Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
02/01/2018 12h53
O POETA DE ZARATUSTRA

"A linguagem simbólica pode ter sido a forma que Nietzsche encontrou de escapar ao aprisionamento da gramática, de superar a pressão da linguagem, sair do círculo percorrido
pelos filósofos e não ficar somente na intelectualidade – não ser apenas mais uma repetição. Zaratustra não quer conservar – ele veio para transformar, para inovar"
(extraído da dissertação de mestrado de Ester Fridman.Só há poucos dias fiquei sabendo de nossa paixão comum por Nietzsche.Particularmente pelo Zaratustra, lido em períodos diferentes de nossas vidas: eu qdo adolescente e ela já mulher feita.)

Sempre achei o Zaratustra um tremendo poema, desde a primeira vez que li, na adolescência.Voltei a ele infindáveis vezes e essa primeira impressão era sempre confirmada. Até hoje é assim. Esse bigodudo martelava a linguagem e transgredia princípios e valores. E fico feliz com a hipótese trabalhada por Ester: ela é coincidente com a minha percepção instintiva de que o Zaratustra é um livro escrito em linguagem simbólica, que é a linguagem dos criadores e dos poetas. E tem mais: nessa dissertação a autora sugere que esse processo utilizado por Nietzsche, no Zaratustra, é para espíritos não-gregários, uma vez que não foi escrito em uma linguagem gregária.


Publicado por Rubens Jardim em 02/01/2018 às 12h53
 
01/01/2018 18h42
PASSAGEM DO ANO

Drummond já dizia que 
O último dia do ano
Não é o ultimo dia do tempo.
Mas como celebrar
em solidão, essas alegrias
coletivas.Como não se sentir 
prestes a cair num precipício
Como não ouvir
O clamor da voz e seu eco.
Como ficar blindado aos 
brindes que a memória
Insiste em presentificar?
Nem sei se mereço 
Viver mais este ano.
O que sinto é que não há 
Recurso contra a morte.

E eu ainda estou vivo .


(saindo do forno agora, nos estertores desse ano muito desanimador pra todos que sentem repulsa ao golpe e a este governo ilegítimo que está demolindo nosso país. Mas a lua continua cheia e a luta prossgue).


Publicado por Rubens Jardim em 01/01/2018 às 18h42
 
15/11/2017 18h48
AS MULHERES POETAS...(101ª postagem)

ROSÁLIA MILSZJATN poeta carioca, é  médica e psicanalista. Publicou cinco livros de poesias. O último, Esse Recorte(Patuá, 2014), conquistou o Prêmio Literário Nacional do Pen Clube do Brasil de 2016. Em 1999 venceu o Prêmio SESC de Poesia do Estado do Rio de Janeiro. Além de Antologias, seus poemas foram publicados em jornais e revistas como Poesia Sempre, Revista Agulha, Jalons (Nantes, França),  revista CULT e outras.

COMO DIZER

Como dizer que é noite

se dentro de mim é dia

como dizer do frio

se dentro de mim é fogo

como dizer não sei

se dentro de mim eu sei

como dizer de ti

 

se dentro de mim sou eu

 

A PROVA

Não fale tanto
Com o tempo
O eco reverbera
E fica insuportável

Cale-se enquanto
É tempo e por dentro
Teça um instrumento
Para a composição da melodia

A melodia quando pronta
Alcança os justos e inocentes
E saberás quem anda ao teu lado

 

QUANDO A NATUREZA FAZ AMOR

A flor estremece
De gozo
Com o beijo
Do beija-flor

O vento levanta
Eufórico as águas
Que arrepiam
Em finas vagas

O mar molha
Salga
A encosta
Com sua língua

A lua cintila
Com a faixa de sêmen
Que o mar
Ejacula

O sol se excita
Em rijos raios
Que penetram
Úmidas matas

A floresta
Cheira a sexo
Do orvalho
Da manhã

No orgasmo das nuvens
A chuva chora
E o silêncio dorme
A terra

Quando a natureza faz amor

 

MYRIAN ASFORA (19  ) poeta pernambucana, é advogada com mestrado em direito e  professora universitária. Atualmente exerce funções como assessora da presidência do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira. Tem dois livros de poemas publicados : O Tempo das Canções de Amor e Canções do Amor sem tempo.

DO PÁSSARO E DA ROSA

Nem o pássaro

testemunhou

o sonho da rosa

despedaçado em cor,

pelo crepúsculo

******************************

A porta velha

da casa antiga,

dentro da noite

perscruta o tempo.

Impassível ao vento,

desafia tudo

menos a tristeza

de não ser mais

caminho.

 

**********************

Pense um pouco em ti mesmo

Um pouco, apenas,

Verás, então

Que lembras um vôo

Na fragilidade do equilíbrio.

**********************

Nem o vento

trilhando o seu

caminho

deteve o vôo

do pássaro

sedento de infinito.

 

TATIANA ALVES (19  ) poeta carioca, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat e do site Escritoras Suicidas, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios e Germina Literatura. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui quinze livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

ERA UMA VEZ

E no final descobriu-se que o príncipe era um sapo

Coacha e resmunga durante o dia

Ronca feito porco à noite

E a princesa, coitada,

Rola na cama pensando na sua vida de conto de fadas

Pobre princesa!

Tivesse sabido antes,

E teria ficado com o dragão...

