mão no bolso para coçar o saco.
Sexta-feira à noite os homens ressonam de borco enquanto as mulheres no escuro encaram seu destino e sonham com o príncipe encantado.
PORTA DO ARMÁRIO ABERTA Abro a porta do armário como abro um diário, a minha vida ali dependurada meu frusto cotidiano sem segredos intimidade exposta que os botões não defendem nem se veda nos bolsos, espelho mais real que todo espelho entregando à devassa as medidas do corpo.
Armário tabernáculo do quarto que abro de manhã como à janela para sagrar o ritual do dia. Sala de Barba Azul coalhada de pingentes longas saias e véus emaranhados sem que sangue goteje. Corpos decapitados ausentes minhas mãos dos murchos braços.
Do armário minhas roupas me perseguem como baú de herança ou maldição. Peles minhas pendentes em repouso silenciosas guardiãs dos meus perfumes tessituras de mim mais delicadas que a luz desbota que o tempo gasta que a traça rói ainda assim durarão nos seus cabides muito mais do que eu sobre meus ossos.
Nenhuma levarei. Irei despida deixando atrás de mim a porta aberta.
A PAIXÃO DE SUA VIDA Amava a morte Mas não era correspondido Tomou veneno Atirou-se de pontes Aspirou gás Ela sempre ela o rejeitava Recusando-lhe o abraço
Quando finalmente desistiu da paixão Entregando-se à vida A morte, enciumada Estourou-lhe o peito
LILIAN GATTAZ( ) poeta paulista, é psicanalista e contista. Seu livro Mar de Dentro foi contemplado com o Proac na categoria revelação de autor inédito. Já teve poemas e contos premiados e já foi publicada na Europa e nos Estados Unidos. DESISTÊNCIA na ressaca de si mesmo navegou até o final e pulou horizonte abaixo
QUIMERA todo cais é uma alameda de concreto vazado que sempre me leva para onde nunca vou.
DA FUGA DAS PALAVRAS bem que eu queria te falar que ainda deita comigo o gosto acre da tua boca e que a lembrança dos teus olhos é o que fecha os meus mas é bem aí que as palavras fogem e às vezes elas fogem para sempre.
boa noite, volto ao encontro da memória.
P A U S A paralisa o toque ou toca Para Elisa - ou para mim -
toca para mim teu toque doce e trina em mim teus dedos ritmados articula meu pneuma acelerado e me interpreta : corpo da tua musicalidade inacabada
determina no teu passo meu compasso que eu me cronometro no teu tempo e na tua intensidade me penetro e faço da tua pausa meu silêncio,
arranca do meu corpo já tocado o som que esse meu corpo possa ter e tem de haver nesse meu corpo arrepiado o som exato para o teu excitamento
faço do meu corpo teu teclado pra que toques na verdade que ele tem e se a clareza do marfim te polariza paralisa esse teu toque simplesmente ou toca para Elisa - ainda que doa.
SU ANGELOTE(1957) poeta pernambucana, cursou Letras na Universidade Católica de Pernambuco. Já escreveu romances, O Cruzeiro da Morte e Vidas em Conflito. É ativista cultural e contadora de histórias para crianças, levando a leitura para comunidades carentes. Seu livro de poemas ,Erótika(2008) já está em segunda edição. GOZO HAIKAI 2 A FLOR DA PELE Gemidos sem dores PENSAMENTO IV
Publicado por Rubens Jardim em 11/09/2014 às 21h38
07/08/2014 13h03
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (52ª POSTAGEM)
CLEVANE PESSOA (1947) poeta potiguar, psicóloga e jornalista. Trabalhou na imprensa de Juiz de Fora, nos anos de chumbo da ditadura, mantendo a página Gente, Letras & Artes e a coluna diária Clevane Comenta. Já viveu em Belo Horizonte, São Luiz, São Paulo e Belém. Publicou vários livros de poemas: Asas de Água, Partes de Mim, Olhares teares,saberes e Erotíssima são alguns títulos. CICLO A fonte murmurante O rio rumoroso A cachoeira barulhenta Todos errantes, Participantes de uma orquestra Cujo regente Fica invisível à luz dos dias, Oculto à luz do luar, Torna-se dourado junto às luas claras... Mais tarde, serão Garoa Neblina Orvalho pranto: Sutis presenças Com lições de umidade, De humildade, De humanidade...
