Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
07/10/2014 13h19
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA(54ª POSTAGEM)

SANDRA FONSECA(1961) poeta mineira, escreve desde a adolescência, é psicóloga e trabalha como terapeuta. Participa de alguns sites de literatura na internet e de antologias poéticas no Brasil e Portugal. Seu primeiro livro “Dez Violinos Marinhos e Uma Guitarra de Sal” foi publicado este ano, em setembro de 2014

É AQUI

É aqui

Onde toco as palavras

Que sei de mim

Alguma certeza

A alma contra a luz

Do dia

Os ossos, a carnadura

A leveza do ouvido

Colado à brisa

A canção que só a mim

Cabe silenciar

E a boca pausada

Se movimenta

E articula a beleza

Secreta e sedenta

O mistério da palavra

Ouvi

A poeia me canta

Por dentro

Como um pensamento

Como uma coisa imorredoura

Sangramento

Sem causa

E sem pausa

Arrastamento

É aqui

Que eu encho os meus olhos

De absurdo

E de espanto

É aqui que eu fecho os meus ouvidos

E canto

 

POESIA LÍQUIDA

Meu verso

Rompe veias, barreiras

Rio sem freios

Que me carrega

Sangra num fio

De água doce

 

Sangria louca

Que não se estanca

Palavra-lava

Que se derrama

Sem derradeiro

Ponto final

 

Meu verso

É vício

Ferida, carne viva

Renda e filigrana.

É remendo às pressas

Veneno, promessa

Desengano

 

É mel na boca

Sorrindo, a louca

Sonhando a lua

Correndo nua

Desaba inteira

Feito tempestade

Sobre a cidade

Meu coração

 

Meu verso

É lenda, profanação

De almas e sonhos

A fina dama, tonta

Obscena

Úmida, lânguida

Poesia líquida

 

MEMORÁVEL

Pousou sobre

As suas coxas

Era um frêmito

Um alvoroço de plumas

Penugens

Pelos

 

A boca sabia

A sal

A pele roçava nua

Abriu-se dócil

A intenção do ato

O que a língua fala

E o desejo

Compactua

 

Ligeiros

Ágeis espasmos

Estertores

De prata e espuma

A noite testemunhava

Plácida bruma

A cena memorável:

Um pássaro pousado

No ventre da lua.

 

TECEMOS

Tecemos

a vida

Como fio de seda,

Teia rara.

Fiamos

Da roca tosca,

Pouca,

Esse algodão,

Pura malha.

Tecido

Com suor

E lágrima,

Tessitura cara

Leve folha

Flor e asa

 

Construída

De afeto

Ilusão e fato

De repente

Afronta-nos

A falha

A pausa

Que a perda

Causa

Diante do olhar

Da dor

O dissabor

Nos cala

De onde surgirá

Nova manhã

Clara

E luz

Sobre a tua sala

 

De onde

Menos esperas

Recebes

Das mãos

Do menino-anjo da guarda

Preciosa senha

Em silêncio passada

E voltas

À antiga roca

Reaprende o ofício

Retornas

Ao teu fazer mais caro

Construir a malha

Contar tua história

Ora aprendiz

Ora senhora

Sempre co-autora

Criatura

De prima-obra...        

ELAINE PAUVOLID (1970) poeta carioca. Publicou: Brindei com mão serenata o sonho que tive duran­te minha noite-estrela... ( 1998), Leão lírico (2008) e O silêncio como contorno da mão (2011). Colaborou ativamente com resenhas literárias durante 10 anos (1999/2009) para jornais, como: O Globo e Jornal Commercio. Ultimamente também vem se dedicando às Artes visuais.

Escrevo e desenho

para pedir socorro,

mandar um sinal,

senão eu morro.

 

Alguém ouve o traço,

vê o grito e manda resposta.

 

Ou sou eu que leio, vejo, traço,

respondo e movo

o que não é novo.

 

NÓS

Quem sou, senão o misto de uma centena de gentes que correm?

Sou esta velha mineira,

ou a velha judia comunista?

Sou a filha da Ucrânia

ou a da França?

Tenho os traços da Itália, da Alemanha?

Sou a que guarda imagens da Guatemala,

de Espanha, do Peru e da Urca,

que não se define.

Gozo com Piazzola a entrar em mim

e o Villa entendo

quando ouço Cartola.

Tremo quando ouço falar em tortura,

estremeço diante da Copa.

Orgulho-me de Leila Diniz, de Elis.

Falo mal minha própria língua

e admiro Tolentino,

ou uma atriz de teatro idosa

quando tão bem a utilizam.

Divirto-me e aprendo com Jorge Amado,

compartilho da alegria autêntica de Caetano,

Meu queixo cai enquanto Paulo Coelho escreve.

Assisto a tudo isso

e tento esboçar o que percebo.

Conseguem escutar o que digo

quando escrevo-lhes poemas?

Espero que sim;

Que não esteja

falando para mim mesma.

 

trago-o,

fim

 

CARTA

Meu caro amigo,

estou cansada de tentar

fazer o correto;

tudo me desalinha.

Sigo, decerto,

sem a menor noção

do que é certo;

vou bem.

 

A VELA

                         A Gerardo Mello Mourão in memorian

Sólida, esqueci de ser eu mesma.

Areia, virei estrela.

Mas estrelas que são,

senão rasgos da luz nova?

 

Palavras utilizadas, lume.

Palavra, dobrada palavra.

Por minhas entranhas encontrá-la

dita e salgada, cristalizá-la.

Fechar os olhos, lembrar-me do mar.

O mar que lembra o fechar dos olhos

e o riso deles nos nossos ouvidos.

Vela acesa nas noites sonâmbulas.

Deixá-la queimar perene e calma,

transportando o silêncio para além,

prometendo a eternidade na chama

queimando, penitente,

a transmutar-se chama sempre,

queimando por dias, ensolarada

vela de insônia, do sem-nome.

Um homem que, podendo navegar

e cerrar os olhos, o faz serenamente.

 

JOANA CORONA (1982-2014) poeta paranaense, editora e artista visual. Foi mestre em literatura pela UFPR e viveu em Curitiba. Publicou o livro de bolso literário-visual OQ? (2006)em parceria com C. L. Salvaro. Também publicou fanzines coletivos, Potlatch (2 edições)e Lá (5º edição). Morreu, lamentavelmente, em março deste ano, aos 31 anos.

PETRÓLEO

sombra:
carne incorpórea colada no tempo.
corpo imaterial, ou a fisicalidade do ausente.
o negativo de uma materialidade anterior –
silhueta de fumaça na parede branca.

