Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
27/01/2014 20h28
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (44ª POSTAGEM)

MARIA CARPI (1939) poeta gaúcha, é advogada, professora e defensora pública. Estreou madura com o livro de poemas Nos Gerais da Dor, 1990, premiado como revelação pela APCA. De lá para cá são 12 obras, entre elas Os Cantares da Semente (1996) A Migalha e a Fome (2000), A Força de Não Ter Força (2003), O Herói Desvalido (2006), A Chama Azul (2011) e O Senhor da Matemática (2012).

A semente é uma fenda

no tempo. A única fenda.

 

Viver não nos salva.

Morrer não nos liberta.

A porta é estreita e semente.

A página branca e a migalha (poema 19)

Só a página te dará a saber

que estás despido. Tão penúria

que começarás a revesti-la.

 

Só a página te fará  perceber

que estás distante. Tão lonjura

que começarás a visitá-la.

 

E quanto mais te familiarizares

com a página, mais ela te será

um amor escuso, com cadeados

 

entre as vielas tortas e sua paz

secreta. Com cancelas entre

a querência e seu pampa aberto.

 

Ela recôndita e real; tu amador,

viajante incerto, trôpego de

propósitos, chegando a parte alguma.

 

O Avental

No centro da casa,

uma vertente.

No centro do movimento,

o avental de minha mãe.

As toalhas jamais

sabiam secar-me.

Ali acalmava as mãos

interrompidas de voar.

Ali as lágrimas

e toda a trégua.

 

A lavoura da fome (poema 10)

Não sou eu que tem fome.

É a fome que me tem.

Ela me apura, hóstia, em

 

sua boca. Ela me salitra

a temperança para devolver-me

à fermentação, contra a cupidez.

 

A fome é o meu outro, escumoso.

Não vim ao mundo para saciá-la,

mas acendê-la, contra a cupidez.

 

E da fome me retiro, fatia,

para que ela seja inteira.

A fome, contra a cupidez,

 

também se retira em funduras,

para que o alimento esplenda

como um sol saído das vagas.

 

Não mais o impulso ao avesso,

não mais a seta e o batimento

nos ares. Apenas todo o Fruto.

Lu Menezes (1948) poeta maranhense, é doutora em literatura comparada. Cresceu no Rio de Janeiro, onde voltou a morar após a adolescência em Brasília, cidade em que concluiu o bacharelado em Ciências Sociais. Trabalha nas áreas de pesquisa e tradução. Publicou os livros de poemas: O Amor é tão Esguio (1980) , Abre-te, Rosebud!(1996) e Onde o céu descasca (2011). 

Tsunami e vizinhança

Então , a mulher e a criança
seguiram uma serpente que nadou para terra firme
e conseguiram se salvar.

― A mulher
era só certa vizinha a quem, antes de morrer, a mãe
confiara a criança.

A serpente
terá sido, de repente, uma espécie de vizinha também.
― Vizinha de outra espécie.

Utensílios

Para extrair

do alumínio seu lúmen

usaria

o desusado, exaurido

verbo “haurir”

Arearia

panelas,

à beira de um rio, mergulhada

no alumínio luzidio

– “haurindo-o” –

polindo-lhe

a índole de água

e o ímpeto de prata

com grãos

de ouro e de areia

arearia

“ourada”

submersa em seu domínio

 

Fellini e a aura ruante

O pavão abrindo o leque

se chama “ruante”

 

É como toma

a tela inteira de Amarcord

transbordando

em lento-imenso instante

 

Eu queria agora

um poema assim

 

Semelhante

àquele navio esplendoroso

irrompendo

como um sonho inebriante  

 

 um navio ruante

                                                                      

Um poema assim

 eu queria agora

 

(só com meia mea culpa se meio ruim)

 

Corpos simultâneos de cisne

Branco ideal e branco real

o mesmo cisne no espaço

de um saco de sal

 

ocupam

mas eis

transmigrante

 

lei que em mantimentos transfez

obsoleta

ampulheta: um cisne de sal

 

segue o curso

do tempo

 

e míngua

 

até ser

somente

 

de plástico transparente

Ledusha Spinardi (1953) poeta paulista, vive em São Paulo. É tradutora de língua espanhola, e também faz trabalhos jornalísticos. Já publicou quatro livros de poemas: Risco no Disco ( 1981), Finesse & Fissura(1984), 40Graus ( 1990) e Exercícios de Levitação (2003).

