Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
17/04/2015 18h32
AS MULHERES POETAS...(59ª post)Claudia Alencar, Natália Barros,Vássia Silveira e Bianca Veloso

CLAUDIA ALENCAR (1950) poeta paulistana, atriz de teatro, cinema e tv, já publicou dois livros de pesquisas teatrais e lecionou artes cênicas.  Publicou 4 livros de poemas: Maga Neón (1988), Sutil Felicidade (2001), 50 Poemas escolhidos pelo autor (2004) e Refinamento e Loucura(2013) Foi militante da ALN e em 1972 foi presa e torturada.

MERA INQUILINA

Não sou meu corpo

apenas entrei nele

para meu conforto e confronto

Hoje senti

esse modus vivendi

 

Sou mera inquilina

Vejo através da retina

mas ela não sou eu

é simples janela

na qual me debruço

e estou

 

Casa não é inquilino

Obra de arte não é museu

Som não é violino

Corpo é só reflexo do Eu 

 

FRONTEIRAS

Uma só boca

para falar pouco

Dois ouvidos para ouvir mais

Uma

só Alma

para viver

entre a paixão e o caixão

 

EVA

Não tentes ouvir o que digo

tenta escutar o que sou

fica comigo

ouve meu silêncio

Extenso

Não te levarei ao paraíso

te levarei mais perto de ti

ao teu profundo sorriso

 

A FOTO

Mamãe, vestido de seda preto, luxo

batom rosa, salto alto

Linda

Meu irmão, calça curta azul-marinho

camisa branca, cabelo à escovinha

Eu, vestido curto de florzinha

rabo de cavalo, primeira sapatilha

Nós três, em casa, no topo da escada

Meu pai, embaixo, atrás da máquina

Sorria

NATÁLIA BARROS - (1963) poeta santista, é cantora, atriz e jardineira. Foi contemplada pelo Proac 2011 de literatura. Fez parte do grupo Luni como cantora e integrou o XPTO como atriz. Já foi reporter da TV Cultura e publicou apenas um livro com seus poemas, mini contos e ilustrações: Caligrafias, em 2012.

Cada vez mais : indignada

Cada vez mais : romântica

Cada vez mais : o êxtase perfura

Cada vez mais : a realidade dura

 

HUMANO

Tudo teima em se alterar

O de dentro quer sair

O de fora quer entrar

 

Mas se eu não me engano

Não seria isso

Ser humano ?

 

IN PETTO

Não estou nem sã nem salva

Sou alvo sou rubra sou negra

Com você fico pendular

Confundo os vícios

Piso em falso no precipício

Inverto a Terra e o Céu

Verto águas límpidas e turvas

Escapo do cadafalso

Feliz-para-sempre no início

Fundo uma nova religião

Onde o altar é meu ventre

Nas minhas orações digo: entre

Nas minhas relíquias

Guardo saudades

E entoando um mantra sagrado

Te aguardo

 

LEPIDÓPTERA

Sirvo para nada alguns dias, mas , mesmo

nesses dias , estou encarregada de salvar vidas.

Especializei-me em ouvir o chamado dos insetos,

preferencialmente de borboletas

Erráticas na janela, imaginam na vidraça

múltiplas possibilidades sem saídas

Asa mole em vidro duro, tanto bate até que morre.

Se não sou eu.

Senão sou eu, senão eu,

a iludida.

VÁSSIA SILVEIRA (1971) poeta paraense, nasceu em Belém, cresceu em Rio Branco e vive atualmente em Florianópolis. É jornalista, escreve cronicas, e literatura infantil. Febre terçã é seu primeiro livro de poemas(2013).

PERGUNTAS

Tu me perguntas, e eu digo sim.

Não precisas gritar às flores
nem acordar a vizinhança
pois é na tua quietude
que repousam meus sonhos.
 

Deixemos, portanto, que esse orvalho
molhe em silêncio as nossas peles e
que o frescor da aurora embale as almas
 

(não precisamos mais que isso).
 

Tu me perguntas, e eu digo sim:
minha casa é tua,
na medida em que entras devagarinho.

 

O CADERNO

No caderno da menina lia-se:

Há nas lesmas qualquer coisa de gente

e nas pedras uma vontade de sono

no caracol um desejo solitário de lar

nas plantas rasteiras uma fome de terra

e nos fins-de-tarde um cheiro de coisa velha

– como velhas são minhas tias, minha avó, minha mãe.

E sem saber mais da (i)mobilidade das coisas,

a menina fechou o caderno...

(ela desconhecia, mas sob seus pés, repousavam asas)

FIM DE CENA

Quando as luzes apagarem-se

E eu ficar a sós,

Dividirei com a dor

Do instante

A silenciosa lágrima

Que teimou

Em não ser vista.

 

E rasgarei, até o último fio,

As vestes que encobriram

Meu fracasso – empilhando, como peças de dominó,

Sonho após sonho.

 

Quando as luzes apagarem-se

E eu ficar a sós,

Acenderei o cigarro, quebrarei os copos

E andarei nua,

Sob a tempestade.

 

TEMPESTADE

A tempestade varreu

os quatro cantos da casa

deixou-a nua,

despida das lembranças

e dos cheiros.

 

Dos destroços da ilusão

salvou apenas o fino frasco

– aquele onde guardou

a saudade e o amor tranquilo

que arrasta para fora a lama e

faz com que os telhados

pareçam novamente um lar.

        

BIANCA VELLOSO  (1979) poeta gaúcha, cresceu e vive em Florianópolis. Optometrista por profissão, mãe por opção, escritora por paixão. É também programadora da Rádio Comunitária Campeche. Apresenta o “Sábado Arrastão”, um programa de entrevistas com foco em música e poesia.