 

HARPOESIA

Minha língua viva e sedenta

Saliva

Maldita

E roça em profanas palavras

 

Minhas mãos suadas e errantes

Tateiam

Malditas

E tocam profanas palavras

 

Por entre línguas e mãos

Toma forma a poesia

Sádica

Lúdica

Lúbrica

 

No prazer do trava-língua

No ardor de uma mão-boba

A poesia se toca

Harpoesia

 

MARIA GIULIA PINHEIRO (19  ) é autora do livro Da Poeta ao Inevitável (Ed. Patuá/13) e dramaturga dos espetáculos “Mais um Hamlet”, “Alteridade” e “Bruta Flor do Querer”, em que também assina a direção. É membro-fundadora do grupo teatral Companhia e Fúria, em que atua, dirige e escreve.

TRILHA

A calma dele

versus

a minha obsessão.

 

A cama dele,

versos

da minha sala.

 

A mania dele de consumir o amor

como comida do natal que ainda passeia na geladeira em março

contra

consumado

o meu desejo de chupar paixão feito miojo,

sem nem louça pro dia seguinte.

 

Ele é noir,

eu sou Klimt.

 

Um dia a gente se encontra

num meio fio da vida, na Vila.

Ele de havaianas,

eu de alto coque.

 

Ele diz qualquer coisa sobre escolhas,

eu faço um roque,

e, devagarinho, o crédito sobe.

 

FIM DE NOITE

Doze discos,
um jantar,
a lua
e uma carona pra casa.

Doze discos são aquilo que não vivemos:
aposta perdida antes do fim:
faixas de experiências nunca compartilhadas.

O jantar,
a prova de que o acaso
é que faz golpes baixos:
me deixa
apresentar a você um universo,
me convida a
frequentar o seu
e nos força a pagar a conta
sem que saboreássemos
o ritual completo.

A lua, o que
contemplamos sem tocar:
a beleza
deste encontro.

A carona, sua parte nesta noite:
me deixar em casa
e nunca mais me buscar.

PASSAGEM

Tão bonito o ressuscitar.

É que a morte,
como vejo,
não é objetivo,
fim,
nada.


A morte é a virada de vida,
paixão,
começo preenchido,
novo zero.


A morte é um nascer de outro lado.


Tão bonito o ressuscitar:
nascer do mesmo lado,
depois de ter morrido,
é entender que não é o lado
que define a vida,
mas o modo de ser
vivo.


Tão bonito ressuscitar quando é preciso morrer.

THAÍS BRAVO(19   ) poeta carioca, é escritora e tradutora. Autora do livro digital Todos os meus (ex) heróis são machistas, é uma das criadoras e editoras da Mulheres que Escrevem. Co-fundadora da revista Capitolina, desde 2014, escreve para veículos como a revista Ovelha e a Alpaca Press.

 

o motorista me responde que sim

é direto

é uma satisfação

poupar alguns minutos

em trânsito

tenho um pé na escada e outro no chão

na hora que pego o impulso

reparo

a Central molhada

sem proteção

nesse instante desejo:

ser amada aqui

nesse lugar

nessa língua

pela vibração em que respondo

obrigada

e saco meu Bilhete Único

uma sério de gestos

que domino

sem hesitar

tento te ver

nesse contexto

desarmado

o amor talvez seja

sempre quebrar

os hábitos

no entanto sustentam

um rumo disponível

às vezes a repetição

não é

monotonia

não é

falta

pode ser

um guia

pode ser

desenhar um mapa

com a carne

dos dedos

toco as teclas

sem enxergar

suas letras formo

palavra

passos

de dança

memória

física

a história

é um sopro encarnado

entre as paredes e línguas e peles

ser amada aqui

em uma cidade que exige

que sua

que avacalha

que muda

as linhas

a cada 3 meses

e sufoca a rotina

e gargalha da estabilidade

quando subo no 315 Central – Recreio é uma vitória

porque sabe-se lá até quando

sabe-se lá quantas novas linhas

a extinguir narrativas

então quando subo no 315 Central – Recreio

enxergo que grande parte do meu ser não é

feito de sublimações e essencias

grande parte do meu ser se faz

entre essas linhas

que traço e apago diariamente

pela cidade

Alvorada – Del Castilho – Cinelândia

Rua da lapa – Cinelândia – Central – Recreio

grande parte do meu ser é

deslocamento

automático

como meus dedos

a dançar palavras

sobre as teclas

quase porque às vezes faísca

espera trânsito barracos

e desencontros

hoje no 614 Alvorada – Del Castilho

vi um rapaz confuso e o motorista indisposto

vi uma garota se aproximar talvez oferecendo ajuda

eles conversam claramente ele não é daqui

ela parece mais certa

do que faz imagino se

pela ajuda vão iniciar um contato trocar contato marcar uma cerveja começar algo

então entendo que na verdade já existe são algo

um casal nesses tempos nunca se sabe o termo certo mas são

algo ela só foi ajudar depois de um tempo porque está magoada

com algo depois dos minutos em que se explicam

passam o resto da viagem em silêncio

um ao lado do outro

pelo silêncio compartilhado vejo que são

algo

na hora de descer a fila se forma com antecedência

ele se aproxima muito com indiferença

ela permite

ela desce em passos rápidos ela sabe

pra onde ir

ele segue afobado

caso a perca não sabe

para onde seguir em Del Castilho

eles ficam na fila para comprar um bilhete

eu sigo em passos de quem sabe o caminho mais do que gostaria

 

então quando subi com certeza no 315 –EXPRESSO

a repetição do impulso

sem hesitar

o amor é sempre

quebrar hábitos

se fazer estrangeira

em terras sem raiz

é atalho

no mais íntimo

dos movimentos

guardados de cor

entre a língua a pele e as paredes

desejo

laço que faz

dos pontos

de passagem

escolha

.............................................................................................................