(o que se fotografa são fantasmas)

eu sou o livro-fogo que queima, negro.

estive sempre aqui (mas isso não é visível).
agora há o resquício,
e há também a imagem que me cria,
para que eu siga sendo
este outro.

agora sou um traço de pólvora.
 a fotografia-fuligem, a imagem-pó –

o livro-espectro.

ATRAVES AMENTO

rabo de sol sob o móvel, fixo.

na pele, manchas de calor e, flutuante,

a poeira dança à luz -

aleatória

tua existência, violenta

e aérea, cruzada na

minha. intransitória. imovível.

corpórea memória

metafísica.

lugar localizado entre

dois  - vácuo

dos corpos que nos atravessa.

 

ESFERA

lado a lado (e junto)

vida que me descobre

cada vez mais

nua.

descubro descoberta,

como ir ao

outro lado da tua

esfera

metade escuro-chumbo

metade prateada

de concreto luminoso

e aerado

atravesso, feito raio

numa reta enviesada

tua cidade

circular.

 

ENTARDECER

voam em bando.

estardalhaço.

feito vento nas folhas barulhentas.

as asas, simultâneas: tambores.

avoada, nem vê,

de perto.

o fim de tarde

sonoro

a manchar o céu (alaranjado)

com sua listra negra e ligeira.

NINA RIZZI, (1983) poeta paulista, vive atualmente em Fortaleza. Formada em arte dramática (ECA/USP) e história (UNESP), coordena o Centro de Artes 7 Setembro. Participa de saraus, festivais de arte, eventos literários e palestra sobre poesia, literatura, gênero e artes e é engajada em movimentos sociais como o MST e o Movimento Arrastão. Lançou em 2012 tambores pra n’zinga.

em lugar de poesia

então eu cruzo as pernas com essa cara falsificada de foda-se. chiarescuro.

entenda.

aquela ribanceira ficou toda assoreada e era tão escuro e tanto vento e tamanha solidão, que montanha despenquei forte escorregada, esses malditos sapatos de plástico roxo. nãnã de lama.

e você não estava lá pra me estender o braço esquerdo como bem-casadinho numa igreja de santa clara.

entendo.

suas pernas lazarentas e essa cara falsificada de te venero. chiarescuro.

e não estou numa igreja de são francisco pra te cuidar.

amor, ateu amor.

 

in:dependência

amor,

ah, desculpe, se te firo, digo

: amiga

 

(ainda que aqui permaneça

e seja sempre amor

uma parte-toda história minha,

e mais, hein

: o amor é meu e foda-se você

se não o quer,

é em mim que ele está

e independe de você)

 

então, amor,

é que comigo não tem essa

de se re-encantar do desencanto,

ou se está e quer e é

ou nada disso basta.

 

eu não sou brincadeira

(apesar de me-nina

sem eira nem beira)

: uma pipa que sobe em

altos ventos voos

cai no mormaço

e corta a linha

quando tão alta.

 

pode me chamar de

pândega, quadrada,

pandorga, pipa, papagaia

ou tudos que sonhar,

mas eu tenho um nome

muito meu, viu!

não sou um teu

iô-iô

que vaievem.

 

e aí

vo(u)o ou (r)acho-a?

 

outra variação, outra

 

em te sonhar fiquei tão santa

que agora pra me comer

só de joelhos.

 

sanguidolente

tenho dois homens ao meu lado. um me disputa com lembranças d’uma época em que só havia por comida xapati com açafrão e nossas ânsias; promessas d’um futuro.

o outro me vem com canções, essa sua carne que me quer poemas pra dentes.

há ainda um terceiro, o que me pega e tem, essa chuva. tardia chuva-súplica que não veio em dia de são josé. a chuva que me traz saudades de tudo que não vivi, símbolo desse homem que não está e me é. chuva-choro de mim. chuva-você que me cai, dono de todos os meus ais.

os dois primeiros me cospem, me rasgam. vão-me embora. fica o homem que me dói e gargalha.

mas não me restam autopiedades. é bom também doer. as cólicas hemorrágicas e as pedras na vesícula; o pedaço de ostra que me ficou por indolência no dedão do pé esquerdo; ter uma dezena de filhos de cócoras; não tomar drogas e ter os piores pesadelos.

dessa vida suicida, tudo: a morte lenta e dorida, a morte boa overdose de gozo. E os poemas impossíveis, que até chão seco dá semente.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 07/10/2014 às 13h19
 
11/09/2014 21h38
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (53ª POSTAGEM)

MARIA JOSÉ GIGLIO (1933) poeta paulista, publicou em sua trajetória de mais de 50 anos de poesia quase 20 livros. Versos a um Polichinelo (1958) registra a sua estréia. Participou de antologias e foi traduzida para o italiano, espanhol, inglês, francês e até hungaro. Ativista literária, organizou eventos, criou prêmios e fundou a casa do escritor(1982) em São Roque.  Outros livros da autora:  Labirinto(1964), 5 Elegias( 1972), Salmos abstratos(1974) e Não(1986).

OPUS VI

Ouço trovões como tubas

alardeando a chuva

 

Ouço glicínias

glissando

no terraço

 

e a natureza assente

ao drama de si mesma.

 

Ouço o silêncio do mundo.

 

OPUS XVII

Toca a vespa

no vidro fixo da janela

uma fuga impossível.

 

Rascante rumor de patas

na transparência falsa.

 

Escala repetida

sem escape ou pausa.

 

Em surdina

agora inútil

o par de asas.

FLASHE 12

Vazio e forma se equivalem.

Não falo de contornos
de pausas
mas de ausência.

Da paisagem engolfada
na garoa densa.

Do mundo inconsistente
que amarro em signos

quando também estou
em suspense
e para outro visor
inexisto.

IV
Planto três SSS

no limiar deste OUTONO

apesar da terra árida

e o tempo escasso.

 

Estação das cigarras

da carnação dos frutos

do afã dos casulos

sob as folhas ásperas.

 

Intermezzo

que fecha o ciclo, e reinicia.

 

No monturo

dos anos gastos

viceja, sim, rasteira

a melancolia.

MARINA COLASANTI (1937) poeta ítalo-brasileira, jornalista, escritora, roteirista e artista plástica. Recebeu quatro prêmios Jabutii: ­poesia, crônica e literatura infantil. O primeiro livro de poesia é Cada Bicho seu Capricho (1992).Na sequência vieram muitos outros: de contos, crônicas e de poesia infantil. Um dos mais recentes é Passageira em Trânsito (2009).