LEIS DE MERCADO

não foi de uma vez só

foi pouco a pouco

 

ela era tão viva

tão bonita

tão autêntica

 

espalhava por aí

abraços, carícias

sonhos, cores,

beijos, fantasias

e possibilidades

 

não suportavam

vê-la tão leve, tão solta

tão cheia de amor

 

no primeiro dia

cortaram-lhe as asas

 

no segundo

arrancaram-lhe as cordas vocais

 

no terceiro

quebraram seus braços e pernas

 

no quarto

perfuraram-lhe os tímpanos

 

no quinto

furaram-lhe os olhos

 

no sexto

invadiram seu território

mais íntimo e mais sagrado

:

o sexo

 

no sétimo descansaram

 

agora é tarde

a liberdade está morta

 

RESISTÊNCIA

novembro de mil novecentos e setenta e nove

primavera no hemisfério sul

e era medo o que florescia

no jardim lá de casa

 

diziam que o pior já havia passado

mas a gente engolia ideais

e vomitava escuridões

a gente calava o que sentia

 

quando aqueles homens cinzas

levaram meus pais

deixaram no meu peito

esta pústula acesa

que carrego até hoje

 

criança exilada da infância

:

existo, resisto, insisto

 

O INDIZÍVEL

linda

feita de azuis

 

perto dela

 

o ar

 

é

 

r a r e f e i t o

 

deve ser mar

o que ela carrega dentro

 

quando me abraça

sinto o marulhar do mundo

 

o corpo inteiro vibra

 

e já não sei mais

o que é meu

e o que é dela

 

SOBRE O MEDO

medo do escuro

não tenho não

de fantasma?

também não!

de corda bamba?

precipício?

não!

 

sei acender estrelas

inventar sonhos

alçar voos

o que me mete medo

- de verdade -

é o mundo das certezas

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 17/04/2015 às 18h32
 
25/02/2015 16h25
AS MULHERES POETAS...(58ª POSTAGEM)

KATYUSCIA CARVALHO (1977) poeta pernambucana de raízes e dialeto, nasceu com as águas de março de 1977. É formada em letras e lecionou todo o tempo em que viveu no Brasil, desenvolvendo projetos de inserção de saraus de poesia em salas de aula. Emigrou por amor. Hoje, em terras helvéticas, estuda idiomas e escreve porque não sabe cantar.

Um dia encontrarão

os fósseis rupestres

de uma saliva

já extinta

 

virão tradutores

e ólogos e istas

 

capitalizarão:

 

[beijos cravejados na rocha]

 

e os poetas dirão:

a fotossíntese da pedra!

 

as ortodoxias

intoxicando tudo

implorarão o milagre da obra

de uma língua santa:

 

- uma palavra sua e seremos salvos!

 

pigmento inteligível para espécies vorazes

corroendo caverna

sanguinidade de sal

 

mas que lábios

que línguas

que linguística guerrilha

deixa fendas na fala?

 

como corpo sem carne

a linguagem não cala

só o homem sucumbe à ausência de órgãos

falência múltipla

 

na boca nunca insossa do tempo

 

MOLDURA PARA POEMA

Escrevo quadros

humanos quadros que não pinto

E que não pairam

: movimentos sem cenário

- Quadris!

Meu texto é sempre um corpo

 

PENUMBRA DA PONTE

Não há tela que o prenda

ou pincel que o retoque

é um rio onde passa uma sede por cima

:sede que afoga, e ninguém atravessa

 

é muito aquém de uma ponte que caia

é para além

é para longe a perder-se de vista

:linha inimaginária

 

é o prenúncio daquela que não se represa

que mora sem muros,

mas tem trepadeiras

:por onde subir para a copa de um sonho

 

o que ninguém vê

é o exílio em seus olhos

não demarca o caminho de volta com pedras

:amnésia de mapas

 

vai ter com uma índia, reaprende a rezar

e resigna os búzios

às vezes reparte poesia entre monges

:mas não se ajoelha

 

um nômade a ama,

com ele copula

e compõem heresias no alto da noite

:arregalam-se estrelas

 

Nas duas orelhas adorna risadas

e sabe ouvi-las até soluçar

estende tapetes à beira de um charco

:convite ao que é bento, batismo de barco

 

dá nome ao rio

nomeia com seiva suas iniciais

e sabe lhe ser sob a lua estuário

:só por isso perene

 

cabeceira do mundo na margem de lá

 

FAGULHA DE ESTRELA
escorre como areia um ciclo
de olhares
sem relevo

úmidos, colhidos do sereno
a quarteirões
de seus quadris

isadora duncan germina

enxames de têmporas sobre seu corpo
bruxuleiam
a um passo de vê-la dançar

 

ALE SAFRA(       ) poeta paulista, nascida em Santa Fé, publicou em revistas eletrônicas e faz parte do e-book Geração em 140 caracteres. Também teve poemas incluídos no livro É que os Hussardos chegam hoje . Seu primeiro livro, Dedos não Brocham, foi publicado em 2012. Escreve constantemente no blog que deu origem ao livro: dedosnaobrocham.blogspot.com

PARÊNTESES

essa poesia no silêncio das mãos

daquilo que toma, do gesto que suplica

e espera

 

sob as unhas um misto de sangue e terra

nos poros saltados dos ossos morros de saudades

e linhas inconstantes

 

há lembranças nessas mãos nos caminhos de nós

e atalhos afirmam: toda linha é uma utopia

 

(na dificuldade não segure nenhuma

esperança)

 

as mãos não mentem

mas apenas no que não dá

 

COISAS DE MENINA ENCERRADA

quando a prisão não é real, ela  é imaginária?

então somos todos prisioneiros?