eu lembro de esbarrar com você

quando brigava com outro garoto

que acabou se tornando meu amigo

próximo ou não tanto

(por que quem tem amigos próximos aos 25 anos?)

ali era um ponto de ônibus

desses que desapareceu

de um dia para o outro

a linha do ônibus também mudou

de 2016 para 318

e o ponto mudou

outras três vezes

até se tornar Central

 

eu pareço ser a única

que carrega

esses rearranjos

em cada trajeto

um novo garoto

passeia

pelas minhas coxas

se encontra as rasuras

em alto relevo

 

quando atravesso

temendo facadas

a Rio Branco

ainda adormecida

talvez já

desponte

a próxima linha

 

por enquanto

faço sinal

à casca

que arranco

só para deixar

sua marca

 

CHANTAL CASTELLI (19  ) poeta paulistana, é fotógrafa, professora de literatura e ensaísta. Participou do livro Drummond Revisitado (2002), que reúne análises de vários autores sobre a obra do poeta itabirano. Publicou os livros de poemas Memória Prévia (2000) e Os cães de que desistimos(2016)

 

CONSTELAÇÃO

                      Para Carlos Drummond de Andrade

 

saltavam, dois olhos

de vidro opaco.

 

Contemplo-os agora

na janela da memória

— ou serão também espelho,

reflexo de mim mesmo?

 

A tarde parecia eterna

nos pés do menino junto à horta,

na caixa d’água que era berço e túmulo,

na coleção de cacos e suas flores mínimas,

resumo de conversas na cozinha,

tinidos, subentendidos...

 

Tento recompor

a memória prévia,

o tempo duplo,

a casa em chiaroscuro,

no papel que

(mesmo querendo)

não posso rasgar.

 

SEM TÍTULO

Não um poema

que descrevesse o desenho

de tua mão

procurando-me esta manhã;

sendo que é

de impalpável fibra

esse aceno.

 

Mas um poema

que soubesse dizer

ao menos da perfeita mudez

dessa hora, do primeiro

esboço de luz

saudando o entendimento

de nossos corpos.

 

REVELAÇÃO

Tento decifrar

uma foto que não há:

ao lado da janela meu pai

e eu

e nosso reflexo no vidro

de uma tarde morta.

 

O retrato impossível me fita,

imagem-lembrança de desejo,

provando mudo

que o que resta

não é jamais o uso

dos melhores sonhos,

mas apenas a idéia

viajando na carne:

os pés sobre os quais não dancei,

a mão que não retive,

os lábios que não marcaram minha face.

 

Somente o olhar

espiritual-imperfeito

alcança-me agora

dessa tarde morta

e sem registro.

 

RITA ISADORA PESSOA(1984) poeta carioca, é graduada em psicologia. Estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em Teoria Psicanalítica e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada (UFF), Trabalha como tradutora, revisora, astróloga, taróloga, figurinista. Seu primeiro livro de poesia A VIDA NOS VULCÕES foi publicado em 2016.

 

ESCREVO TEU NOME NO GRÃO

por tudo o que tomba

sem se reerguer sem

sequer lembrar da queda

        pela sombra

que nunca é proporcional

   à luz        

                 pela sombra

que não é proporcional

de maneira alguma

                      à luz

te escrevo o nome

onde se escondem

as montanhas

onde o sinal do celular

    n ã o           pega

nãopega nãopega n-ã-o pe-ga

escrevo ainda

com a tinta

que extraio dos moluscos

que aparecem mortos

pela praia

no inicinho da manhã

 

pelo esquecimento compulsório

    da

     q

     u

     e

     d

     a

 

“escrevo o teu nome

   no grão de arroz”

 

porque saturno retorna

        fora de hora

e a sombra não é proporcional

               ao facho de luz

             que te acompanha

[e é um absurdo que a luz

produza tantos monstros

com tamanha facilidade]

porque há sim pulsação nos vasos

         altamente periculosos

           das minhas pernas

e por tudo aquilo que tomba

                 sem levantar-se:

toma este grão luminoso

onde te escrevo o nome

   devidamente instalada

 

             na virada invisível

                                 do rio

 

DOS RUMORES QUE SE INSTALAM

     não posso dizer que

  ignoro com seriedade

a consciência do medo

                nas gengivas

e a eletricidade que alimenta

o corpo venoso brutal

da vergonha porcamente

equilibrada nos joelhos.

          como é possível

que a despeito de tudo

         as gentes sejam?

que sejam com pavor,

e dentes caninos a mostra,

                 mas que sejam.

a mim, é impossível

deslizar com graça

por essa existência

de pequenos naufrágios

de impossibilidades rotundas

de quebra-mares.

ouço um fino assovio

              que assegura

o cativeiro de muitas feras

nos porões deste navio

        e sei dos rumores

instalados, pesando sobre

grossas cordas e velas içadas:

o coração batendo vivo

no fundo desta caixa.

 

LILIAN SAIS (19  ) poeta paulistana, é doutora em letras, pesquisadora e tradutora da área de grego antigo e coeditora da Revista Libertinagem. Participa da organização de diferentes Saraus espalhados pela Pauliceia.