PREDIÇÃO O tempo é mesmo esse contraste: escorre entre a morte e a vida, entre o ancestral e o devir. Ascendentes e descendentes Repetem-se Ou Transformam-se. Os traços hereditários Luzem na escuridão. Os mutantes Desafiam leis.
As novas crianças nascerão cantando.
THEORGASMIA Desnuda parte do corpo, parte a alma E oferece a Marte, o espelho de Vênus, Onde observa a arte dos seios plenos Bela, curiosa, intimorata e calma... Em breve, dois deuses nus, Deu-se o fato, o olfato se aprofunda, A vulva, a pélvis, as nádegas, O falo, o talo, a flor profunda. Deus goza, enquanto, voyeur De tempos imemoriais, Interpreta todos os sinais. E o esperma divino banha o casal, Agora incapaz de distinguir o Bem do Mal.
SOB O SOL, DESPETALA-SE MAIS UM BRASILEIRO... De frente para o Ministério das Minas e Energia, Eudes do Carmo Pereira da Silva pede uma vaga de emprego aos parlamentares e empresários que ali passavam, saindo da Aneel, na posse do novo Diretor da mesma. Desempregado despetalado (de si), desarticulado(do sistema) desacreditado (pela família) o homem está desesperado não é mais esperado para a sopa cotidiana, para o corpo bem amado, para o papo animado... Eudes, prenome de herdeiro real, submete-se à humilhação de pedir emprego num cartaz cheio de erros de português. Não foi bem educado. Não possui poupança, esse homem que já foi criança e acreditou em seu país... Que nos diz a expressão desse homem em pé, pousando para alguém, por uma fração de segundo, esperançado? Sua fração de minuto de glória termina rapidamente. No calor do veranico, um homem chamado Eudes, (qual o descendente do imperador, um dos De Orleans e Bragança), com esse sobrenome que dá no Brasil como banana em penca, “Pereira da Silva”, de sol tisnado e totalmente cansado, talvez com os pés inchados de muito caminhar para lá, para cá, aperta os olhos marejados e em Brasília nem tem mar... Será que nasceu dia de Nossa Senhora do Carmo, num dia 16 de julho? Será que a mãe fez promessa para que nascesse, ou quando nasceu? Esse homem,com cara de honesto, escreve errado mas tem um desejo certo: quer trabalhar... Quando será que vai começar o “desemprego Zero”? Empregado, o brasileiro teria fome? Só se fosse de amor... A pátriaindamadabrasil, está cheia de Eudes do Carmo... Semi-analfabetos famintos, desestruturados, das famílias separados, “arrazarados”... Enquanto isso, em Brasília, “parlamentares e empresários saíam da Aneel”. Fazia sol de verão. O homem desempregado suava. Eles também, sob os ternos eternos e as gravatas que enforcam... Mas, enforcado sem gravata alguma, estava o homem sem emprego, Eudes do Carmo. Por ele, me armo inutilmente embora, de Poesia, pois os poetas também não são mais ouvidos... ROSANA PICCOLO (1955) é poeta paulistana, formada em filosofia pela USP e em jornalismo pela Casper Líbero. Atua em publicidade. Estreou em 1999, com o livro de poemas em prosa Ruelas Profanas, seguido por Meio-Fio, Sopro de Vitrines e Refrão de Fuligem. Participou das antologias Paixão por São Paulo e Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 90, além de revistas literárias, como Zunái, Mallarmargens, Alguma Poesia, Zona da Palavra, entre outros. ESCULTURA VIVA previsível bailarina torneada pela brisa
sapatilhas dois piões acetinados giram por qualquer trocado
um segundo e ao encanto retornam
tendões de mármore branco
ela ou as águas do lago
sem cílios
nem cigarros da neblina