 

quis saber mariquinha engaiolada

 

mas da minha língua presa,

da minha falta de entendimento

não voou palavra

 

PERGUNTE AOS PÉS

sapatos covas de paisagens

memória esquecida do pé

pisoteado coração na planta

não pulsa, marcha, sem pele

 

atos bárbaros no rasto

sapato enterra. calo

cegueira do laço

 

cada sapato adorna

a feiura do trajeto

nas rachaduras

parede dos pés

 

do sentir, da razão

ninguém perguntou aos pés:

onde está sua vontade?

em silêncio, lateja

deformidades do hábito

 

na caixa dos sapatos

um rascunho da mesma história

subserviente

 

areias repelem sapatos

alinhamento raro

mente, coração

e passo

 

MAIORIA DA MINORIA

sou mulher, negra, gay, árabe, ateia

tenho meu rosto desfigurado por ácido,
o corpo escondido por um manto negro
ou exposto como arranjo de mercadoria
sou pobre, deficiente, ignorada. escondida
meus olhos estão roxos e meus lábios cortados
vagina desrespeitada pelo absurdo
sou bela, rica, asiática, e mantida como escrava
atendo todos os rótulos: vadia, mãe, amante
louca, piranha, santa, vaca, puta, fofa e tô na rua
mesmo morta pela misoginia, pelo machismo e homofobia
pelos abortos clandestinos, em campos de refugiados
mesmo mosta por nascer menina, lána china
vivo na boca das meninas. todo suor do massacrante trabalho doméstico
é da minha testa que desce quando sou roubadas de mim
meu útero saqueado para gerar soldados e consumistas
meu corpo roubado por ser escrava sexual, rural e emocional
oito do três não é meu dia. piso em todas as rosas
ignoro todo parabéns. hoje é um dia triste
um trinta e oito apontado para meus olhos
esse dia estúpido não deve ter ares de festa
toda homenagem, presentes, abraços, é um ato violento
que banaliza todo sofrimento, discurso e movimento
ouça as mortas, sinta suas dores, elas são de todas nós
falem de mim, destas marcas aqui. deste roubo. deste assassinato
desta desunião criada entre eu e minhas iguais. destes deuses patriarcais
não sou vítima, sou roubada em todos os meus direitos de existir
mas sou mulher e tô na luta e sou todas as mulheres do mundo

agora, passado e futuro

 

PRISCILA MERIZZIO (1985) poeta paranaense, é formada em comunicação social, trabalhou como redatora em agências de propaganda e em jornalismo. Colabora com a Germina, Zunái, Eutomia, Mallarmagens, Jornal RelevO, Escritoras Suicidas e PoesiAudível. Publicou recentemente seu primeiro livro: Mínimoabismo, pela Patuá.

L’ENFANT TERRIBLE HIGHER THAN ANY OTHER

Ouço Lana Del Rey

compactuo com espíritos adolescentes

que nunca saíram de mim

axé de um corpo que não envelhece

 

o ventilador ricocheteia o ar quente de

Francisco Beltrão, Marmeleiro, Dois Vizinhos,

Londrina, Maringá, Foz do Iguaçu, Coronel Vivida

Presidente Prudente, Camboriú

 

O interior esmaece a paciência

de quem nasceu cosmopolita

obriga a fingir que é conivente

com o arreio das carolas de corpo

gatas velhas d’alma

 

Anões antropofágicos me cercam

sufocam-me com os bracinhos

e dentinhos cerrados

envolvem os próprios corpinhos

em lençóis brancos de OMO

 

apagam a chave geral de luz

caminham por meu apartamento

relincham de tanto rir

pequenos cavalos de Tróia

 

Cauterizo as verrugas dos dedos

fetos malformados da astronomia

unhas pintadas de azul cintilante

dichavo diversão e fuga

 

Lana Del Rey canta Blue Jeans

você beberica minha bílis

num copo de café pingado

intoxica sua asma e úlcera nervosa

no estado de São Paulo

 

os anões praticam nado aquático

na caixa d’água do prédio

 

No Candói

um piá despreocupado

engravida uma guria

de 16 anos

 

balzaquiana, chupo um picolé de coco e salto do interbairros

 

REFÚGIO

os deuses protegem meu corpo

como o tapume circunscreve a catedral gótica

 

múmias apoteóticas

via régia de papiros a.C.

refúgio do bardo pagão

 

na abóbada

longe das trincheiras da revolução francesa

homens verdes urinam

 

de mármore, rezas, artilharia e gana

faz-se o caos

 

os deuses protegem meu corpo

irrevogavelmente politeísta

como os índios costuram

palmeiras nas ocas

 

espectros melífluos batizados no círculo mágico

desmistificação de aporias

jesuítas poluíram rios amazônicos com água benta

botos-cor-de-rosa engravidaram índias com sêmen europeu

 

os deuses protegem meu corpo

com o apetite irascível

dos elefantes africanos que

acossam as fêmeas

 

avançam com peso e presas

estraçalham carros e pessoas

trombas bramindo:

“afastem-se do que é meu”.