ANTES QUE

Preciso ler um bom poema antes

de dormir

antes que a noite escorra o

diário inventário das lembranças

antes que o sono cale a boca e olhar, antes

que o prumo caia

horizontal.

Preciso ler um bom poema antes

que seja tarde

que fique escuro

que chegue o frio.

Ler um bom poema

antes que a morte venha

e escreva o seu.

 

SEXTA-FEIRA À NOITE

Sexta-feira à noite

os homens acariciam o clitóris das esposas

com dedos molhados de saliva.

O mesmo gesto com que todos os dias

contam dinheiro papéis documentos

e folheiam nas revistas

a vida dos seus ídolos.

 

Sexta-feira à noite

os homens penetram suas esposas

com tédio e pênis.

O mesmo tédio com que todos os dias

enfiam o carro na garagem

o dedo no nariz

e metem a mão no bolso

para coçar o saco.

 

Sexta-feira à noite

os homens ressonam de borco

enquanto as mulheres no escuro

encaram seu destino

e sonham com o príncipe encantado.

 

PORTA DO ARMÁRIO ABERTA

Abro a porta do armário

como abro um diário,

a minha vida ali

dependurada

meu frusto cotidiano

sem segredos

intimidade exposta

que os botões não defendem

nem se veda nos bolsos,

espelho mais real que todo espelho

entregando à devassa

as medidas do corpo.

 

Armário

tabernáculo do quarto

que abro de manhã

como à janela

para sagrar o ritual do dia.

Sala de Barba Azul

coalhada de pingentes

longas saias e véus

emaranhados sem que sangue goteje.

Corpos decapitados

ausentes minhas mãos

dos murchos braços.

 

Do armário minhas roupas

me perseguem

como baú de herança ou

maldição.

Peles minhas pendentes

em repouso

silenciosas guardiãs

dos meus perfumes

tessituras de mim

mais delicadas

que a luz desbota

que o tempo gasta

que a traça rói

ainda assim durarão nos seus cabides

muito mais do que eu sobre meus ossos.

 

Nenhuma levarei.

Irei despida

deixando atrás de mim

a porta aberta.

 

A PAIXÃO DE SUA VIDA

Amava a morte

Mas não era correspondido

Tomou veneno

Atirou-se de pontes

Aspirou gás

Ela sempre ela o rejeitava

Recusando-lhe o abraço

 

Quando finalmente desistiu da paixão

Entregando-se à vida

A morte, enciumada

Estourou-lhe o peito

 

LILIAN GATTAZ(       ) poeta paulista, é psicanalista e contista. Seu livro  Mar de Dentro foi contemplado com o Proac na categoria revelação de autor inédito. Já teve poemas e contos premiados e já foi publicada na Europa e nos Estados Unidos.

DESISTÊNCIA

na ressaca de si mesmo

navegou até o final

e pulou horizonte abaixo

 

QUIMERA

todo cais

é uma alameda

de concreto vazado

que sempre me leva

para onde nunca vou.

 

DA FUGA DAS PALAVRAS

bem que eu queria te falar

que ainda deita comigo

o gosto acre da tua boca

e que a lembrança dos teus olhos

é o que fecha os meus

mas é bem aí que as palavras fogem

e às vezes

elas fogem para sempre.

 

boa noite,

volto ao encontro da memória.

 

P A U S A

paralisa o toque

ou toca Para  Elisa - ou para mim -

 

toca para mim teu toque doce

e trina em mim teus dedos ritmados

articula meu pneuma acelerado

 e me interpreta :

corpo da tua musicalidade inacabada

 

determina no teu passo meu compasso

que eu me cronometro no teu tempo

e na tua intensidade me penetro

e faço da tua pausa meu silêncio,

 

arranca do meu corpo já tocado

o som que esse meu corpo possa ter

e tem de haver nesse meu corpo arrepiado

o som exato para o teu excitamento

 

faço do meu corpo teu teclado

pra que toques na verdade que ele tem

e se a clareza do marfim te polariza

paralisa esse teu toque simplesmente

ou toca para Elisa - ainda que doa.

 

SU ANGELOTE(1957) poeta pernambucana, cursou Letras na Universidade  Católica de Pernambuco. Já escreveu romances, O Cruzeiro da Morte e Vidas em Conflito. É ativista cultural e contadora de histórias para crianças, levando a leitura para comunidades carentes. Seu livro de poemas ,Erótika(2008) já está em segunda edição.

GOZO
Cama vazia
Nenhuma calmaria
Tu me traia.

HAIKAI 2
O sol brilha
A noite emudece
Minha vida resplandece.

A FLOR DA PELE

Gemidos sem dores
Arfares de gula
Sem falso pudores.

PENSAMENTO IV
De todas as farsas que me transformo
Prefiro a poetisa
Que ama o desconhecido
Acata o impossível
E nunca teme o inevitável.

 


Publicado por Rubens Jardim em 11/09/2014 às 21h38
 
07/08/2014 13h03
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (52ª POSTAGEM)

CLEVANE PESSOA (1947) poeta potiguar, psicóloga e jornalista. Trabalhou na imprensa de Juiz de Fora, nos anos de chumbo da ditadura, mantendo a página Gente, Letras & Artes e a coluna diária Clevane Comenta. Já viveu em Belo Horizonte, São Luiz, São Paulo e Belém. Publicou vários livros de poemas: Asas de Água, Partes de Mim, Olhares teares,saberes e Erotíssima são alguns títulos.

CICLO

A fonte murmurante

O rio rumoroso

A cachoeira barulhenta

Todos errantes,

Participantes de uma orquestra

Cujo regente

Fica invisível à luz dos dias,

Oculto à luz do luar,

Torna-se dourado junto às luas claras...

Mais tarde, serão

Garoa

Neblina

Orvalho pranto:

Sutis presenças

Com lições de umidade,

De humildade,

De humanidade...

 

PREDIÇÃO

 O tempo é mesmo

esse contraste:

escorre entre a morte e a vida,

entre o ancestral e o devir.

Ascendentes e descendentes

Repetem-se

Ou

Transformam-se.

Os traços hereditários

Luzem na escuridão.

Os mutantes

Desafiam leis.

 

As novas crianças nascerão cantando.

 

THEORGASMIA

Desnuda parte do corpo, parte a alma

E oferece a Marte, o espelho de Vênus,

Onde observa a arte dos seios plenos

Bela, curiosa, intimorata e calma...