onde dorme o cisne MALLEUS ARBORIBUS Em torno de meia hora. Basta a pétala do fósforo, bolhas na pele. Tudo começa no cio do archote, basta a árvore. Raízes como artelhos retorcidos, donde partem as chamas, e apressadas, e rumo à coroa de plumas acesas. Mau pressentimento na dormência da semente, sardas do fogo. Na língua das folhas a praga obscena e um surto de gritos. Irritam-se os dedos volúveis da fumaça. Formam pentes, pentagramas, gatos negros indolentes sobre a queimadura das copas. Ela tem poderes e poções – é o que dizem. Faz do galho ressequido a vassoura apavorante – ou bonecas alfinetadas. Dizem guardar o livro das sombras, chamuscado por faísca de um halo de punhais. Alumiam demônios, fugitivos da mata vestida em labaredas, como uma bruxa queimada. CURSO NOTURNO Derrame de ruazinhas, cheirando à erva perto dos botecos, dá na porta de uma escola. Nela existe um corredor, cego de fumaça, há uma sala de aula. A luz denuncia a goteira no teto. E se acaba sobre a lousa, difícil de se ler. Tomadas várias queimaram. E a aula de inglês calou músicas. É junho. Faz frio. Sabe-se de quem tomou caderno no meio da orelha. Dos dedos da mão, quebrados, quando esse alguém revidou. Ruazinhas de perifa, cheirando à cola e cigarro, dão no pátio de uma escola. Nos intervalos, emergem coreografias, sonha-se ser rapper, vocalista de pagode – passam duas meninas grávidas. É junho. Faz frio. Outra bomba explode. Muitos se encolhem na sala de história. Onde a vidraça é partida, e a porta não fecha, há uma corrente irascível de ar. Sabe-se de alguém que levou bala na garupa de uma Honda, vacilou. Sabe-se do preço de um calibre 22, faz frio. A chamada se interrompe. É junho, outro apagão. Há quem faça striptease, há quem imite cachorro, há quem suspenda o resto das aulas. Ruazinhas escuras, cheirando a perfume e pó, alunos saem – lembram bem ratazanas, netas da noite, roendo a cara de susto da lua. PINÇAS DA MORTE Quando olhei o mundo lá de cima, vi um terrível caranguejo. As patas luziam como metralhadoras, cresciam e cresciam e cada uma disparando 6.000 relâmpagos ________ por minuto. Ardia na carapaça uma estrela de Davi. Deformada, é verdade (o peso das quelas vermelhas de fogo)
Esmagaram duas cidades ________ mulheres lavavam panelas, crianças sujavam os pés na rua________ os velhos colavam o ouvido numa rádio reticente para se deitar depois à luz de velas usadas, duas cidades
do cedro vi queimada a semente, com a roupa rasgada partirem anjos tal flocos de neve os pássaros debandaram ________
menos a dor pombo retraído sem uma das asas esse ficou SUZANA VARGAS (1955) poeta gaúcha, autora de literatura infantil e ensaísta, possui 16 livros publicados. Ativista cultural, criou o projeto Rodas de Leitura, pioneiro no Brasil e a Estação das Letras, oficinas de leitura e escrita, que coordena e dirige. É mestre em teoria literária e tem poemas traduzidos na Itália, nos Estados Unidos e na Argentina. Entre seus livros de poemas, destacamos: Sombras Chinesas (1990), Caderno de Outono (1998) e O Amor é Vermelho (2005) MOMENTO Santos todos os mistérios da casa.
Entre a chuva e o resto de feijão na vasilha escrevo um verso.
No minuto a seguir tem o emprego a cidade, seus ritos, tem mais: Uma vontade danada de ficar por aqui.
O escritório é uma bateria de burocracias: Tem o escriba sério de capa e guarda-chuva mais um milhão de livros.
...Só que estou interessada em outras coisas: acertar o ponto do arroz, por exemplo
e nem uma biblioteca inteira vai me dizer como é. A CASA Não só digo adeus aos teus dois quartos a sala ampla a uma rede sonhada na janela
Digo adeus aos teus cheiros a estas baratas que vez por outra te rondaram.
Campainhas, telefones, brigas e remédios ficarão para trás além dos sustos.
E digo adeus aos fantasmas que te cercam Também aos teus arbustos.
E quando uma volta na chave te fizer silêncio Digo adeus aos teus ruídos peregrinos ecos
Movimentos mais amenos do tempo. ORTOPÉDICA Nada como não ter pés Para valorizar sapatos.