 

D. R.

Miles Davis incentiva-me a seguir adiante

 

quanto pensei em você

pobre diaba acreditando

em palavras que mentem o dia inteiro

 

esta pequena mesa ao ar livre

em que faço, solitária, minha refeição

poderia ser um bistrô francês

 

no lugar dos velhos tarados da vizinhança

eu estaria cercada de jovens inexperientes

com os cabelos cheirando a cigarro

 

minha eterna alma de puta velha

canta Bethânia enquanto faz peeling

e aplica ácido retinoico no rosto

 

bebo suco de uva como se fosse vinho

não posso me render ao álcool

nem a outro vício qualquer

 

foi assim que meu tio morreu

navalha de quenga nas costas

fingindo fazer amor

 

falso vinho

falso sexo

 

por puro desânimo

adoecemos no pão mofo de cada dia

 

PEIXE FOR A D’ÁGUA

com a facilidade de um soldado que esmaga

a queratina de um louva-deus

você pisoteou as promessas

 

chegou a hora de atinar

e despedir-me da entressafra

de crises existenciais

 

puxo o fôlego de uma travessia

no Canal da Mancha

e nado contra a maré

 

finger-me  de boi para pertencer ao rebanho me exaure

 

MAR BECKER(1986) poeta gaúcha, é formada em filosofia, cursa especialização em epistemologia e metafísica e trabalha como professora. Publicou poemas nas revistas Zunái,  Germina, Pausa e Eutomia, no Portal Cronópios e em diversos blogs. Participou da Miniantologia Poética do Centro Cultural de São Paulo, organizada por Claudio Daniel, e publicou Perséfone, plaquete da coleção Poesia Viva.

ABREM-SE AS ASAS DOS CABELOS

abrem-se as asas

dos cabelos,

digo-te: rosa

(uma trança a se

desfazer)

-dos-

ventos.

que mãos bordaram-na?,

(o que tu sangras,

sussurro.

digo-te, ave escarlate,

ao pé das pétalas

que encalham

nos meus ombros

como se fossem coágulos

de areia,

conchas: as pérolas

dos brincos).

é outono, meu bem; ouve,

todas as peles

rangem.

 

AGOSTO – I

respinguei no vidro

da palavra que

fechaste,

da janela que em

tão pouco,

tão perto,

se calou dentro de

ti.

agosto, ainda.

muita chuva,

(mas nenhuma fresta

nos lábios,

um sopro, que

fosse,

nenhum silêncio

entreaberto

para que à noite meu

nome

adormeça no teu).

respinguei no vidro,

no para-

peito,

o coração logo atrás.

 

[COMEÇARIA DIZENDO...]

começaria dizendo o que não posso

que teus suores formam hieróglifos de sal na pele

e que um rosário misterioso se enrola a teus pulsos quando me amas

começaria dizendo que tua respiração tem vista para o mar

e que à noite me debruço ali, silenciosamente

meus cabelos de água-viva

minha língua de virgem

madrepérola

e que à noite

e que me debruço e morro

em tua respiração

 

O LIVRO ESCURO (I)
isadora duncan aparece em meu espelho
no lugar de mim
então me olha
e mostra
a língua. demoro a perceber que é uma língua em forma de ponteiro de relógio
(o que falta em meu próprio relógio, na parede da cama)
*
vai até a cozinha
eu sigo
o gás atravessa a mangueira discreta e pacientemente, como um segredo entre gerações. lembro que esse é o gás com que sylvia plath se suicidou
e que sylvia plath é a poeta que cita a echarpe
de isadora duncan
num poema que se chama
"40 graus de febre"
*
o silvo: a válvula-vulva da panela de pressão
girando
*
o ponteiro nenhum do relógio, girando
o corpo e o sangue
a roda do conversível

 


Publicado por Rubens Jardim em 25/02/2015 às 16h25
 
30/01/2015 01h34
AS MULHERES POETAS...(57ª POSTAGEM)

ANA RUSCHE (1979) poeta paulistana, formada em letras e direito pela Universidade de São Paulo. É mestre em direito internacional e doutoranda em estudos lingüísticos e literários em Inglês, ambos pela USP. Publicou os livros Rasgada (2005), Sarabanda (2007) e Nós que Adoramos um Documentário (2010).

pq se vc tem o coração de osso

o meu é de carne e sangue

e se vc tem receio de te roubarem um rim

azar pq tenho é dois

e eu vou cavalgar vou cavalgar

nos relinchos sem focinho

pq a noite é monstra

é ruminante é soturna

e está bem longe de acabar

 

ANORÉXICAS

emagrecer

extirpar a última gordura,

devolver as costelas emprestadas

e desintegrar-se em luz.

 

OS PAPÉIS

e assim ficamos

como tudo, como sempre

esse ever unfinished business

sem a coragem dum chefe da máfia pra te aprontar

na rua as vias de facto

como tudo e como sempre

with so much love

esse isso tão difícil, a kind of rush

um compromisso com algo mais terrível do que o

amor

o arrastado passar dos dias

 

O CORPO É UM CORPO

o corpo é um campo

de batalha

se diz faca diz faça

se diz toque diz toca

esconde encolhe esconde

meu campo é um campo

de batalha

de apanhadores

e quando se dirá

amanhecer flauta

águas-vivas líquens

piratas areia quente

e cavalos grávidos de mar?

: mais que nada se dirá

quando

um corpo for um corpo

um corpo for um corpo

um corpo é um corpo

um corpo é um corpo

BRUNA BEBER (1984) poeta carioca, nascida em Duque de Caxias e morando em São João do Meriti, sempre afastada dos centros do Rio. Desde 2007 vive em São Paulo. Publicou quatro livros de poemas:A fila sem fim dos demônios descontentes (2006), Balés(2009) , Rapapés & apupos (2010) e Rua da Padaria(2013).

SAISON EM ENFER

mlle verlaine

vai com estranhos

como vão as crianças

 

perturbar os médicos

para saber o que é

um estetoscópio

 

mlle verlaine

me ama infinito

como amam as crianças

 

mas não quer me ver

nem pintado

de Londres em 1872

 

quer me ver dormindo

doce

debaixo da terra.