Em breve, dois deuses nus,

Deu-se o fato, o olfato se aprofunda,

A vulva, a pélvis, as nádegas,

O falo, o talo, a flor profunda.

Deus goza, enquanto, voyeur

De tempos imemoriais,

Interpreta todos os sinais.

E o esperma divino banha o casal,

Agora incapaz de distinguir o Bem do Mal.

 

SOB O SOL, DESPETALA-SE MAIS UM BRASILEIRO...

De frente para o Ministério das Minas e Energia, Eudes do Carmo Pereira da Silva pede uma vaga de emprego aos parlamentares e empresários que ali passavam, saindo da Aneel, na posse do novo Diretor da mesma.

Desempregado

despetalado (de si),

desarticulado(do sistema)

desacreditado (pela família)

o homem está

desesperado

não é mais esperado

para a sopa cotidiana,

para o corpo bem amado,

para o papo animado...

Eudes, prenome de herdeiro real,

submete-se à humilhação de pedir emprego

num cartaz cheio de erros de português.

Não foi bem educado.

Não possui poupança,

esse homem que já foi criança

e acreditou em seu país...

Que nos diz

a expressão desse homem em pé,

pousando para alguém, por uma fração

de segundo, esperançado?

Sua fração de minuto de glória

termina rapidamente.

No calor do veranico, um homem chamado Eudes,

(qual o descendente do imperador,

um dos De Orleans e Bragança),

com esse sobrenome que dá no Brasil

como banana em penca,

“Pereira da Silva”,

de sol tisnado

e totalmente cansado,

talvez com os pés inchados

 de muito caminhar

para lá, para cá,

aperta os olhos marejados

e em Brasília nem tem mar...

Será que nasceu dia de Nossa Senhora do Carmo, num dia 16 de julho?

Será que a mãe fez promessa

para que nascesse, ou quando nasceu?

Esse homem,com cara de honesto, escreve errado

mas tem um desejo certo:

quer trabalhar...

Quando será que vai começar o “desemprego Zero”?

Empregado, o brasileiro

teria fome?

Só se fosse de amor...

A pátriaindamadabrasil,

está cheia

de Eudes do Carmo...

Semi-analfabetos

famintos,

desestruturados,

das famílias separados,

“arrazarados”...

Enquanto isso, em Brasília,

“parlamentares e empresários

saíam da Aneel”.

Fazia sol de verão.

O homem desempregado suava.

Eles também, sob os ternos eternos

e as gravatas

que enforcam... Mas, enforcado

sem gravata alguma,

estava o homem sem emprego,

Eudes do Carmo.

Por ele, me armo

inutilmente embora, de Poesia,

pois os poetas também não são mais ouvidos...

ROSANA PICCOLO (1955) é poeta paulistana, formada em filosofia pela USP e em jornalismo pela Casper Líbero. Atua em publicidade. Estreou em 1999, com o livro de poemas em prosa Ruelas Profanas, seguido por Meio-Fio, Sopro de Vitrines e Refrão de Fuligem. Participou das antologias Paixão por São Paulo e Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 90, além de revistas literárias, como Zunái, Mallarmargens, Alguma Poesia, Zona da Palavra, entre outros.

ESCULTURA VIVA

previsível bailarina

torneada pela brisa

 

sapatilhas

dois piões acetinados

giram por qualquer trocado

 

um segundo

e ao encanto retornam

 

tendões de mármore branco

 

ela

ou as águas do lago

 

sem cílios

 

nem cigarros da neblina

 

onde dorme o cisne

MALLEUS ARBORIBUS

Em torno de meia hora. Basta a pétala do fósforo, bolhas na pele.

Tudo começa no cio do archote, basta a árvore. Raízes como artelhos retorcidos, donde partem as chamas, e apressadas, e rumo à coroa de plumas acesas.

Mau pressentimento na dormência da semente, sardas do fogo. Na língua das folhas a praga obscena e um surto de gritos. Irritam-se os dedos volúveis da fumaça. Formam pentes, pentagramas, gatos negros indolentes sobre a queimadura das copas.

Ela tem poderes e poções – é o que dizem. Faz do galho ressequido a vassoura apavorante – ou bonecas alfinetadas. Dizem guardar o livro das sombras, chamuscado por faísca de um halo de punhais. Alumiam demônios, fugitivos da mata vestida em labaredas, como uma bruxa queimada.

CURSO NOTURNO

Derrame de ruazinhas, cheirando à erva perto dos botecos, dá na porta de uma escola. Nela existe um corredor, cego de fumaça, há uma sala de aula. A luz denuncia a goteira no teto. E se acaba sobre a lousa, difícil de se ler.

Tomadas várias queimaram. E a aula de inglês calou músicas. É junho. Faz frio. Sabe-se de quem tomou caderno no meio da orelha. Dos dedos da mão, quebrados, quando esse alguém revidou.

Ruazinhas de perifa, cheirando à cola e cigarro, dão no pátio de uma escola. Nos intervalos, emergem coreografias, sonha-se ser rapper, vocalista de pagode – passam duas meninas grávidas.

É junho. Faz frio. Outra bomba explode. Muitos se encolhem na sala de história. Onde a vidraça é partida, e a porta não fecha, há uma corrente irascível de ar. Sabe-se de alguém que levou bala na garupa de uma Honda, vacilou. Sabe-se do preço de um calibre 22, faz frio.

A chamada se interrompe. É junho, outro apagão. Há quem faça striptease, há quem imite cachorro, há quem suspenda o resto das aulas. Ruazinhas escuras, cheirando a perfume e pó, alunos saem – lembram bem ratazanas, netas da noite, roendo a cara de susto da lua.

PINÇAS DA MORTE

Quando olhei o mundo lá de cima, vi um terrível caranguejo.

As patas luziam como metralhadoras, cresciam

e cresciam e cada uma disparando

6.000 relâmpagos ________ por minuto.

Ardia na carapaça uma estrela de Davi. Deformada, é verdade

(o peso das quelas vermelhas de fogo)

 

Esmagaram duas cidades ________

mulheres lavavam panelas, crianças sujavam os pés na rua________

os velhos colavam o ouvido numa rádio reticente

para se deitar depois

à luz de velas usadas, duas cidades

 

do cedro vi queimada a semente, com a roupa rasgada

partirem anjos tal flocos de neve

os pássaros debandaram ________

 

menos a dor

pombo retraído sem uma das asas

esse ficou

SUZANA VARGAS (1955) poeta gaúcha, autora de literatura infantil e ensaísta, possui 16 livros publicados. Ativista cultural, criou o projeto Rodas de Leitura, pioneiro no Brasil e a Estação das Letras, oficinas de leitura e escrita, que coordena e dirige. É mestre em teoria literária e tem poemas traduzidos na Itália, nos Estados Unidos e na Argentina. Entre seus livros de poemas, destacamos: Sombras Chinesas (1990), Caderno de Outono (1998) e O Amor é Vermelho (2005)

MOMENTO

Santos

todos os mistérios da casa.