Já sei que não é novo: o provérbio é mais ou menos chinês, e mais ou menos meu
Descobri caminhando BANDAID Moça debruçada na janela, como é bonito vê-la através de tantos carros passeando na avenida, e tendo ao fundo a luz mortiça de desbotadas paredes onde repousam tantos tesouros do tempo - a velha foto da avó - um poster da seleção, ainda com Garrincha
Você se recosta e equilibra toda a loucura do universo num só braço o outro cruza em direção às flores mortas de um vaso alto e antigo, desejoso de festas.
O sobrado se desgasta, alguns musgos o guardam. No alto, em letras ancestrais, está escrito - HOTEL - e quase opacas. Em baixo, o luminoso onde se lê - farmácia -
Fique aí, fixe aí, você que não sei de onde vem, que não sabe onde está, de quem desconheço a história Mas que pertence ao sobrado, ao Estado, ao país. Longos cabelos negros, os pensamentos tão longos presos nos carros que passam - Fique - com seu bisavô na parede, a tinta rosa mofando seus vitrais.
Enquanto logo abaixo dos pêlos do seu braço, o luminoso pisca pisca e pisca, Ainda dentro deste século. REGINA MELLO (1959) poeta mineira e artista plástica, vive e trabalha em Belo Horizonte. Com perfil multidisciplinar, realizou 63 exposições individuais e coletivas, nacionais e internacionais. Publicou dois livros/escultura de poesia Livro de Vidro I e II (2004/2005). É autora dos livros de poema Cinquenta (2010), e Passos Partidos. Fundadora e diretora do Museu Nacional da Poesia – MUNAP, desde 2006. Curadora e idealizadora dos projetos: Galeria da Árvore, Sementes de Poesia, Ecolivro Brasil, entre outros. Tem formigas andando no céu Estrelas brilhando no chão Se você pisca não vê Se você fica não lê
São bolhas de sabão ao léu Vidros quebrados em vão Pisca e lê Fica e vê As formigas agora voam REICHSTAG Com um olhar tétrico Prateado O mundo e eu Contemplamos Um deus todo poderoso Criado por Christo ..............................................................................
Condicionados a rótulos bulas guias mapas cadastros etiquetas manuais listas regras gráficos catálogos leis instruções... onde fica nossa liberdade de pensamento? VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA Desconectada Parada Armada Magoada
Desesperada Privada Amada Machucada
Disparada Pesada Adorada Mirada
Desligada Pirada Atirada Melindrada
Publicado por Rubens Jardim em 07/08/2014 às 13h03
07/07/2014 20h06
AS MULHERES POETAS na literatura brasileira (51ª postagem)
BEATRIZ BAJO (1980) poeta paulistana, revisora, tradutora e professora de língua portuguesa e literatura. Publicou A face do fogo (2010), e a A palavra é (2010). Possui um blog na rede (http://lindagraal.blogspot.com/) e divide com Marcelo Ariel a manutenção de Esquina Literária. Morou 17 anos no Rio e vive há 5 em Londrina. POR UM TRIZ quando ele me pega fora de cena escorrego no sol raiado rosa-dos-ventos hasteada leque tremeluzindo tod´água vida é segurar por um triz transversando enfiando e fiando a tração sobre os nós LUX um homem constrói sua mulher pela beira de si, pilares altares de singelezas arquitetados de aleluias
por milênios dentro dos momentos acende colunas e tonifica músculos no peito aberto para o sempre
inventa hélices alianças amálgamas
assim eternamente apalavrados - no franco caminho de seus corpos – despertam a linguagem intraverbal que os ultrapassa:
“nós nos vivemos” O PÃO DA VIDA dias de trigo são mastigados com os dentes insanos das tardes quentes como o despetalar dos ossos, quase roídos, quando, há mais esconderijos do que óculos escuros o olhar é um grão a ser colhido no seio do solo, no sol do futuro
cada mordida no dia transfigura-se em amarelo maduro ………………………………………………………………………………………… dentro de 15h há uma criança que grita dentro de 15h há uma criança que grita, engatinha até a beira da minha saia e arranca-a com seus dentes de leite... precipício de mordiscar anseios encarnados em cada novelo de linha de lã em cada fio de cabelo segredado bebê atrevido de lamber meus seios e cuidar de eu derreter-me por ele permanecer íntegro e carente do que posso oferecer-lhe. Não faço outra coisa senão cuidá-lo para que não se machuque, não vá até a janela sozinho...tenho medo de imaginar suas quedas. seus ruídos e sussurros são inconfundíveis...ele comunica-se