 

NEIGHBORHOODS

se o mundo não fosse

esse aterro de

máquinas

barbas

pilhas

 

débitos

prazos

e canetas

marca-texto

 

medos

dúvidas

e embalagens

tetrapak

 

se o mundo não fosse

um aterro de babacas

ou se o mundo não fosse

um abrangente

e resumido

aterro de sinônimos

 

e se essa rua

se essa rua

fosse tua

eu ia me mudar pra lá.

 

LUDIBRIO

vou enterrar cada parte

junto ao rasto impreciso

dos mínimos sinais

 

e sobre cada indício

construir um cemitério

de notícias

 

qualquer dia apareça

de surpresa

como um soluço.

 

AMARO RIO

amar uma cidade

é como amar

uma mulher

 

os anéis e os nós

de suas raízes

arrancados a pente

 

o tamanho do sorriso

e os dentes sujos

de feijão

 

o cheiro e os olhos cor

de queimada na estrada

num dia de calor

 

e depois da chuva amar

as águas cinzas, depois

azuis e as águas mudas

 

as mãos hoje macias

as mãos amanhã secas

o doce veneno da convivência

 

é amar sua natureza completa

e só por isso conseguir

separar o lixo

 

amar uma cidade

é como amar

uma mulher

 

e esperar

que ela acorde viva

todos os dias.

 

RYANA GABECH (1985) poeta paulista, morou em Itajaí e vive em Florianópolis. Artista visual, é formada em Artes Plásticas pela Udesc e mestra em literatura pela UFSC, onde desenvolve trabalhos em poéticas sonora e visual. Publicou seu primeiro livro aos 15 anos: Mar e Avelãs (2001). Vieram depois: A data invisível do poema(2006) Trêmulo(livro-CD, 2008) e Álbum Vermelho (2010).

AGUARDE

Perto da roupa

que mofou

 

uma ausência

 

pronta para vestir

a incerteza

 

da sua volta

 

AVISO

Não sou

esta perna manchada

de sensualidade

 

Não sou essa mulher

que quer pegar você

 

Não sou a mulher que

quer ser consumida

por ninguém

eu não disse que

um dia seria

 

Não sou a bandida

que quer roubar aquilo

que veio com você

justamente com você

de outrem

 

Não sou essa mulher

de batom vermelho

e seios

e nádegas a mostra

 

Não quero nada que

eu não queira

com o meu corpo

 

Não quero que ninguém

me queira por nada

por me comprar

por me pagar,

não sou essa mulher

não sei se sou mulher

não sei se escolhi

estar na vitrine

não quero ser  amostra

 

Não sou esta que

coloca o zíper na garganta

pra alguém

vir abrir

 

se eu quero

eu abro

 

Não sou essa mulher

que quer a mais do que quer

eu apenas ponho

os pontos nos “ is”

é você quem não leu

direito

meu último

contexto

é você que não

entendeu nada

porque não quis entender,

é você quem não viu

porque eu estava presente.

 

E eu lá posso ser julgada

se eu escolhi

bem aquele

caminho

que você jamais traçaria,

sem culpa?

 

eu não sou isto

eu sou aquilo que você

acha que não pode acreditar

que sou

 

e eu falei muitas vezes,

e eu assinei muitas vezes

o contrato da verdade

 

quando errei

eu também confessei

e eu lá tenho culpa

que você tem medo

de eu

 

ser

 

eu?

 

BOMBA RELÓGIO

Clarice,

você removeu apenas uma

muleta

 

Eu,

joguei todas as minhas pernas

em uma janela folheada a ouro

no 12º andar

 

Estou nua na vida

sem corrimão, acesso, botão de desliga

bluetooth

apple

 

com apenas algumas aspirações

deixo a vida me atravessar

 

ancorei no deserto e tudo

me marcou tanto

que fiquei com medo de dizer seu nome

 

troquei o carro pela moto

convenci meu coração a desamar por ser um coração muito viciado

deixei a minha própria casa

fiquei familiarmente conhecida como louca

e braba

um bicho solto

sorridente e perigoso

 

Há um vago para onde fujo

mas é onde absolutamente já estou

 

Há anos venho tentando remover

as marcas de luta

no meu braço

 

E a agressividade dos meus gestos

definem o meu escudo

esse mesmo

que me impedirá para sempre

de cruzar o portal da leveza

 

o vácuo

não há remédio para o vazio

 

o eco

não há respostas

para as perguntas que as paredes fazem

 

para onde não sorri?

por onde escapar no caos

sem estancar a minha força?

 

Se é pra viver eu tenho que sonhar

 

Só isso aqui

não me basta.

 

Virei uma bomba relógio

e tenho medo

do meu silêncio

 

implodir.

 

ONÍRICA

Eu sonho tanto
e quando perguntam
que eu fiz na noite anterior

penso que estou dormindo.

 

LARA AMARAL (1986) poeta brasiliense, é jornalista. Publicou alguns poemas na coletânea Maria Clara: universos femininos. Inúmeros poemas de sua autoria têm circulado em espaços das redes sociais:  Revista Zunái,  Musa Rara, Mallarmargens, Ellenismos, Germina, entre outros. Seus textos podem ser encontrados em http://laramaral-teatrodavida.blogspot.com/

SEM FACE

Quando parte alguém

que te viu

de dentro, finda

a possibilidade de um amor                 

 

[há poucas, quase

nenhuma delas.]

 

Se resolve ir-se

para sempre, rui

a promessa: um beijo

em cada pálpebra

 

[não estive perto

o bastante.]