 

Entre a chuva e o resto de feijão

na vasilha

escrevo um verso.

 

No minuto a seguir tem o emprego

a cidade, seus ritos,

tem mais:

Uma vontade danada de ficar por aqui.

 

O escritório é uma bateria

de burocracias:

Tem o escriba sério

de capa e guarda-chuva

mais um milhão de livros.

 

...Só que estou interessada

em outras coisas:

acertar o ponto do arroz,

por exemplo

 

e nem uma biblioteca inteira vai me dizer como é.

A CASA

Não só digo adeus

aos teus dois quartos

a sala ampla

a uma rede sonhada na janela

 

Digo adeus aos teus cheiros

a estas baratas

que vez por outra te rondaram.

 

Campainhas, telefones,

brigas e remédios ficarão para trás

além dos sustos.

 

E digo adeus aos fantasmas

que te cercam

Também aos teus arbustos.

 

E quando uma volta na chave

te fizer silêncio

Digo adeus aos teus ruídos

peregrinos

              ecos

 

Movimentos mais amenos

                                       do tempo.

ORTOPÉDICA

Nada como não ter pés

Para valorizar sapatos.

 

Já sei que não é novo:

o provérbio é mais ou menos

chinês,

e mais ou menos

meu

 

Descobri caminhando

BANDAID

Moça debruçada na janela,

como é bonito vê-la através

de tantos carros passeando na avenida,

e tendo ao fundo a luz mortiça

de desbotadas paredes

onde repousam tantos tesouros

do tempo - a velha foto da avó -

um poster da seleção,

 ainda com Garrincha

 

Você se recosta

e equilibra

toda a loucura do universo

num só braço

o outro cruza

em direção às flores mortas

de um vaso alto e antigo,

desejoso de festas.

 

O sobrado se desgasta,

alguns musgos

o guardam.

No alto,

em letras ancestrais, está escrito - HOTEL -

e quase opacas.

Em baixo,

o luminoso

onde se lê - farmácia -

 

Fique aí,

fixe aí, você

que não sei de onde vem,

que não sabe onde está,

de quem desconheço a história

Mas que pertence ao sobrado,

ao Estado,

ao país.

Longos cabelos negros,

os pensamentos tão longos

presos nos carros que passam - Fique -

com seu bisavô na parede,

a tinta rosa mofando seus vitrais.

 

Enquanto logo abaixo

dos pêlos do seu braço,

o luminoso pisca

pisca e pisca,

Ainda dentro deste século.

REGINA MELLO (1959) poeta mineira e artista plástica, vive e trabalha em Belo Horizonte. Com perfil multidisciplinar, realizou 63 exposições individuais e coletivas, nacionais e internacionais. Publicou dois livros/escultura de poesia Livro de Vidro I e II (2004/2005). É autora dos livros de poema Cinquenta (2010), e Passos Partidos. Fundadora e diretora do Museu Nacional da Poesia – MUNAP, desde 2006. Curadora e idealizadora dos projetos: Galeria da Árvore, Sementes de Poesia, Ecolivro Brasil, entre outros.

Tem formigas andando no céu

Estrelas brilhando no chão

Se você pisca não vê

Se você fica não lê

 

São bolhas de sabão ao léu

Vidros quebrados em vão

Pisca e lê

Fica e vê

As formigas agora voam

REICHSTAG

Com um olhar tétrico

Prateado

O mundo e eu

Contemplamos

Um deus todo poderoso

Criado por Christo

..............................................................................

 

Condicionados

a rótulos

bulas

guias

mapas

cadastros

etiquetas

manuais

listas

regras

gráficos

catálogos

leis

instruções...

onde fica nossa liberdade de pensamento?

VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA

Desconectada

Parada

Armada

Magoada

 

Desesperada

Privada

Amada

Machucada

 

Disparada

Pesada

Adorada

Mirada

 

Desligada

Pirada

Atirada

Melindrada

 


Publicado por Rubens Jardim em 07/08/2014 às 13h03
 
07/07/2014 20h06
AS MULHERES POETAS na literatura brasileira (51ª postagem)

BEATRIZ BAJO (1980) poeta paulistana, revisora, tradutora e professora de língua portuguesa e literatura. Publicou A face do fogo (2010), e a A palavra é (2010). Possui um blog na rede (http://lindagraal.blogspot.com/) e divide com Marcelo Ariel a manutenção de Esquina Literária. Morou 17 anos no Rio e vive há 5 em Londrina.

POR UM TRIZ

quando ele me pega 

fora de cena 

escorrego no sol raiado 

rosa-dos-ventos hasteada 

leque tremeluzindo tod´água 

vida é segurar por um triz 

transversando 

enfiando e fiando 

a tração sobre os nós

LUX

um homem constrói sua mulher

pela beira de si, pilares

altares de singelezas

arquitetados de aleluias

 

por milênios dentro

dos momentos

acende colunas e

tonifica músculos

no peito aberto

para o sempre

 

inventa hélices

alianças

amálgamas

 

assim

eternamente

apalavrados

- no franco

caminho

de seus corpos –

despertam a linguagem

intraverbal

que os ultrapassa:

 

“nós

nos

vivemos”

O PÃO DA VIDA

dias de trigo são mastigados com os dentes insanos das tardes

quentes como o despetalar dos ossos, quase roídos,

quando, há mais esconderijos do que óculos escuros

o olhar é um grão a ser colhido

no seio do solo, no sol do futuro

 

cada mordida no dia transfigura-se em amarelo maduro

…………………………………………………………………………………………

dentro de 15h há uma criança que grita

dentro de 15h há uma criança que grita, engatinha até a beira da minha saia e arranca-a com seus dentes de leite...

precipício de mordiscar anseios encarnados em cada novelo de linha de lã em cada fio de cabelo segredado

bebê atrevido de lamber meus seios e cuidar de eu derreter-me por ele permanecer íntegro e carente do que posso oferecer-lhe. Não faço outra coisa senão cuidá-lo para que não se machuque, não vá até a janela sozinho...tenho medo de imaginar suas quedas. seus ruídos e sussurros são inconfundíveis...ele comunica-se naquela língua dos anjos e sou toda trepidação quando o ouço. Ele olha-me com as bilhas do saber anterior...e sacode com os lábios um oráculo de cristal. Ele aperta minhas coxas querendo colo e eu cedo incessantemente. Acho que ele nasceu para morar no que eu sou, toda derramamento...quero alimentá-lo da minha umidade a fim de que ele viva de esquentar os vãos com seus dedos audazes e delicados.