Cristal na Neblina

A mínima idéia da tua presença expõe minha alma às curvas,
como a desfrutar silenciosa o frescor de pérolas no pescoço.
Ouço um por um os pingos além dos pássaros
no rastro recente da chuva.
Tímidas ainda ontem,
as rosas no aparador ostentam contornos carnais e tudo pulsa - volúpia
- na lisa luz da folhagem.
A mínima idéia da tua presença afia a lâmina
dos meus sentidos, o faro para analogias.
Ouço risos no meu sonho,
recrio teus olhos no escuro, vejo cristais na neblina
quando secretamente tua alma me visita.
Os cheiros que a chuva desprende,
tua voz na minha nuca, alinham-me à beira da glória.
Esculpirei o verbo para o que procuras?
Às vezes arde um sol sombrio
no cerne desse ofício, amar.
Conto horas fora do tempo e outras que adivinho nesta, exatíssima.
Como uma vírgula tua presença me devolve o verso,
eco de pétala no precipício.

 

Veleiros brancos

Alheia confiro a curva bem feita dos meus pés

minhas coxas que guardam o último sol

onde se encontram

 

A lua acena veleiros brancos

beijando a janela escancarada

 

Faz muito calor por aqui

faz calor nas dunas do meu corpo

que sei, pressentes

como pressinto a delicada febre das tuas mãos

 

No umbigo da noite destilo vapores

lavanda e mirra para que me queiras

tanto

e temas quase nada

 

No teu silêncio de homem

sinto que vislumbras minhas veredas

Assim permaneço recostada

os travesseiros de pluma afagando o dorso

e te quero dessa forma inescrutável

entre o tesão e a perplexidade.

 

Finesse & Fissura 

melindre da língua 
fetiche do meu verso que aflora 
minha finesse que finda 
minha delicatesse que mingua 
minha fissura que implora

 

 

 

 

 

Os que só tragam com filtro. Os que conduzem a dança. Os de papo requentado. Os que espalham o conflito. Os grosseiros de foulard. Os que fazem as cutículas. Os que têm presas no olhar. Os prósperos despreparados. Os que vão lamber o limbo. Os belos atormentados. Os previsíveis sem sal. Os ternos de abraço manso. Os que usam o saber como arma de poder. Os que citam sem parar. Os que gostam de mulheres. Os que gostam das mulheres. Os mitos desamparados. Vampiros por trás de lentes. Os que só querem mamar. Os que portam falos bélicos. Os marinheiros sem mar. Os que nos devolvem o riso. Sensíveis sem onde morar. Os que decifram. Os que devoram.

Casados infantilizados. Os que consertam cadeiras. Os indeléveis carnais. Os de coração falido. Raros sexys calados. Os gananciosos

banais. Marxistas que espancam mulheres. Os que se desmancham no ar.

Janice Caiafa (1958) poeta carioca, é doutora em antropologia pela Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, tradutora e professora da UFRJ. Publicou os livros poemas: Noite de Ela no Céu (1982), Neve Rubra (1996), Fôlego (1998), Cinco Ventos (2001), Ouro(2005) e Estúdio (2009).

Filtro mágico

                        ao meu pequeno puck

din-dins de pires

de leite,

confusões dos potes

            da casa –

gengibre-me o bolo

            que faço.

gnomo que guardo no leito

di-minuto gênio do quarto

            matéria e gema

                   das tigelas

jujuba mágica entre as muitas

gomas de mascá-la.

eu amo meu robin da cozinha

que me ajuda a pensar os séculos

secretamente sob a minha

            anágua.

 

Cheio d’água

Mareja a água

na forma do olho,

o olho é um outro

lado do corpo

e lago convexo.

Dois lençóis d’água

depositados

a turvar a mirada

embaçada

no espelho de 2 lados.