CREMAÇÃO

tenho dois cinzeiros

e um quarto de cinzas:

sobre o casaco, o chão,

a escrivaninha, a cadeira,

os remédios, o batente

da janela,

 

- tragada útil porque vírgula, pausa,

hiato, fenda, precipício,

xingamento calado,

suspiro disfarçado,

locomotiva descarrilhada da necessidade de ainda ser gente –

 

o que o vento leva

a chuva fixa,

cinzas simplesmente cinzas,

feitas de erupção portátil

e dispersas pelo hálito, sopro,

pelo vento,

feito eu.

 

TRITONO

(Para Teofilo Tostes Daniel)

porque grávida

de ausência

 

urge o sorriso grávido

de alguma falta,

 

ruído grave, gestando

o impronunciável,

 

urgem lábios, margens

obscenas da inundação

 

possível, sorriso

discreto, palavras impressas,

 

parto, farol de ruas

sem esquinas, ruas-rio,

 

(quero morar numa cidade sem esquinas,

meus olhos ardem,

tenho uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes,

o corinthians foi campeão,

o preço dos tomates & a crise política & a meteorologia)

 

há meses

 

(são apenas dois olhos

duas pernas e dez dedos para tantas

urgências no mundo que,)

 

transbordo.

 

- porque grávida

de alguma ausência

 

que o CID

não gera

 

entre as margens

absurdas da normalidade

 

o abismo

 

fere e confunde,

meu bem

 

PRAZOS

digo sexta porque

soa longe, digo sexta

como quem diz

 

outra vida,

porque essa semana

já é bastante,

 

como a anterior,

a outra, a próxima,

a existência percorrida,

 

esse correr inexorável

de existir, ser gente

e não criado-mudo,

 

cômoda de três gavetas,

capa de chuva,

porta-níquel,

 

- desenho na parede -,

 

digo sexta porque

não é hoje, e isso,

se não me basta,

 

já me serve

um bom tanto:

apenas hoje,

 

não.

 


Publicado por Rubens Jardim em 15/11/2017 às 18h48
 
23/10/2017 19h30
AS MULHERES POETAS...(100ª postagem)

LEILA FERRAZ  (1944). Poeta paulistana, ensaísta, tradutora, fotógrafa e artista plástica. Participou ativamente do Movimento Surrealista em São Paulo de 1965 a 1970. Em 1968 vai para Paris onde estreita contatos com o Movimento Surrealista Internacional. Em 1977 lança seu primeiro livro de poemas: Cometas . Em 1980 seu segundo livro : Poemas Plásticos. Em 1998 publica poema e ensaio em Surrealist Women -  An International Anthology editada pela University of Texas – Austin .

OLHOS BOIANDO

Aquarelados olhos teus e meus atravessam o mar em cristas

Passando pelas pernas das pontes

Me olho então

E perco meu olhar de vista

 

Aquarelados morros meus e teus

De indefinidos contornos devorando céus

Colando os ouvidos em nossos ventres a escuta de tempestades eternas

Jamais despencadas

Profetizando a ameaça dos sonhos e das ideias

 

Aquarelados olhos nossos

De portas abertas

E peitos e ventres a mostra na superfície do mar

Boiamos uma relação de serpentes

Numa sedução muda e fraterna

Entre as algas de um mesmo conhecimento

Nas verdades veladas das chapas de cobre riscadas e nos papéis queimados

 

Paisagens pela centésima vez repintadas

 

Perco meu olhar de vista

Desfoco todos os contornos de afogada

Disfarço minha morte

E quando nua pelo avesso sou mais nua

 

Acelerada enrosco-me entre árvores

Em curvas infinitas de passado infinito

Onde minha boca abocanha minha cauda

 

Boiando

Velocidades se deslocam em minha direção na superfície do plano mole

Aberta

Do centro de meu umbigo se estendem os pontos de fuga

Projetando já o início e o fim do meu trajeto

 

Deitada sobre o mar balanço num círculo de imagens disfarçadas

 

Vermelhos escondidos

Bocas murmurando palavras de cerejas

Palavras lidas entre nossas  bocas

 

Quero aportar-me lá

Mesmo

Sim

Sem talvez

Lá onde perco meu olhar de vista

E o sentido é um telhado de vidro

E o poeta o último pedaço possível

Para reconstruir um frágil nome

Indivíduo.

 

ONDINAS

Ainda bêbada de sono no limbo dos sonhos li uma a uma as tuas

palavras

Rasguei-as de seus sentidos e colei-as pela extensão do  meu

corpo

Desenhos sem geometria adornaram meus quatro cantos e as

                ondas dos desejos perderam suas marés

Vozes de espumas vorazes arrebentavam seus significados nas

                praias

Águas primordiais lambiam por entre tuas pernas e esquecias teu

                corpo no enlace das Ondinas

Cruzando-as e perdendo todos os vestígios da sensatez

Bocas cheias de espumas brancas beijavam as solas descalças

                de meus pés em conchas e me desfaleciam de prazer

Como impedir uma inspiração na umidade de Thalassa?

Não sucumbir ao naufragar pelos pudores de tuas conchas?