naquela língua dos anjos e sou toda trepidação quando o ouço. Ele olha-me com as bilhas do saber anterior...e sacode com os lábios um oráculo de cristal. Ele aperta minhas coxas querendo colo e eu cedo incessantemente. Acho que ele nasceu para morar no que eu sou, toda derramamento...quero alimentá-lo da minha umidade a fim de que ele viva de esquentar os vãos com seus dedos audazes e delicados. E o bebê vem beijando-me com essa maciez, seguindo os passos do que vem chegando... existe falta na imensidão ROBERTA FERRAZ ( 1980 ) poeta paulistana, estudou letras na PUC e história na USP. Publicou em 2003 seu primeiro livro, de contos, Desfiladeiro. É mestre em literatura portuguesa e ganhou em 2008, o prêmio do Programa Nascente da USP, com seu livro de poemas Lacrimatório, Enócoas (2009). Publicou Fio, Fenda e Falésia(2010) em parceria com Érica Zíngano e Renata Huber. RONDÓ DE ABERTURA um molar de saturno, várzea melódica entupindo as tripas, frágua morna da antemanhã – sucessivo lento
molar enfreado, música de tirar casacos das feridas, germes tenros dos defeitos o casto caimento sobre o timo
molar que sulca tua lúcida sorte para contas dizíveis: as cores do chumbo – molar estivador, forja de gatunos atraentes à pedra (do bolso esquerdo) enfiada ao fundo
um molar de saturno – criança te prometem os teus vinte e nove danos SAPHO O meu amor, quando é amor é excesso E morre
Um pé sobre o penhasco abaixo todo o mar centrípeto
sua sombra, volume de pender o fundo vermelhidão e escolha
Expande o delírio feminino ininterrupto o mar de suas mulheres seus ramos do escuro
Entre o lábio e a sola a precisão do penhasco: raja os amores o sexo o manto
meu amor, quando é amor é excesso E morre OFÍCIO MÊNÁDICO I Quando pões-te galgo ininterrupto vigilância do corpo erodindo o corpo teu olhar esférico rodeia meu flanco enxaguado dos tempos tu me banhas rodopiando os quadris siameses e te arranho a órbita dos milagres
então o assomo o nunca pensado chego em teu perto e nos fitamos
quem é esse que é outro que me desce absorto sem ciência conduto doutro corpo ao corpo meu meu horto
então o assombro luminescência do deus?
no teu gozo reconheço-me a outra ainda eu SAPHO A Sophia, à Dora “... e perto dos templos derruídos, a respiração do velho Mar...” (Dora Ferreira da Silva, Hídrias)
Cabeça amendoada inclino-me ao seio festejo silêncio e brecha vento abrindo o véu que o guardava pende o tecido em oferenda e eu inclino-a e acendo um riso ensimesmado
o que perturbaria? o colar de ouro o colo cravejado com juras e sinais a serpente aninhada ao pulso o gesto de estar sedutoramente para dentro sentada neste penhasco e tendo a calda do tecido ventando em mim – o mar satisfeito
com lira ao lado a antiga tartaruga de Hermes o gozo fundo de Apolo, Sapho
faixa nos cabelos, prensas fivelas a deixar livre o pendor de tecer sobre os ombros costas delicadas seios um coração dependurado em cada escuta, e é em ti que movo mar amante
dentro de mim entregue refeito apareço a sorrir – e olho-te não vês que olho
e diretamente só olho a ti
(ao redor da estátua Outra mulher sedenta do contato – primeiros olhos de ressaca – fixa taxativa, a negação aos visitantes: o pólen de guardar o tempo, dentro de caixas brancas e ameaças as substâncias incólumes o interdito do tato a macular as estátuas)
o rosto um triângulo os cabelos trigais adocicados e é em mim que me chamo chamando-te mar amante leda mão absolutamente em concha sabe o fim das pernas coleadas em mel, hastes de vime e vinha, urna ritualística do desejo
ser este poço em perfeita calma culminada de estratégia e de perícia címbalo convulsivo, pedraria alva serpente em riste a untar um pulso antes ou depois de cantar antes ou depois que cante canto azul marinho, pinheirais, distância e clara
repousa a natureza a satisfazer-me em sono
repleta de iguarias o olhar marmóreo o busto ao contrapelo do tangível lira cornucópia de um couro exposto e esconso feito para ti e de ti oculto
são sete as cordas da lira e o labirinto no casco que o colcheio do som abriga
invento um rio com apenas este gesto uma inclinação de cabeça, um Tejo este aprumo de puro arder
estrondo mortalmente silencioso dedico-te ou me olho ao busto meu levemente ácido no vento alto desta falésia não saberás?