E o bebê vem beijando-me com essa maciez, seguindo os passos do que vem chegando...

existe falta na imensidão

ROBERTA FERRAZ ( 1980 ) poeta paulistana, estudou letras na PUC e história na USP. Publicou em 2003 seu primeiro livro, de contos, Desfiladeiro. É mestre em literatura portuguesa e ganhou em 2008, o prêmio do Programa Nascente da USP, com seu livro de poemas Lacrimatório, Enócoas (2009). Publicou Fio, Fenda e Falésia(2010) em parceria com Érica Zíngano e Renata Huber.

RONDÓ DE ABERTURA

um molar de saturno, várzea

melódica entupindo as tripas, frágua

morna da antemanhã – sucessivo

lento

 

molar enfreado, música de tirar

casacos das feridas, germes tenros

dos defeitos o casto caimento

sobre o timo

 

molar que sulca tua lúcida

sorte para contas dizíveis:

as cores do chumbo – molar

estivador, forja de gatunos

atraentes à pedra

                        (do bolso esquerdo)

                        enfiada ao fundo

 

um molar de saturno – criança

te prometem os teus vinte e nove

danos

SAPHO

O meu amor, quando é amor

é excesso

E morre

 

Um pé sobre o penhasco

abaixo todo o mar

centrípeto

 

sua sombra, volume

de pender o fundo

vermelhidão e escolha

 

Expande o delírio

feminino

ininterrupto

o mar de suas mulheres

seus ramos do escuro

 

Entre o lábio e a sola

a precisão do penhasco:

raja os amores

o sexo

o manto

 

meu amor, quando é amor

é excesso

E morre

OFÍCIO MÊNÁDICO I

Quando pões-te galgo ininterrupto

                        vigilância do corpo      

                        erodindo o corpo

teu olhar esférico rodeia meu flanco

enxaguado dos tempos

tu me banhas rodopiando

            os quadris siameses

e te arranho a órbita dos milagres

 

então o assomo

            o nunca pensado

chego em teu perto

e nos fitamos

 

                        quem é esse

                                   que é outro

                                   que me desce

                        absorto sem ciência

                        conduto doutro corpo

                                  ao corpo meu

                                   meu horto

 

                        então o assombro

                        luminescência do

                                               deus?

                       

no teu gozo

            reconheço-me

a outra ainda

eu

SAPHO

 A  Sophia, à Dora

... e perto dos templos derruídos,

a respiração do velho Mar...”

(Dora Ferreira da Silva, Hídrias)

 

Cabeça amendoada inclino-me ao seio

festejo silêncio e brecha

vento abrindo o véu que o guardava

pende o tecido em oferenda e eu

inclino-a e acendo

um riso ensimesmado

 

o que perturbaria?

o colar de ouro o colo

cravejado com juras e sinais

a serpente aninhada ao pulso

o gesto de estar

sedutoramente para dentro

sentada neste penhasco e tendo

a calda do tecido ventando em mim –

o mar

satisfeito

 

com lira ao lado

a antiga tartaruga de Hermes

o gozo fundo de Apolo,

Sapho

 

faixa nos cabelos, prensas

fivelas a deixar livre o pendor

de tecer sobre os ombros

costas delicadas seios

um coração dependurado em cada

escuta, e é em ti que movo

mar amante

 

dentro de mim entregue refeito

apareço a sorrir – e olho-te

não vês que olho

 

e diretamente só olho a ti

 

(ao redor da estátua

Outra mulher sedenta do contato

– primeiros olhos de ressaca –

fixa taxativa, a negação aos visitantes:

o pólen de guardar o tempo, dentro de caixas

brancas e ameaças

as substâncias incólumes

o interdito do tato

a macular as estátuas)

 

 

o rosto um triângulo

os cabelos trigais adocicados

e é em mim que me chamo

chamando-te mar

amante

leda mão absolutamente

em concha

sabe o fim das pernas

coleadas  em mel, hastes

de vime e vinha, urna ritualística

do desejo

 

ser este poço em perfeita calma

culminada de estratégia e de perícia

címbalo convulsivo, pedraria alva

serpente em  riste a untar um pulso

antes ou depois de cantar

antes ou depois que cante

canto azul marinho, pinheirais, distância

e clara

 

repousa a natureza a satisfazer-me em sono

 

repleta de iguarias

o olhar marmóreo o busto

ao contrapelo do tangível

lira cornucópia de um couro

exposto e esconso

feito para ti e de ti oculto

 

são sete as cordas da lira

e o labirinto no casco que

o colcheio do som abriga

 

invento

um rio com apenas este gesto

uma inclinação de cabeça, um Tejo

este aprumo de puro arder

 

estrondo mortalmente silencioso

dedico-te ou me olho

ao busto meu levemente ácido

no vento alto desta falésia

não saberás?

 

tem ainda a lira Dioniso

seus cachos rugidos escorrendo

pela lateral do leste

 

ergue firme mão direita e circunda

a taça a qualquer imagem que voe

e agrada sentar-se ali nos despojos

de uma cria de pantera, homens e mares

junto à mão, a taça

à cintura, dentro dela

bebendo

o pássaro entusiasmado

 

é esta a pureza das pombas

 

curvar-se alta para o poço

do que impele Baco

atrás de ti, Sapho

de mim, à frente

desmembrada a querela dos triângulos

nas noites quentes longas afiadas

nus em bosque indistinto

e sagradas

 

a taça de Dioniso o ventre

de Sapho a lira

de uma noite

inquebrantável

 

protejo, projeto, não saberás

se ajeito os olhos no colo do firmamento

ou se fito quão longe do mar

o repouso agitado de teus membros

 

não saberás, tenho os olhos claros

 

e este declive em minha face

 

enlaça dedicada maneira

de entoar a lira com a lira

deitada ao lado

ROBERTA TOSTES DANIEL (1981) poeta carioca, tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Zunái, Musa Rara, Diversos Afins, além de blogs e no site do Centro Cultural São Paulo. Incluída nas antologias: Desvio para o Vermelho, Amar, verbo atemporal e História Íntima da Leitura. 

pão cego da poesia -

mastigo o ermo das palavras
quando não quero dizê-las

estendo os braços, frágeis de sentido 
por algo como a luz. ou a fome

ANÍMICO ANIMAL

Petrificado pelas sensações.