 

Conjurei o instante

de roçar os cílios...

escapam

agora entre meus dedos

 

[seus cachos

sem textura.]

LETARGIA

Amo como quem morre

Não de tanta entrega

Mas de deixar-se corroer

Para restar o silêncio de um corpo

E a falta do sentir

 

Escrevo como quem vive

Reencarnando personagens

Possivelmente mais tristes

Até que eu seja só partícula

De algo que não me reconheça

 

TESSITURA

acomodação têxtil

somos um

o sofá e eu

 

anca encaixada

em um dos braços

de apoio

 

somos o mesmo

na direção a fitar

até nesse sentir avesso

ao tampar-se com a manta

 

não de dormir, de assistir ao teto

ao rodapé

 

onde pousa fácil a vista

na filigrana raspada da parede

 

amanhã eu emasso e pinto

e saio daqui

não enquanto

ele e eu cobertos

 

dos dias evitando

o empoeiramento

 

VERSO INTRAGÁVEL

Numa hora dessas

eu abriria a porta da rua

sentaria ao sereno

e fumaria um cigarro

 

no entanto, sofro

de outro vício

 

acendo um poema

 

mas ele não me traga

nem me larga

 

deixo-o queimar.

 

 

 

 

 

 

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 30/01/2015 às 01h34
 
16/12/2014 19h42
AS MULHERES POETAS...(56ª POSTAGEM)

ANGELA MORAES SOUZA (1955) - poeta carioca, é arquiteta, artista plástica e vive em Florianópolis desde 1979. Participou de Antologias da Associação dos Cronistas, Poetas e Contistas Catarinenses, do Projeto Literário Delicatta V  e das Antologias Digitais: Sociedade dos Poetas Vivos 8 e Poesia para Mudar o Mundo 1. Publicou dois livros de poemas: Palavras Nuas(2002) e Um Fio de Seiva (2009).

VIVO SEM CASCA

Vivo sem casca

e sem tempero.

Crua.

Sinto meu sabor

natural.

Sem mel

nem sal.

Deliciosamente

crua.

 

QUANDO LEMBRO

Quando lembro

ontem

tua mão doce

afagando minha face,

pergunto:

Onde

em todos esses anos

tu a guardaste?

 

É LÁ

É lá, 
no silencioso vazio 
das profundezas da alma 
que a poesia canta, 
pura. 
Escuta.

 

JUSTO AGORA

Justo agora

quando a minha confiança

dá as mãos à coragem

e caminha a passos certos,

pois libertos,

tu não me acreditas.

E no entanto,

um novo rumo

está sendo aberto,

embora, como tudo,

incerto.  

ROSANA BANHAROLLI (1960) poeta paulista, é jornalista, já foi membro da Comissão de Literatura de Santo André (2011) e trabalha com coordenação e difusão de projetos culturais. Participa de várias antologias e já teve poemas e microcontos publicados na revista Piauí, Portal Literal, Caderno Pragmatha e outros. Foi uma das responsáveis pela criação e realização do 1º Fliparanapiacaba. Publicou Ventos de Chuva (2011) e o livro digital 3h30 ou quase isso (2013).

sei das bruxas

mas medro

vampiros e fogueiras

sou mulher

e sangro inquisiçoes

.....................................................................................

Num mundo ausente

De espelhos   abismos

Labirintos       absintos

Minha dor é pimenta

 

Sem dó e devaneios

 

Minha fuga é no travesseiro

Meu sonho é transpiração

Troquei  a fé  pelo remédio

 

Sou teimosa em pé.

 

RADIOGRAFIA

Tenho no desenho meu avesso

 

Ele vaza

Ele sempre escapa

E quando vejo o fosso

Me reconheço outrora

Do lado de fora

 

(OR) AÇÃO

Vertigens dogmáticas

Me levam ao chão

Onde lavo meus pecados

Em genuflexão

........................................................................................................

No auge de tempestuosa disputa

entre o corpo e a alma,

o baú, antes só visto através

da imagem refletida no espelho,

é finalmente aberto e

a luz começa a entrar.

 

A alma quer ser desvelada,

e o corpo hesita.

IRACEMA MACEDO(1970) poeta potiguar, formou-se em filosofia na UFRN e concluiu mestrado na mesma área na UFPB. Doutoramento foi feito na Unicamp. Alguns anos viveu em Ouro Preto e trabalhou na UFMG. Atualmente, é professora no Instituto Federal Fluminense, em Cabo Frio. Publicou Lance de Dardos(2000), Invenção de Eurídice (2004) e Poemas Inéditos e Outros Escolhidos ( 2010).

RÙSTICOS

cercas de arame farpado sob a chuva

alegria nas pedras do lajedo e nos alpendres

fogueira mítica acesa entre escritos rupestres

meninos e meninas nus dançando ao redor

coice de cavalo, vela acesa dentro da geladeira à gás,

açudes de água morna, cactos, carroças

estávamos todos lá antes da luz elétrica

preparados para perdas e recomeços

 

UM POMAR NO ESCURO

Marimbondos estalando pelo corpo

cacos de vidro verde sobre o muro

mínimos guardiões desse desejo

de furtar teus frutos

e desabotoar essas paredes,

calhas, luzes, rochedos

que dividem e separam

minhas chamas das tuas

 

DANDARA

Eu só acreditava em Drummond:

O amor chega tarde

Não conhecia o amor que fulgura sem aviso

esse que se sabe proibido

o amor que já se sabe perdido desde o início

Eu não acreditava no impossível

vinha tão sóbria, tão cheia de medidas

não conhecia o esplendor da queda

nem a violência dos abismos

 

IDÍLIO

Entre notícias antigas e muralhas

construí com você

um amor feito alucinadamente de palavras

Meus versos seduzem os seus

seus versos aliciam os meus

Coloquei nossos livros juntos na estante

para que se toquem

e se amem clandestinamente

durante as madrugadas

MARIANA BOTELHO( 1984 ) poeta mineira, nasceu na pequena Padre Paraíso, Vale Jequitinhonha. Abandonou o curso de letras “por temer conhecer demais tudo aquilo que amava” e se formou em educação física. Escreve poesia desde os 12 anos e publica seus escritos no blog suave coisa. Estreou em livro em 2010, com O silêncio Tange o Sino, com apresentação do poeta Carlos Vogt.