tem ainda a lira Dioniso seus cachos rugidos escorrendo pela lateral do leste
ergue firme mão direita e circunda a taça a qualquer imagem que voe e agrada sentar-se ali nos despojos de uma cria de pantera, homens e mares junto à mão, a taça à cintura, dentro dela bebendo o pássaro entusiasmado
é esta a pureza das pombas
curvar-se alta para o poço do que impele Baco atrás de ti, Sapho de mim, à frente desmembrada a querela dos triângulos nas noites quentes longas afiadas nus em bosque indistinto e sagradas
a taça de Dioniso o ventre de Sapho a lira de uma noite inquebrantável
protejo, projeto, não saberás se ajeito os olhos no colo do firmamento ou se fito quão longe do mar o repouso agitado de teus membros
não saberás, tenho os olhos claros
e este declive em minha face
enlaça dedicada maneira de entoar a lira com a lira deitada ao lado ROBERTA TOSTES DANIEL (1981) poeta carioca, tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Zunái, Musa Rara, Diversos Afins, além de blogs e no site do Centro Cultural São Paulo. Incluída nas antologias: Desvio para o Vermelho, Amar, verbo atemporal e História Íntima da Leitura. pão cego da poesia - mastigo o ermo das palavras ANÍMICO ANIMAL Petrificado pelas sensações. Um bicho. Transmuta Dor de si. Calcário, Prende no rosto da rocha Um reino de pesar. Pensa Sob seu magma, sente A poeira nas formas: Sedimentária magia. Requenta um passado De fome. Um nome Sublima a meninice do homem. O anímico animal crava os dentes No sangue da rosa. O peito Como o diabo gosta: Santa candeia de artérias. Um servo: de querer bem ao corpo; Um passo: rumo a tudo que varre; Um sopro: de abismo e de glória. Poente, um deus que venta o rio. Senhor de fogo, de frio, Ferve o eterno. Verve do querer. ………………………………………………………………………….. o medo entrará em nossa casa VIGÉSIMO ANDAR Tenho dias de ficar entorpecida com as montanhas, em parte alguma. Alargada pelas florestas, onde a verticalidade sem pés nem asas pela chacina o alto, sem confidências. ELISA ANDRADE BUZZO(1981) poeta paulistana, é formada em jornalismo pela ECA, com especializações em edição de livros e jornalismo literário. Se lá no sol (2005) foi seu livro de estréia. Em seguida, participou de antologias no Brasil e no exterior. Trabalhou na Radiobrás, revista Cult, edição brasileira do Le Monde diplomatique. Seu último livro, Vário Som, foi finalista do Prêmio Jabuti. nas malocas no cais sodré faltam reboco e corti- nado sobeja amor pombas fofocam a vida por detrás dos vidros das alturas me contam as novidades elogio a beleza de suas penas verdes rubras as patas flexionadas sentinelas tão se- guras de si não jogo tranças nem alpiste como esta grade é baixa vertigens acometem quem se aproxima demais do abismo AMÉRICA É preciso amar rapidamente ler todos os livros interessantes pintar os quadros com urgência transformar toda farinha em pão registrar todos os sentimentos
antes que as cabeças sejam cortadas. CIDADE ÁCIDA palco de horrores e amores solmáforo acusando:
raios peligrosamente UV
(perigo! perigo! peles brancas e azuis)
olhos fechados a luz não queima
atravessa
cidade ácida vem me incendiar CARPE DIEM Guardarei meu dinheiro Comprarei roupas caras Comerei camarão Estalarei meus dentes Mentirei vez ou outra Baterei por prazer Trairei em lençóis brancos
Aceitarei comissão Comerei caviar Ganharei notas verdes jogos, dados vermelhos Pagarei por vestidos cada vez mais vazios
Quantitativamente cumularei arrobas engolirei peixes frágeis com serena feição, discursos inflamados
Esmagarei um pássaro contra minhas mãos duras Cantarei como um bardo falsas canções de amor
Tomarei vitaminas maquiarei rugas, marcas vida desenxabida
lenço sujo a torcer Sujarei camas vazias
Traindo a mim mesmo. Publicado por Rubens Jardim em 07/07/2014 às 20h06
04/06/2014 18h59
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (50ª postagem)
LEILA GUENTHER (1976) poeta catarinense, é formada em letras e estreou em 2006 com o livro de contos O voo noturno das galinhas , traduzido posteriormente para espanhol e lançado no Peru. Participou como contista de várias antologias e em 2012 foi selecionada no Programa Petrobras Cultural com o livro de poemas Viagem a um deserto interior. ANA CRISTINA CÉSAR eu também me mato todos os dias às três horas da tarde. depois volto às mesmas coisas de sempre até pensar de novo na minha próxima morte.