Os espaços

dos olhos marejados

são a virada

dos avessos

pela lágrima.

 

Mergulho

quando caio

nada vinga além do nado

caio entre e me salvo

pelo meio

 

guelras ganhas, estou só

absoluta no líquido

 

quase aquática

nem amo de tão perfeita.

 

Por um fio

O que me prende à vida

é linha de hálito

troca de ares, fios

de ouro. Ora tenazes

ora soltos colares:

tênue sutura

ata-me ao chão do mundo.

A vida me prende

em teia de vento

acordo quebrável

selado com o ar.


Publicado por Rubens Jardim em 27/01/2014 às 20h28
 
27/12/2013 18h29
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (43ª POSTAGEM)

LILA RIPOLL (1905-1967) poeta gaúcha, foi pianista, professora e presença de destaque na literatura sul-riograndense. Miltante política, participou da frente intectual do Partido Comunista, em 1935. Conquistou prêmios importantes : Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, pelo livro de poemas Céu vazio(1941), e o Pablo Neruda, por Novos Poemas(1951). Publicou quase dez livros de poemas--e depois do golpe de 64, foi presa.

VIM AO MUNDO EM AGOSTO

Sou triste de nascença e sem remédio.
Vim ao mundo no triste mês de agosto
o mês fatal das chuvas e do tédio,
e nasci quando o sol estava posto.
Vim ao mundo chorando... (o meu presságio!)
Um vento mau marcava na vidraça
o plangente compasso de um adágio,
anunciando agoirento uma desgraça.

Sou triste. É irremediável este mal.
E eu não quero curar minha tristeza.
Só ela para mim tem sido leal,
Na minha via-sacra de incerteza.

Sou triste de nascença. É mal sem cura.
A vida não desfez meu nascimento.
Sou a menina triste e sem ventura,
que em agosto nasceu, com chuva e vento.

POEMA VI

Hoje pensar me dói como ferida.

O próprio poema não é poema.

Tem qualquer coisa de trágico.

De pétalas descidas.

De véu cobrindo o retrato

de um morto.

Hoje pensar me dói como ferida.

Mas é uma imposição - pensar.

Não quero estado de graça,

nem aceito determinismo.

Só a morte é irreversível.

A opressão do azul

aumenta meu conflito,

e é cruel escutar as razões

da razão.

Quisera repartir-me

no cristal da manhã.

Ser um pouco daquela rosa

tocada de irrealidade;

da tênue luz ferindo

o espelho do rio;

daquela estátua pudica

que parece ter ressuscitado

a inocência.

Mas em vez disso,

aqui estou:

queimada em pensamentos,

quebrados os instrumentos

do sonho.

GRITO (1961)

Não, não irei sem grito.

Minha voz nesse dia subirá.

E eu me erguerei também.

Solitária. Definida.

As portas adormecidas abrirão

passagem para o mundo

Meus sonhos, meus fantasmas,

meus exércitos derrotados,

sacudirão o silêncio de convenção

e as máscaras de piedade compungida.

Dispensarei as rosas, as violetas,

os absurdos véus sobre meu rosto.

Serei eu mesma. Estarei

inteira sobre a mesa.

As mãos vazias e crispadas,

os olhos acordados,

a boca vincada de amargor.

Não. Não irei sem grito.

Abram as portas adormecidas,

levantem as cortinas,

abaixem as vozes

e as máscaras —

que eu vou sair inteira.

Eu mesma. Solitária.

Definida.

RETRATO

Chego junto do espelho. Olho meu rosto.

Retrato de uma moça sem beleza.

Dois grandes olhos tristes como agosto,

olhando para tudo com tristeza!

Pequeno rosto oval. Lábios fechados

para não revelar o meu segredo...

Os cabelos mostrando, sem cuidados,

Uns fios brancos que chegaram cedo.

A longa testa aberta, pensativa.

No meio um traço, leve, vertical,

indicando uma idéia muito viva

e os sérios pensamentos: — o meu mal!...

O corpo bem magrinho e pequenino.

— Sete palmos de altura, com certeza. —

Tamanho de qualquer guri menino

que a idade, a gente fica na incerteza!