Deixei-me fustigar até verter sangue e dele te alimentei sem saber

                o que fazia

Anfíbios seres do mar devoluto ultrapassam símbolos sagrados

E em quedas sublimes uma vez mais em nós mergulhamos

 

OS PRISIONEIROS

Usei o negro como ponta de lança

E o vermelho como razão agonizante

Silenciei anarquicamente as portas

Das mãos entrelaçadas

Cobri montanhas traficadas  e

Infanta

Escutei as histórias que nunca ouvi

Abri os braços em revoluções do nada

E mais alto subi abrindo o céu a unhadas

Porque sou jovem

Tresloucada

Gêmea e apaixonada

Gritando palavras de ordem

Tirando panfletos da pedra

Numa corrente de mãos e construindo barricadas

 

Entrevi um pedaço da história arrancada a palmadas

Das ruas de Paris

E se Não dormi e se não comi

Fui corpo só pulsando sensitivo entre matracas

Que tentavam impedir a melhor das trepadas

A trepada do cio

A trepada fecundada

A trepada inesquecível

A trepada que funde

Viva a vida e viva a morte

A trepada do corpo

A trepada menstruada

A trepada que para o tempo

A trepada sem idades

A trepada de todas as gentes

A trepada sem pátria

A trepada bastarda

(esta trepada com  a vida foi plenamente gozada em maio de 1968, em Paris)

 

PRIMEIRO MESTRE-O MAGO

Meu rosto desfigurado e manchado pelas sobras dos tempos

Me contempla no palco iluminado apenas.

Centenas de velas acesas derretem em meus sonhos e perco

                Meu carro em um baralho de tarô.

Subo e desço as ladeiras sem fim no labirinto do meu sonho

                Até encontrar você.

Meu primeiro mago, meu bruxo de milhões de instantes.

Meu dia de Ulisses chegando a Ítaca.

Subo as escadas inexistentes do teu atelier mágico.

Quero pronunciar teu nome

                Mas me tapam a boca mil mãos de pais e mães inexistentes.

Lá no teu quarto samurai te vejo sobre o leito desfeito

De braços abertos e o sorriso pronunciando meu nome.

Venha e cole teu corpo nu ao meu Olimpo.

Sintamos a colagem perfeita construída milímetro a milímetro.

Grudados estamos e minha boca se derrete em tua saliva.

Somos a mistura carnal do prazer amoroso.

Nos queremos como fogo fátuo e nos tocamos como tocha e brasa.

Ardem as nossas peles em desfigurados olhares.

                Eu te beijo e tu me beijas.

Eu ainda viva e tu vivo apenas e para sempre neste meu sonho.

Amigo e primeiro mestre que saudades tenho de ti.

 

LUCIANE LOPES (1971) poeta paulista, nasceu e vive em Mirassol. É letrista e raramente passa um dia sem escrever algum poema. Estudou publicidade e propaganda na UNIRP, São José do Rio Preto e possui uma empresa de RH.Seu primeiro livro, O miolo do mundo é macio,será lançado brevemente, talvez ainda neste ano.

O AMOR QUANDO É ANTIGO

O amor sim

é bicho estranho

atrevido

Se veste de monstro

marinho,

faz carinho nas minhas

nádegas.

Arrebenta ondas nas ancas

-um pescador –

de baixo dessas

anáguas

 

PIRÃO

Alguns diálogos

ainda me estupram,

enfiam sua peixeira

nas minhas tripas.

Nunca fui avessa

aos maus tratos

[da minha própria

cabeça]

 

Se bem temperados

sou capaz de lamber

os falos.

 

ON THE ROAD

Por favor:

um amor pra viagem

e um suco de eternidade

 

INTERVENÇÃO CELESTE

minha oração

é mais subversiva

[do que a tua]

enquanto suporta

a salve rainha

te mordo as mãos

postas e o osso

sacro

ISABELA PENOV(1986) poeta, atriz e fotógrafa. Dedica-se à poesia falada e escrita. Seu trabalho em poesia falada pode ser visto na crescente cena paulista de slam (campeonatos de poesia autoral falada,) no seu canal no Youtube e também nos vídeos “Cuidado: Inflamável” e “Mal Menor”, ambos lançados no ano de 2015. Mantém o blog Semeaduras (isabelapenov.blogspot.com)

POEMA PRO MUNDO

Olhar o mundo

como se visto de uma estrela

(o passado espia o futuro):

um pequeno ponto em movimento num infinito em movimento -

como fosse uma bailarina no fundo do mar.

Olhar o mundo

como se visto da plateia:

no silêncio do espaço ecoa a voz de La Negra:

“cambia, todo cambia

cambia, todo cambia...”

enquanto elas giram - elas: a Terra, La Negra, a bailarina.

Olhar o mundo

como se visto de um satélite:

porção água,

porção nuvem,

porção terra.

Azul, branca, multicor

flutua.

 

Olhar o mundo

como visto num sonho

(o de dentro espia o de fora):

nada falta. Sua beleza está completa

e a gente vendo

como quem nunca viu

um mapa:

o mundo

como veio ao

mundo: nu

em sangue, vérnix, silêncio e

nenhuma,

nenhuma ínfima

fronteira.

 

POEMA EM PREFIXO

Basta. Desisto do verso.

Agora eu quero o in-

verso. Ou o reverso.

Eu quero agora o anti

verso. O diverso. Quero

o pluri, o multi, o uni

verso.

 

E depois

depois eu quero

o que vem antes.

Eu quero, eu quero, eu quero

muito mais, além e sobretudo eu

quero o

sub

verso.

 

o verso subnutrido

o verso subempregado

o verso subestimado, subjugado

sub

entendido

?

o verso subdesenvolvido,

um tanto subordinado

(mas insubornável)

ordinário, mas sub

versivo.

 

 

Subversivo verbo:

ação: miragem:

ver só: distr-

ação: paisagem.

 

Subatômico. Supersônico.

Parido na noite insone,

na voz dos sem-nome,

no cancro, na peste, no corte,

no pulso da veia do homem,

na fome.

 

O subverso supérfluo

e super

fluido.