Um bicho. Transmuta

Dor de si. Calcário,

Prende no rosto da rocha

Um reino de pesar. Pensa

Sob seu magma, sente

A poeira nas formas:

Sedimentária magia.

Requenta um passado

De fome. Um nome

Sublima a meninice do homem.

O anímico animal crava os dentes

No sangue da rosa. O peito

Como o diabo gosta:

Santa candeia de artérias.

Um servo: de querer bem ao corpo;

Um passo: rumo a tudo que varre;

Um sopro: de abismo e de glória.

Poente, um deus que venta o rio.

Senhor de fogo, de frio,

Ferve o eterno.

Verve do querer.

…………………………………………………………………………..

o medo entrará em nossa casa
nos recortando
como num conto de Cortázar

não saberemos por quê
por fim, foragidos
do perímetro de um país 
o coração
na saudade eloquente e pagã
forjada nas distâncias 
das coisas não paridas
- mesmo partidas
as coisas têm um nome
ouço
os espaços vagos
do dia em que nascemos

VIGÉSIMO ANDAR

Tenho dias de ficar entorpecida

com as montanhas, em parte alguma.

Alargada pelas florestas, onde a verticalidade
varia como o câmbio – flutuo

sem pés nem asas pela chacina
de elevadores que incomunicam

o alto, sem confidências.

ELISA ANDRADE BUZZO(1981) poeta paulistana, é formada em jornalismo pela ECA, com especializações em edição de livros e jornalismo literário. Se lá no sol (2005) foi seu livro de estréia. Em seguida, participou de antologias no Brasil e no exterior. Trabalhou na Radiobrás, revista Cult, edição brasileira do Le Monde diplomatique. Seu último livro, Vário Som, foi finalista do Prêmio Jabuti.

nas malocas no cais sodré

                                    faltam reboco e corti-

nado sobeja amor pombas fofocam a vida por

detrás dos vidros das alturas me contam as

novidades elogio a beleza de suas penas verdes

rubras as patas flexionadas sentinelas tão se-

guras de si não jogo tranças nem alpiste como

esta grade é baixa vertigens acometem quem

se aproxima demais do abismo

AMÉRICA

É preciso amar rapidamente

ler todos os livros interessantes

pintar os quadros com urgência

transformar toda farinha em pão

registrar todos os sentimentos

 

antes que as cabeças sejam cortadas.

CIDADE ÁCIDA

palco de horrores e amores

solmáforo acusando:

 

raios peligrosamente UV

 

(perigo! perigo! peles brancas

e azuis)

 

olhos fechados

a luz não queima

 

atravessa

 

cidade ácida

vem me incendiar

CARPE DIEM

Guardarei meu dinheiro

Comprarei roupas caras

Comerei camarão

Estalarei meus dentes

Mentirei vez ou outra

Baterei por prazer

Trairei em lençóis brancos

 

Aceitarei comissão

Comerei caviar

Ganharei notas verdes

jogos, dados vermelhos

Pagarei por vestidos

cada vez mais vazios

 

Quantitativamente

cumularei arrobas

engolirei peixes frágeis

com serena feição,

discursos inflamados

 

Esmagarei um pássaro

contra minhas mãos duras

Cantarei como um bardo

falsas canções de amor

 

Tomarei vitaminas

maquiarei rugas, marcas

vida desenxabida

 

lenço sujo a torcer

Sujarei camas vazias

 

Traindo a mim mesmo.


Publicado por Rubens Jardim em 07/07/2014 às 20h06
 
04/06/2014 18h59
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (50ª postagem)

LEILA GUENTHER (1976) poeta catarinense, é formada em letras e estreou em 2006 com o livro de contos O voo noturno das galinhas , traduzido posteriormente para espanhol e lançado no Peru. Participou como contista de várias antologias e em 2012 foi selecionada no Programa Petrobras Cultural com o livro de poemas Viagem a um deserto interior.  

ANA CRISTINA CÉSAR

eu também me mato

todos os dias

às três horas da tarde.

depois

volto às mesmas coisas

de sempre

até pensar de novo

na minha próxima morte.

 

LESS

nunca tive um lugar que fosse meu.

o que tenho são mochilas, caixas de papelão, objetos descartáveis

                                                     [usados inúmeras vezes.

me resguardo atrás das paredes frágeis de embalagens e sacolas de

                                                                         [plástico.

quando acordo durante a noite, é sempre em outro lugar. Um dia a

              [porta fica à direita; no outro, a cama é estreita. Às vezes

                                [esbarro em objetos que surgem do vazio.

nunca tive para onde voltar. Não lembro como é tomar água em copo.

vivo nos livros. Os que estão guardados, longe. Fiz deles minha

              [casa. Construo com páginas e paciência o teto, as janelas,

                                                               [o minúsculo quintal.

já faz tempo que a escova de dentes não habita uma gaveta.

já faz muito tempo que desaprendi a utilidade dos cabides.

MUSHIN

quando se desfaz a teia do sim e do não
como saber se aquele que mata 
não é o mesmo que é morto?

YÚGEN

dentro da terra é inverno
quando na superfície é primavera
e quando no centro floresce
fora é verão

o interior abriga a memória
de algo que já foi.

como um pensamento 
que já teve um corpo

 

ALINE BINNS (1981) poeta, produtora de cenários e ilustradora, faz parte do grupo Poesia Maloqueirista, criado a partir de leitura de poemas feitas em bares de Paraty na Flip de 2005.

A SELVA

Nas profundezas de minhas paixões sinceras

Onde não existe o ecoar das palavras

Mora a minha força mais bruta

Cada vez que me abala a dúvida

Com os poros em descompasso

Eu sei que ela esta viva

Devo dizer que estou livre apenas onde não há palavras

Devo dizer que aperto, eu mesma, minhas amarras

Cada vez que explico o que dizem os meus olhos

Cada vez que corro pra longe de mim

Cada vez que falam mais alto os contratos

E eu sou uma selva

Sou a mesma mata serena

Que amedronta ao cantar da lua

Sou uma deusa plena que tem medo de ser nua.

Estou procurando velas para não estar sem trilha

E apago com paixão velas e brasas

Para não deixar de ser selva

Nunca.