E nada mais. A alma? Ninguém vê.

O coração? Coitado! está bem doente.

Não ama. Não odeia. Já não crê...

E a tudo vive alheio, indiferente!...

Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho.

O espelho é meu amigo. Nunca mente.

No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.

E sabe desde quando estou descrente!...

MARIA DA PAZ RIBEIRO DANTAS(1940-2011) poeta paraibana, viveu no Recife desde 1963. Foi mestre em teoria da literatura pela Universidade Federal de Pernambuco. É autora dos livros de poemas: Sol de Fresta, (1979), menção honrosa especial no Prêmio Fernando Chinaglia, da UBE do Rio e  Ilusão em pedra, (1981). Participou de várias antologias de poesia. Editava e mantinha o site www.joaquimcardozo.com.

LITURGIA

Com tuas longas vestes verdes

te inclinas

sobre o sangue das uvas.

O céu e a terra tremem

e o vinho reflete

o abismo de Deus.

Com tuas longas vestes verdes

artesão da manhã

solenemente ergues

o Sol.

O CAPIBARIBE NO RECIFE

Nada mais doméstico

do que esse boi manso

pastando a si mesmo sob

a canga das pontes.

EDIFÍCIO DA SUDENE

Na beira mar

da seca

o monumento

às ondas.

EQUILÍBRIO FLUENTE

                              A ilya Prigogine

Escalando a serra nevada

ou o monte roraima

em minhas retinas

estou hoje a um certo dia de maio

                            no topo 2000

da montanha do século.

Um não-sei-quê

                    me amanhece

para o teu abraço

                    e descubro que

não mais me tentam

vícios de estrutura.

Um corpo leve (o meu)

me atrai me leva

no rumo de um equilíbrio fluente.

Viajar me importa.

                                    Quero

meu desejo além

                      da gravidade

Reconhecer-te

no abismo das quedas

que não chegam ao fundo.

                                   E no

enquanto de abraço

ou ar que nos enlaça

eu te sonho tu me sonhas

de modo tão descontínuo

                                  e livre

que nos sorrimos compreendidos

                            sem medo

de colisão no escuro

ou na sala

                                       civil

dos sistemas

fechados.

HILMA RANAURO(1945) poeta carioca e doutora em letras, é também ensaísta, professora da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Filologia. Participou de diversas antologias, (Antologia da Nova Poesia Brasileira,1982, e A Poesia Fluminense no Século XX ,1998).Obra poética: Descompasso (1985) e Um Murro no Espelho Baço(1992).

E me cobraste

o fogo-fátuo

feito milagre.

Mas eu era Eva

no pecado mortal

do medo.

DESCOMPASSO

Me querem mãe

e me querem fêmea,

me querem líder

e me fazem submissa,

me fazem omissa

e me cobram participação,

me impedem de ir

e me cobram a busca,

me prendem nas prendas do lar

e me cobram conscientização,

me tolhem os movimentos

e me querem ágil,

me castram os desejos

e me querem em cio,

me inibem o canto

e me querem música,

me apertam o cinto

e me cobram liberalidade.

 

Me impõem modelos

gestos

atitudes

e comportamentos.

 

E me querem única.

 

Me castram

podam

falam

e decidem

por mim.

 

E me querem plena....

DECISÃO

Faço versos como quem empunha uma arma

mas também como quem brinca e ri

e goza

e ama.

 

Meus versos são dardos com que a fêmea, ferina,

se livra de condicionamentos impostos;

são denúncia de mulher que se bate

pela causa suprema de ser e lutar.

São meus versos espada que empunho

no ataque e na luta por tudo em que creio;

são orgasmo e gemido do sexo que, livre,

se molha e se mela no desejo e na entrega.

São meus passos que oscilam no ir ou não ir,

são o choro do riso na mudez do meu grito,

são verso e reverso, o avesso do pano de fundo

de mim, e o sim do não que é medo.

São enchente e vazante, timidez e desplante,

faxina geral e poeira sob o tapete.