NASCENTE

córrego

cachoeira

ribeirão

 

eu choro

pra pertencer à paisagem

 

CASARÃO

no corredor o vai vem das

saias onde eu me

agarrei

 

no quintal o fantasma da

mangueira

 

no canto da sala a cadeira da minha

avó onde um dia

a dor me

esperará

 

INTIMIDADE

um pequeno itinerário de passos

uma claustrofobia acariciada

gente que todo dia me bate

à porta e entrega-me os

cílios meus que encontraram

na calçada...

 

o dedinho de uma linda preta

com quem dividir os cílios caídos

com quem dividir o medo

de não sobreviver e de sofrer

a violência das crianças na escola.

 

aquela voz grave todas as manhãs

todas as manhãs

aquele cheiro só

aquele cheiro de capim chovido

os olhos negros do meu pai

e uma cidade íntima

soluçando dentro de mim.

 

ESTAÇÃO

tenho um outono no corpo

de onde as

coisas

caem

 

vejo doçura nas roupas

espalhadas

pelo

chão


Publicado por Rubens Jardim em 16/12/2014 às 19h42
 
28/10/2014 13h06
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA(55ª postagem)

LUIZA OLIVEIRA (      ) ,poeta baiana, advogada, atriz, bailarina e socióloga. No teatro, já trabalhou com diretores como Antunes Filho e Naum Alves de Souza. Em 2011 lançou seu primeiro livro de poesias, Afetos Transgressores. O segundo, que deve se chamar Da menina que virou bicho está em fase de negociação com editoras. Luiza vive em São Paulo.

SEM GARANTIAS

pescoço duro

febres amarelas

sem dinheiro no bolso

amarga o dia que chega

 

roleta russa

e os meninos despencam dos morros

mato o jacaré

engulo o leãozinho

 

e sou fuzilado em praça pública

 

AMO...

Amo os loucos em suas santidades petrificadas, submersos em mistérios e alucinações.

Primitivos, inocentes, sem as cabeças amordaçadas.

Desfilam em pontes esgarçadas, sem egos.

Como meros figurantes num mundo

de estrelas obscuras, decadentes.

Em seu vazio ensurdecedor, batem asas salpicadas de louvor.

Mágicos da realidade, metamorfoseiam suas dores obscuras em espasmos solitários, dormem em berços enferrujados da hostilidade e do inconformismo.

 

Amo os inseguros, os deprimidos, os anoréxicos, os medrosos

[perdedores, fracos...

Enfim, os que não se compactuam com o brilho efêmero,

não se deslumbram com as luzes da ribalta, ficam no seu canto,

[em sussurros e meditação... únicos!

Em suas dores! Sem o vômito azedo do social...

Despedidos das luzes da ribalta, se encaminham para a

[cachoeira dos solitários,

em busca do banho da individuação...

Sem persona, sem caricaturas, se espremem na dor,

para irrigar o inusitado do acaso,

buscando intensidades que se cruzam no acontecer.

 

Amo a vida. Na sua androginia e bipolaridade... em todas as

[suas intensidades.

No seu frenesi orgiástico, em seus fluxos insanos e desdita, em sua desesperança e ócio, em sua magia e desencanto,

em suas disfunções, na sua escassez de vitórias e em amargas

[derrotas,

nos seus surtos psicodélicos, em sua desesperança e

[ambiguidade,

com todas as suas nuances e matizes, como ramalhetes de

[flores desfeitos.

Na sua cumplicidade e desafetos, com seus enigmas e embates, amo sobretudo, pela sua finitude e infinita generosidade.

 

VIRA-LATA

Chega

das caretices e dos puxa saquismos

das divindades caídas

dos reinos unidos fragmentados

dessa porra desse computador

 

Ai que saudades

 

das simplicidades sem vistorias

de águas paradas, porém,

livres e libertas

da negra do cachimbo

do sertão agreste

sem veredas

das tabernas

de Máximo Gorki

 

da merda sem parasitas

do homem

do humano

que escarrou e sujou o tempo

embaçou os vidros

com seu hálito fétido

 

medidas inexpressivas

fazem

essa espécie híbrida,

incapaz, sonolenta,

sorrir.

com seus dentes amarelados, cheio de cáries...

 

eu vou pra Tucumã

aliciar meus tormentos

dormir com as cabras

e fuder com os jumentos

 

O LEGADO DE MEU PAI

um canivete

uma calçadeira

e uma caixa de moedas antigas

 

um sonho

 

no boteco,

o seu truco

com amigos em boemias

 

seu brilho no jogo de bilhar

sua integridade

e seus bigodes a la Bievenido Granda

 

seus sapatos engrachados

suas gravatas listradas

e sua amorosidade ímpar

 

simplicidade, humanidade

trejeitos no caminhar

suas costas arcadas

 

pai! pai!

eu estou aqui

 

visto sua camisa e me sinto acolhida

em seu abraço e sua candura

TELMA SCHERER (1979 ) poeta gaúcha, é mestra em literatura e graduada em filosofia. Atua nas áreas de formação de escritores, criação literária e performance com adultos e crianças. Coordenou o Espaço Educativo da 6ª Bienal do Mercosul. Com o grupo Teia de Poesia, realiza saraus e oficinas de literatura. Publicou Desconjunto (2002),Rumor da Casa(2008) e Depois da Água (2014).Vive em Florianópolis.