LESS nunca tive um lugar que fosse meu. o que tenho são mochilas, caixas de papelão, objetos descartáveis [usados inúmeras vezes. me resguardo atrás das paredes frágeis de embalagens e sacolas de [plástico. quando acordo durante a noite, é sempre em outro lugar. Um dia a [porta fica à direita; no outro, a cama é estreita. Às vezes [esbarro em objetos que surgem do vazio. nunca tive para onde voltar. Não lembro como é tomar água em copo. vivo nos livros. Os que estão guardados, longe. Fiz deles minha [casa. Construo com páginas e paciência o teto, as janelas, [o minúsculo quintal. já faz tempo que a escova de dentes não habita uma gaveta. já faz muito tempo que desaprendi a utilidade dos cabides. MUSHIN quando se desfaz a teia do sim e do não YÚGEN dentro da terra é inverno o interior abriga a memória como um pensamento
ALINE BINNS (1981) poeta, produtora de cenários e ilustradora, faz parte do grupo Poesia Maloqueirista, criado a partir de leitura de poemas feitas em bares de Paraty na Flip de 2005. A SELVA Nas profundezas de minhas paixões sinceras Onde não existe o ecoar das palavras Mora a minha força mais bruta Cada vez que me abala a dúvida Com os poros em descompasso Eu sei que ela esta viva Devo dizer que estou livre apenas onde não há palavras Devo dizer que aperto, eu mesma, minhas amarras Cada vez que explico o que dizem os meus olhos Cada vez que corro pra longe de mim Cada vez que falam mais alto os contratos E eu sou uma selva Sou a mesma mata serena Que amedronta ao cantar da lua Sou uma deusa plena que tem medo de ser nua. Estou procurando velas para não estar sem trilha E apago com paixão velas e brasas Para não deixar de ser selva Nunca.
NUNCA A cidade está cheia de leões adormecidos à chaves de magia com tristeza vejo nossos guardiões cobertos de esquecimento.
sinto-me parte do poder que envolve tudo o que posso ver
MUDO respira, no fundo pra sentir que ainda está dentro. Com as mãos, o peito e as extremidades em formigamento. Pressente a queda. Sente a vertigem (vinho raro). Salta. se arrebenta... engasga com o sangue, degusta o suor e acorda, ainda tonto do que houvera, vivo, mas não intacto, mudo, mas não calado.
RUPTURA desejei ser uma passagem silenciosa mas o silencio aprofunda a corrosão, ...é como ver a gota caindo ver de cima e ir buscando o chão, e mais além do chão, o nada sem fim, nadar, ir e de repente parar, calar, não respirar pirar morrer
como quebrar como quebrar?
dalí partir, não voltar desfazer todos os caminhos, desconectar...
CAROL MAROSSI (1979) poeta paulista de São Jose do Rio Preto, é advogada e mestranda em direito do comércio internacional pela USP. Membro do Coletivo Vacamarela que organiza a FLAP! e edita o jornal de literatura contemporânea O casulo. Tem poemas publicados nas revistas Não Funciona, Zunái, Lapsus (Lima), e Série Alfa (Valência). Acordo árida, vestida de chumbo. Lembro de Munique, as densas noites de uivos caninos. E era verão no sul. Tão negro e viscoso, tal como os dispositivos de uma Halifax Law. Mas os ecos chegavam da Marienplatz
ressonando no meu peito, prestes a lançar uma ogiva nuclear. Pé ante pé você invadia a praça com seus imprestáveis patins de gelo (e era verão no sul). Naquele quarto minha alma degelava, líquida como chumbo.