O verso lido no vagão superlotado e

sublinhado

(a linha trêmula partindo as palavras)

mudo, entalado, apertado e

(next station)

superlativo.

 

Verso que sub

verta

verso que sub

leve

verso que sub

merja.

 

Subliterário, um verso que

para, fica, segue sub

vertendo lágrimas

moendo vértebras.

 

Vendável, mas não vendido.

Verdade, mas não verídico.

Superado, mas invencível.

Surgido no vendaval.

 

Sub verso sub

merso em mil.

 

Sublingual: profana hóstia, calmante, anti

ácido.

Nascido no submundo

perdido no subsolo

esquecido no sobretudo.

Subterrâneo etéreo

Suburbano convicto, invicto,

inviolável.

O subverso suprassumo do suplício. Um precipício

página adentro. Um início após o fim.

 

Sub, super, hiper, infra, intra, entre.

Entre.

 

O verso sem superego.

A gota da superdose.

O verso na superfície

de dentro.

O verso sem sobreaviso.

O verso do sobrevoo.

Um dia de sobrevida

- perverso.

 

O verso sob.

Ele sobe. Versa

sobre. Conversa.

 

Substantivo e substância

e subsistência e susto. E súbito.

E tanto, tanto.

 

Destruído, substituído, violado, ignorado, impossível.

Impossível. Festejado, sussurrado, entoado, preciso.

Subalterno.

Preciso. Eu quero.

Eu quero, eu quero, eu quero,

sobretudo e mais do que  o

di, re, anti, pluri, multi, trans, universo eu

quero o sub, apenas.

Esqueçam perfeições, cumes, topos,

ignorem o sublime e cuspam

na estrela da manhã: eu

quero o

sub

verso.

Eterno.

 

MAL MENOR

Mas o que o menino merece?

O menor. Aquele sinal de menos, aquele fora de prumo que perambula tão próximo.

O que merece o menor, o menos, o zero à esquerda de deus pai?

Merece pai?, merece pão?, merece ser peão?, ser campeão?

O que o menino merece?

Dois anos a menos, dois anos a mais, tanto faz, nunca mais?

O que o menino merece?

O menino da desmemória, na ladeira. O que te desmerece. O que ele merece?

O que esmorece de fomes e dores na guia. Merece alegria?, da mais barata?, vapor barato?

Merece um trato ou dormir com os ratos, ao relento?

Merece o vento no cabelo ralo?

ou merece descer pelo ralo?

o menino franzino da borda do mundo que acorda imundo no meio da sua tranquila madrugada.

 

Merece morada?, namorada?, moradia?,

mordida ou lambida de bicho, o menino?

Merece entrar mais cedo no inferno?

merece um terno cortado? um pescoço cortado?

um corte?, uma morte?, um trote a galope?

 

Já está estragado, o menino?

Já é podre maçã?, pobre maçã?, febre malsã no teu corpo exposto nas ruas?

Não merece moças nuas, sumo de fruta, duas luas?

A podre maçã, pobre maçã, o menino malsão que apodrece vai contaminar os outros meninos da caixa, da cesta, da sexta-feira?

Será que você vai morder essa fruta bichada, e acabar sozinho no meio do nada, tremendo de medo na calçada

igual o menino faz em

toda

madrugada, será?

 

O que o menino merece?

O que aquele menino merece?

E o teu menino, o que merece?

Merece ser menino?

Ou cada vez mais cedo,

calado,

logo merece ser gerido e gerado entre grades e correntes umbilicais,

no caos,

caindo no abismo do noticiário diário?

Não merece um canário?, um algodão doce?, uma chance?,

o que ele disse que merece?

 

E você, que já foi menino?

E o teu menino

o que merece?

 

A CONCEPÇÃO

Ela já tinha engolido

sapos, risos, esperma e palavras.

Gritaram-lhe:

“Engole esse choro!”

Engoliu

e ele choveu dentro dela.

De madrugada procurou um papel:

tinha lhe brotado um poema.

 

CARLA CARBATTI (1977  ) poeta mineira, é doutoranda em estudos da literatura e da cultura pela USC. Já teve poemas publicados na Germina, Mallarmagens, Alagunas, Diversos Afins, Escritoras Suicidas, Zunái, Jornal Relevo, Contratiempo. Estreou recentemente com o livro de poemas Cadencia do Caos.(2016)

[         ]

 o poema não tem

nenhuma missão ulterior

que conduza a uma explicação da vida

 

o poema é só

esta mosca triste

girando em volta de uma ferida

 

SOPRO

minha espécie tem anatomia para o escuro

para a palavra perecedeira cheia de vermelho nas bordas

para as roseiras e os pensamentos ao vento

para a solidão que enxerga pregos, lesmas, gatos

para os fatos não corroboráveis

e horizonte alongados de garças

tudo que se ajeita ao devir

ao movimento

mas estamos obrigadas a viver os acontecimentos

e as metamorfoses

sob a forma da Lei

nós, que mordemos a maçã,

sabemos

o território da boca

evoca outras gravidades, gradientes,

densidades, potências, realidades

outra linguagem

:fome: sede: sopro: salivas: mares

minha espécie permanece

até o último gole

até na garganta

pousar um pássaro

e no poema

o silêncio

 

e plá

de fato

o voo das borboletas

advinha a dança do caos

se trata de uma síntese

de silêncio e movimento

está em tudo

a leoa quando ruge

a vaca quando muge

o cavalo quando relincha

o balão quando incha

e plá

estoura no ar

faz circular

pequenas dimensões

de acontecimentos

então, pode ocorrer

de alguém ver o balão,

a vaca, a leoa ou cavalo

e escrever um verso

 

alguém ler o verso

e compor uma música

alguém escutar a música

e dançar

pode acontecer

não quer dizer que aconteça

a combinação dos elementos é caótica

a síntese é disjuntiva

já sucedeu de eu

dizer amor

e nenhuma estrela

acender no céu

 