Onisciente quer dizer: aquele que sabe a ciência

de olhar no escuro.

Escuro de brumas divisórias, escuro da sombra.

Seta que reluz pra dentro.

O gozo de se ver nesse espelhjo turvo.

E ser sem saber, prque é tateando que se conhece

um nascer para saber ter sido. Então clareira.

Onisciente quer dizer; nunca esbarrar com uma porta.

Abri-la.

NÃO SOU CATÓLICA

Minha alma vem de outros ancestrais.

E são tais, os meus companheiros,

que não nos dizemos nada.

Nem ais, nem mágoas,

nem vaidades e nem anseios.

Entendemo-nos.

Bater portas, fazer gritos,

verter brita no fundo dos olhos,

isso não é comigo.

Não sou católica,

mas minha alma é cheia de Palavras.

São elas que brilham

depois da escavação.

Estar certo

não adianta nada.

Escavem o certo e o errado,

mesquinhos aos olhos de Deus.

Deus esquece das mágoas vãs.

Porque Deus é maior que o mundo,

e menor.

Ele sabe de toda a história.

Não precisa contar piadas.

Deus não precisa

levantar a voz.

 

FRANCIS E A FUGA

carrego a pedra de gelo, o paralelepípedo, quase todos os dias.

só não sou sincera em momentos de diversão

quando juntos

difundimos os papeis, partilhamos as publicações,

damos pulos no vácuo. durante o resto do tempo

sou fria como linhas sobre linhas sobre linhas

quase sem espaço em branco.

são absurdos os abusos desses ângulos retos

a levar pelas calçadas muito comportadamente.

francis propõe a fuga pela frase: tudo é ensaio, e às vezes conduzir a nada

é que é um algo.

faço tanto e tento tudo

justo

porque os tornados me coabitam

e não fujo

................................................................................................................

um aperto de hora e meia

pode ser dia inteiro

 

o sol se intermezza

só nos meios

 

só quem se interessa

está inteiro

 

onde tanto dentro se desmorona

ao mínimo vento

ALESSANDRA CANTERO(1980) poeta paulista, (nasceu em São Vicente), é  licenciada em letras pela Universidade Paulista con Máster em Filologia Hispânica pela Universidade de Sevilha, Espanha. Publicou o livro de poesia Deslocamentos Líricos (2012).

sob o peito

sombra

um som

ínfimo

fissurando ao

infinito gelo

dum azul distante

e marinho

depois de um tempo de mar

anzol é âncora

 

ARGAMASSA

pedra

sobre

lado a lado

pedra

entalhe desigual

atrito

ruído

encaixe à força

de conflito

sobre, sob

lado a lado

frente a frente

pedras

queda livre

noit solta

castelo construído

pedras firmes

frágeis como vidro

 

ALZHEIMER

a casa

envelheceu

 

era imensa qdo pequena

 

agora não tem cabimento

 

é toda estreitura

e pó

 

mas foi sim, um dia,

e eu me lembro

 

a casa

com todos dentro

da minha vó

.................................................................................

útil para o desuso

eu

ñ conservo o pote vazio

bonito

do iogurte recém consumido

me recuso a reutilizar

 

eu ñ reciclo o lixo

eu me reduzo

a cultivar sicômoros

 

eu ñ aguardo

eu me recluso em meio a versos livres

sem socialidades

dialogo com o escuro sujo

do mundo

perecível sem consertvantes

inaproveitável para a próxima

e mais perene

geração futura

com a qual ñ contribuo

 

pq me salvo

como rascunho

 ANGELA CASTELO BRANCO (1977) mora em São Paulo, é mestre em Educação e membro do Atelier do Centro- SP (espaço interdisciplinar de formação em arte), atua na formação de educadores e artistas. Publicou 3 livros “Orações” (2008) “Oferenda” (2008) e “O que digo, O que me diz” (2009). Desenvolveu a Bolsa de Criação Literária Funarte em 2011. Foi contemplada pelo Proac 2011 de Publicação de Livros pela Secretaria Estadual de Cultura.

uma palavra em

baixo da

outra

 

página

a

página

 

aos poucos a

parte de cima

distancia-se

da parte de

baixo

 

verticaliza-se

a fala

o pensamento

-ascese-

 

e o sonho corre solto nos braços da horizontalidade

 

4.

Do Inabordável

eu já era

Nos alicerces da casa de batismo

Na maçaneta que destravava os dias

a procura pelo fio

— o desejo de amar o mundo —

5.

Da acídia

na encosta da  mulher

fios desencapados soldam  a ligadura

Destravo a fome e o fogo se instala em carne viva

sou beirada

 

ESFORÇO

Saber o tamanho de um pássaro disponível

andar sob a linha de pesca

deitar os olhos nas larvas que se enrolam

e o que se tem

 

Adequar o vestido para a ocasião de nascer

Nascer agora, sob uma espécie de ventania

Empurrando os mortos para os muros, murmúrios

 

Ócio divino do existir

Estudo as horas que se cercam de círculos

Ando com o pó de flor cingindo as ruas

e sei como duas orelhas se tocam no amor

 

Era por minha conta: raspar os restos de uma fome real e devolver no cio

qualquer prato de abelha quente

 


Publicado por Rubens Jardim em 28/10/2014 às 13h06



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