 

NUNCA

A cidade está cheia de leões

adormecidos à chaves de magia

com tristeza vejo nossos

guardiões cobertos de

esquecimento.

 

sinto-me parte do poder

que envolve tudo

o que

posso ver

 

MUDO

respira,

no fundo pra sentir que ainda está dentro.

Com as mãos,

o peito e as extremidades em formigamento.

Pressente a queda.

Sente a vertigem

(vinho raro).

Salta.

se arrebenta...

engasga com o sangue,

degusta o suor e acorda,

ainda tonto do que houvera,

vivo,

mas não intacto,

mudo,

mas não calado.

 

RUPTURA

desejei ser uma passagem silenciosa

mas o silencio aprofunda a corrosão,

...é como ver a gota caindo

ver de cima

e ir buscando o chão,

e mais além do chão,

o nada sem fim,

nadar, ir

e

de repente parar,

calar, não respirar

pirar

morrer

 

como quebrar

como quebrar?

 

dalí partir,

não voltar

desfazer todos os caminhos,

desconectar...

 

CAROL MAROSSI (1979) poeta paulista de São Jose do Rio Preto, é advogada e mestranda em direito do comércio internacional pela USP. Membro do Coletivo Vacamarela que organiza a FLAP! e edita o jornal de literatura contemporânea O casulo. Tem poemas publicados nas revistas Não Funciona, Zunái, Lapsus (Lima), e Série Alfa (Valência).

Acordo árida,

vestida de chumbo.

Lembro de Munique,

as densas noites

de uivos caninos.

E era verão

no sul.

Tão negro e viscoso,

tal como os dispositivos

de uma Halifax Law.

Mas os ecos chegavam

da Marienplatz

 

ressonando no meu peito,

prestes a lançar

uma ogiva nuclear.

Pé ante pé você invadia

a praça com seus imprestáveis

patins de gelo

(e era verão no sul).

Naquele quarto minha

alma degelava,

líquida como chumbo.

 

DO ESQUECIMENTO

Não pensa mais, não mais:

o rosto dele fundiu-se

aos carros e pelas ruas

flutua incógnito, transpirando

brancos cravos e ceras.

Aquelas verdades nossas,

na impossibilidade das carnes,

teceram distâncias.

Desenhamos trilhas impossíveis:

sem volta.

 

Mas ainda se enroscam por entre os dedos

as mesmas esperanças débeis

e seguimos, insanos, como

uma velha rendeira cega

tramando infinitos.

Futuro insosso, o nosso

gravitando no prato de sopa

: frio, trincado.

De tudo, a saudade, esse

dormir sobre espinhos.

 

DEPARTURE

A plataforma vazia

um fog indócil

Malas no

chão do trem e

mãos decepadas

acenavam para o nada

das janelas.

 

Queria sussurrar no

teu peito e cantar

aquela canção démodé

- palavras irresponsáveis -

 

Mas um apito insistente cegou

minha voz e,

kamikaze, dei-lhea brancura das costas:

hic habitat felicitas

 

Rios afogando

o frágil rosto

convulso

trilhando caminhos

opostos aos teus.

 

MARÍLIA GARCIA(1979) poeta carioca, escritora, tradutora e editora. Estreou em livro em 2001, com a plaquete Encontro às cegas. Publicou  20 poemas para o seu walkman ( 2007). traduzido para o espanhol e publicado na Argentina, no ano passado. Participou do Festival de Poesia Latino-Americana Salida al Mar, em Buenos Aires.

NUM DIA BRANCO

segura a borda da mesa com

o cabelo vermelho vamos

para a polônia

                                                ver a neve

andava tão dispersa assim

ele nunca conheceu a família com ganas

de frio. sempre aquele

movimento

                                                 preciso ler outras

coisas a frase cortada

no mesmo ponto fresta de luz

onde fala uma gargalhada

assomada à janela quando o vê

do outro lado da rua procurando o

castelo.

                         cabelo curto, segura a ponta

da mesa e mastiga as sílabas

em sua língua.

 

SVETLANA

na véspera de sua partida para

ny, emmanuel hocquard datilografa

um poema de george oppen

em sua máquina de escrever

underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar

para barcelona aqui não fico

mais nem um dia dizia no café

com nome grego que

lhe fazia falta ver as coisas

invisíveis daquela cidade e seu marido

na contramão carregando

no braço o menino sem língua,

tentando alcançar o que

aparecia do outro lado do mar

se alguém ainda viria

para ajudá-los

  nesta época

do ano a tormenta não costuma

demorar (o poema era em inglês)

e tinham medo de se perder,

ela dizia, por isso a distância,

ritmo de degrau seguindo

cortado, por isso

o modo de andar e

o ziguezague do avião sempre que saíam juntos.

tinham medo e todos os dias fazia

algo para evitar. depois queria

encontrá-lo na rua,

perdido, como um acidente:

cruza uma esquina e vê. desligou

a chamada na hora

precisa, a voz cortada outra

vez antes de seguir

pelas ramblas.

 

CLASSIFICAÇÃO DA SECURA

 I

 agora já é quase amanhã mas queria

dizer apenas que é muito

tarde: acrescentar quatro horas ao relógio

indica que já é depois. lá é sempre

depois. parecia um nome

italiano com aquele som ecoando e a

resposta em outra língua mostrava

a cor das linhas no mapa, “é lilás”, para

não dizer algo preciso

para não terminar: com ela

saio cedo todos os dias. fico de

vez em quando escondido

no porto. tomarei

o transmediterrâneo e comerei

calçots,

até chegar o instante antes

do instante, momento em que vê o relógio

e diz: não. já conhece todos os erros

do sistema e a retina derretendo

sempre que levanta

   para sair dali.

(precisão é o retângulo do degrau

inferior.)

  

II

            alguém que não consegue se mover

e uma semana de vozes cortadas, deve

se acostumar aos movimentos em câmera

lenta, à descida pela escada em

espiral:

                         recorta os sons de cada

quarto e apaga as perguntas que

mais detesta responder. como aquela

noite no ônibus, ruídos do rádio e

pedaços de frases atiradas,

sempre girando as horas.

  ver a paisagem

sem ela e precisar o tamanho da ausência

com poucos dados — sabe que as baleares ficam

do outro lado do mar, que custa chegar

anos depois e dizer. ergue os olhos para

fixar o que tem ali e não perder

de vista a secura.

 


Publicado por Rubens Jardim em 04/06/2014 às 18h59



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