MU...DANÇA

                                                    dance for love

                                                                   p. bausch

danço tuas palavras

a cada sílaba

a cada fonema

as reticências também

é preciso ir a menos

encontrar o silêncio                      os estilhaços

do que não há

vou até o limiar

catar estrelas no céu da tua boca

não são poucas as esquinas

onde me des-dobro

como diante de mil espelhos

perco as origens

 

encontro na falta

a multiplicidade

a possibilidade

de não ser

uma

a soma dos átomos é infinita

porque infinito o vazio

duas

os átomos não possuem

uma fronteira definida

como o amor o desejo

o   m o v i m e n t o

danço

sem coreografia

 

a palavra é instantânea

 

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 23/10/2017 às 19h30
 
02/10/2017 20h14
AS MULHERES POETAS...99ª POSTAGEM

MALU VERDI (  ) poeta gaúcha, é formada em letras, mestre em literatura brasileira e doutora em teoria literária pela Universidade de Brasília. Possui muitos textos musicados por autores italianos, seja de música experimental, seja erudita. Publicou Personagem possível (1984), Matéria sem nome (1987), Falas (1988) e Este fruto outro/Questo frutto altro (ltália, 1994). “O caractere do sono – entre Oriente e Ocidente” e “Coito com o real”.

 

MISTÉRIOS

                         (para Marcus, seu sorriso eventual)

Arrumar malas mais uma vez

arrumar, sentir o canto, o arrulhar

o novo rumo de objetos sós

precários, movidos de um lado para outro

repartidos, classificados, ensacados

coisas que buscam seu lugar

buscam como se seres fossem

pensantes:

- caber num espaço exíguo, a repartição dos pães

ao contrário

(todo o vivido em algum tempo, lugar

 na verdade, tempos multiplicados

 lugares exponenciais)

tudo

que se retorce, aperta, ensaca

para caber

numa mala

 

GOTA

Folha de forma perfeita

cai

De um verde verde

não se retrai

(é puro abandono)

vem ao chão

sem ser este o tempo

da queda

(a estação não é o outono)

Uma  gota verde bordada

geometricamente

com amarelos veios

( teia )

A folha se abre em linhas

letras finas  desenham

o território da folha

escasso e aberto

(veredas esboçadas)

Aranha-folha

Artista

traça bifurcações repetidas

(destinos)

Tudo cabe no espaço da folha

 caída

 

pousada na perna

 

MAS HÁ O SOL, HÁ A LUA

Aqui escuta aqui observa

aqui aguarda

Erma desarmada

escuta os  cantos

os incontáveis pássaros

Nem sei o que observa

ela, serva do nada,

olhar frouxo a anotar o dia

as águas que correm

e  as que em minhas costas

escorrem, morrem

Corro do que me arma

do que não me ama,

diz,

desarmada de tudo

o flanco ensangüentado

a anca de égua parada

inobservada

galopando na noite

Observa o ser

o seu, o de cada um

e  cala

Mas há o sol, há a lua,

digo,

e essa certeza pode bastar

Aguarda, escuta, observa

percebe a  cada dia uma diferença

 

na luz

 

REVISITANDO

a mesma luz o mesmo ângulo

a igualdade

da desigualdade

 

TATIANA PEQUENO (1979 ) poeta carioca, é doutora em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com tese sobre Maria Gabriela Llansol. Professora Adjunta de Literaturas Portuguesa e Africanas da Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou os livros de poemas:, Réplica das Urtigas(2009) e Aceno(2014).

1)

A urna avermelhada que trago

por dentro da costura deixa

aberta a poça que me sai do

baixo e o ventre é de onde

partem os naufrágios quando

mudas as viagens trazem o mar

e finados são os filhos as luas

todas as mulheres são cruzes

punhos vapor e sentinelas

acordam várias lâminas de

passagem sobre o chão e a

pedra – fêmeas criam estirpes

de fria couraça e também

preparam a dura e lenta sorte

dos que perdem o medo e a

parte sedada de si. nas urnas

não adoecem mais as aves

lançam elas o corpo trançado

das labaredas. queimam os

obituários e as lapelas tidas

como cimento para o amor

e para os nomes.

2)

zona norte

não era adeus era

uma forma mais bruta

de se cansar da vida

não era perder porque

perdido muito já se sentia

tampouco era verão no

que seguia o curso de uma

avenida

éramos só nós duas selando

um arremesso como se eu só

pedisse clemência e abrisse

o sinal para outra curva.

não foi distância. foi um

corpo abaixo da sombra,

entre o suor temperado de

carne e a direção que não

pude indicar ao motorista

quando tomei aquele táxi

e te deixei ali para que

voasses para o retorno em que

exatamente te perdi.