DO ESQUECIMENTO Não pensa mais, não mais: o rosto dele fundiu-se aos carros e pelas ruas flutua incógnito, transpirando brancos cravos e ceras. Aquelas verdades nossas, na impossibilidade das carnes, teceram distâncias. Desenhamos trilhas impossíveis: sem volta.
Mas ainda se enroscam por entre os dedos as mesmas esperanças débeis e seguimos, insanos, como uma velha rendeira cega tramando infinitos. Futuro insosso, o nosso gravitando no prato de sopa : frio, trincado. De tudo, a saudade, esse dormir sobre espinhos.
DEPARTURE A plataforma vazia um fog indócil Malas no chão do trem e mãos decepadas acenavam para o nada das janelas.
Queria sussurrar no teu peito e cantar aquela canção démodé - palavras irresponsáveis -
Mas um apito insistente cegou minha voz e, kamikaze, dei-lhea brancura das costas: hic habitat felicitas
Rios afogando o frágil rosto convulso trilhando caminhos opostos aos teus.
MARÍLIA GARCIA(1979) poeta carioca, escritora, tradutora e editora. Estreou em livro em 2001, com a plaquete Encontro às cegas. Publicou 20 poemas para o seu walkman ( 2007). traduzido para o espanhol e publicado na Argentina, no ano passado. Participou do Festival de Poesia Latino-Americana Salida al Mar, em Buenos Aires. NUM DIA BRANCO segura a borda da mesa com o cabelo vermelho vamos para a polônia ver a neve andava tão dispersa assim ele nunca conheceu a família com ganas de frio. sempre aquele movimento preciso ler outras coisas a frase cortada no mesmo ponto fresta de luz onde fala uma gargalhada assomada à janela quando o vê do outro lado da rua procurando o castelo. cabelo curto, segura a ponta da mesa e mastiga as sílabas em sua língua.
SVETLANA na véspera de sua partida para ny, emmanuel hocquard datilografa um poema de george oppen em sua máquina de escrever underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar para barcelona aqui não fico mais nem um dia dizia no café com nome grego que lhe fazia falta ver as coisas invisíveis daquela cidade e seu marido na contramão carregando no braço o menino sem língua, tentando alcançar o que aparecia do outro lado do mar se alguém ainda viria para ajudá-los nesta época do ano a tormenta não costuma demorar (o poema era em inglês) e tinham medo de se perder, ela dizia, por isso a distância, ritmo de degrau seguindo cortado, por isso o modo de andar e o ziguezague do avião sempre que saíam juntos. tinham medo e todos os dias fazia algo para evitar. depois queria encontrá-lo na rua, perdido, como um acidente: cruza uma esquina e vê. desligou a chamada na hora precisa, a voz cortada outra vez antes de seguir pelas ramblas.
CLASSIFICAÇÃO DA SECURA I agora já é quase amanhã mas queria dizer apenas que é muito tarde: acrescentar quatro horas ao relógio indica que já é depois. lá é sempre depois. parecia um nome italiano com aquele som ecoando e a resposta em outra língua mostrava a cor das linhas no mapa, “é lilás”, para não dizer algo preciso para não terminar: com ela saio cedo todos os dias. fico de vez em quando escondido no porto. tomarei o transmediterrâneo e comerei calçots, até chegar o instante antes do instante, momento em que vê o relógio e diz: não. já conhece todos os erros do sistema e a retina derretendo sempre que levanta para sair dali. (precisão é o retângulo do degrau inferior.)
II alguém que não consegue se mover e uma semana de vozes cortadas, deve se acostumar aos movimentos em câmera lenta, à descida pela escada em espiral: recorta os sons de cada quarto e apaga as perguntas que mais detesta responder. como aquela noite no ônibus, ruídos do rádio e pedaços de frases atiradas, sempre girando as horas. ver a paisagem sem ela e precisar o tamanho da ausência com poucos dados — sabe que as baleares ficam do outro lado do mar, que custa chegar anos depois e dizer. ergue os olhos para fixar o que tem ali e não perder de vista a secura.
Publicado por Rubens Jardim em 04/06/2014 às 18h59
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