3)

tantas vezes fui à igreja matriz

para pedir dinheiro, vagas e depois

a tua ida. na escadaria da penha

os degraus são calçados pelo peso

de quem carrega velas, dores e fitas

e nessa sorte sempre te levei comigo.

foram anos de longo subir. não sei

como se volta ao cimo duma pedra

depois que se sai da espera. lembro

apenas do nascimento de uma montanha

dessa imagem de paciência e calor no

seu núcleo.

os pés dos peregrinos são um retrato

exato do que pedem: sobre ti nunca

ultrapassei a nave dos mortos. e o

que inventei mesmo foi uma passagem

sem guia. algo como o que o orixás

e os santos levam nas mãos: um espelho

uma adaga uma rosa

por vezes uma chave sem rituais

ou aquilo que atravessa o corpo

depois da lança.

 

as fotografias de meses atrás acovardam

uma lápide sobre nós.

e na volta estavam lá

os calçados azuis

ao lado da cama

como se você estivesse sempre

para chegar.

4)

quem me tomou a casa sabia da

lamparina de fogo no seu centro

e desconfiava que dos utensílios

fossem traçadas quimeras de sabre.

quem me tomou a casa deixou apenas

a desconfiança das magas antes da

partida das ovelhas outra vez

em guarda para quebrar o sinal

dos cofres que ornei com folhas.

quem me tomou a casa encontrou

os dentes entre a carne e forjou

na hematose a janela sem vista

a jaula com fera descolorida.

quem me tomou a casa violou o

amor sobre as mesas porque me

trouxe um veneno para as orquídeas.

que me tomou a casa levou o seu

tamanho dividido entre caixas e

rasgou o meu membro pelos dias.

e como há tanto de pele nestas paredes

onde minha casa não está que não deixo

mais móveis, resguardos ou queixas.

quem me tomou a casa foi ao encontro

dos muros. lá condicionou-se ao

concreto.

CRIS DE SOUZA (19  ) poeta capixaba, estudou na Universidade Federal do Espírito Santo e vive em Vila Velha. Lançou este ano, em março, seu primeiro livro de poemas: Na Frente da Loucomotiva.

ELÉTRICA

Estou meio

Louca

 

Estou meio

Emotiva

 

Estou toda

Loucomotiva

 

PRETEXTO

Basta uma lua

E vira uivo

O verso

 

Basta um vinho

E vira verso

A uva

 

Basta um verso

E vira vasto

O resto

 

PRESCRIÇÃO

Não consegui

Livrar-me

Dos internos

Sintomas

 

Segui

Inflamando

Os devidos

Idiomas

 

De noite

Entre bulas

E bocas

 

Salvou-me

Um poema

Em coma

 

EM ÓRBITA

O poeta

Gira

 

Em torno

Da pauta

 

Feito

Espaçonauta

 

SIMBÓLICO

bilhete

para um sonho:

a sombra

só pode ser

sonâmbula

YASMIN NIGRI(1990) poeta carioca, crítica de arte, bacharel em filosofia pela UFF, onde atualmente cursa o mestrado na linha de estética e filosofia da arte. Trabalha com mediação educativa, artes visuais, oficinas de criação poética e performance. Escreve muito, lê mais ainda e é obcecada por documentários de arte. Além disso, é colaboradora da revista caliban e co-fundadora e integrante da disk musa.

CID 10 - S91.3

Em delírio fui copo

À espera do teu juízo

Fui esquecida

Largada no quarto

Durante sua festa

Virei cinzeiro

Estive imóvel e atenta

À espera do seu chute

Cortei seu pé

Fiz sangrar

Causei toda sorte de infortúnios

Da dor

Ao tétano

Nem cruzes ou credos puderam dar cabo

Até seu pé ser amputado

 

MANUAIS

A gente sabe que está vencendo no capitalismo

Quando nos procuram pra falar só de trabalho

 

Você me diria ah,

mas qual a necessidade disso

tudo que fazemos vira poesia, tem eco

 

Ao passo que eu ué,

você fez uma panela enorme de lentilhas essa semana

qual a necessidade de toda essa lentilha?

 

Essa desistência é provisória

Tudo será superado

Domingos transgênicos tabagismo danças húngaras

 

Talvez seja mesmo de aceitar

Que a toda hora há alguém traduzindo

— mal traduzido

Uma obra do Nietzsche

 

UM POEMA PARA OS ROLLING STONES

Quatro anos de graduação

Dois anos de mestrado

Seis anos de alemão

E quando vejo essa porta vermelha

Ainda quero pintá-la de preto

 

Não tenho mais paciência para amar

Talvez devesse praticar o zen budismo em Copacabana

Custa vinte reais a sessão de zen budismo em Copacabana

Eu não poderia praticar o zen budismo em Copacabana sendo mesquinha

Deixa pra lá começa sete da manhã o zen budismo em Copacabana

Não é que eu seja mesquinha é que eu não tenho pra dar mesmo

Tudo é uma questão de logística

 

Ando refletindo sobre estreitar relações com minha espiritualidade e

Fora da faixa de pedestres um carro em alta velocidade quase me atropela

—Tá maluca, quer morrer?

—Talvez eu queira sim, seu idiota!

 

Às vezes perguntas tolas me vêm à cabeça

Como assim você é fã dos Beatles

E atravessa fora da faixa

 

Às vezes pensamentos malignos me vêm à cabeça

Sabe o que cairia bem agora

Você de um prédio

 

MWAUHAUHAU

Eu queria evitar a fadiga e não pensar em você

Respeitar seu desejo de não poetizar mais você

Porque aqui você sai efetivamente diferente de quem você intenciona ser

A minha vingança é que todos os poemas de amor que te escrevi são ruins

Inclusive esse

E minha vontade é reunir todos eles e publicar com o título

Minha vingança será nunca te escrever um poema bom

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 02/10/2017 às 20h14



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