O lirismo do afago, a ternura do aceno,

o furor da revolta, o fremir do desejo,

são meus versos - veias pulsando

na zanga da briga e no canto da paz,

disjuntores que ligam e desligam

nos curto-circuitos de mim.

CENA ABERTA

Coloque-se na palma da mão,

espalme-se,

entorne-se,

esparrame-se.

 

Chafarize-se de pingos seus,

chova um pouco de você.

 

Lance em olhar ao redor,

ponha-se pronto,

pendure-se,

despenque-se.

 

Veja-se desvendado,

devassado e público.

 

Pronto,

dane-se o mundo.

 

Ponha-se na boca da cena,

cara limpa,

grito pleno.

Seja-se, sem máscaras.

CERES MARYLISE REBOUÇAS DE SOUZA (1946) poeta baiana, é pedagoga e professora especializada em alfabetização. Doutora em linguística pela Universidade de Quebec, tem vasta experiência na cátedra universitária, tendo ocupado também importantes cargos na Universidade Estadual da Bahia Já participou de algumas antologias, mas ainda não teve livro de poemas publicado. Faz parte da Academia de Letras de Itabuna. Recentemente foi agraciada com o troféu Cecília Meireles.

Não sou mais

nem menos;

sou apenas corpo

que levanta vôo,

e às vezes cai 

sob o mesmo céu

que abriga a todos.

À MULHER

Porque és mais

que a beleza,

muito mais

que um corpo.

Porque és mais

que um ventre

para o filho

e muito mais

que a ilusão

de um homem.

Porque tuas mãos

são alento, bênção

e sensatez.

Porque há paz

nas tuas palavras

quando rompes

com tua essência,

o estigma de fetiche.

Porque és nobre,

imensurável,

e amamentas

com a força

dos teus seios

e de tua luz,

a história

humana.

CHEGO AOS SESSENTA ANOS (fragmento)

… O tempo nunca é generoso,

sempre marca na pele

e nas entranhas,

guardando o eco dos prantos,

dos risos transbordados,

e já não têm sabor

de derrota ou de vitória.

Minhas histórias,

estas nunca se apagarão,

porque estão gravadas

no coração: suas cores

nunca poderão ser mudadas.

O tempo não faz com que

as dores doam menos;

apenas nos acostumamos

a viver com elas.

Minha memória baila

desenhando lembranças,

mas chora quando as esculpe

naquele abraço forte

que sempre me fez falta.

Ando entre o mergulho e o vôo,

entre a incerteza

e o medo da certeza.

A esta altura da vida

desejo muito pouco:

só quero um templo

de colunas largas

para amar a todos

e poder abraçá-los

em todas as geografias,

em todas as raças,

em todos os idiomas.

REENCONTRO

Não mandem calar minha saudade agora,
busquei o mundo, passei tanto tempo fora...
Ponham copos nesta mesa abandonada,
onde jogamos cartas e destinos.

Não abram as janelas já tão carcomidas
pelo tempo passado - pó da vida,
desta casa que gentil nos abrigou
em algazarras inocentes de meninos.

As gavetas devem estar abarrotadas
de tanta coisa inútil e empoeirada:
poemas murchos, flores ressecadas,
entristecidos, à espera de algum gesto.

Não acendam a luz, meus pés conhecem
o vício dos degraus, os corredores,
as portas que abrem sempre suas asas
aos quartos amplos e acolhedores.

Ouço risos de crianças pela sala,
sempre correndo em busca de emoção
ou sentadas nos colchões já desbotados,
deslizando num já gasto corrimão.

Nas paredes há sombras que estremecem
com o bater dos corações - velhos rumores,
que um dia preencheram minha infância
e nunca me mostraram dissabores.

Quero sentar-me no colo da mamãe,
adormecer com histórias do papai
e despertar ao som dos passarinhos,
que cantavam saltitantes nos beirais.

Agora parto, saciada de fantasmas:
são eles que abrem a porta do jardim
e ternamente beijam minhas faces.
Já vou. Já vou. Só vim saber de mim.

 


Publicado por Rubens Jardim em 27/12/2013 às 18h29
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28/11/2013 01h04
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (42ªpostagem)

IRACY GENTILI (1930-2002) poeta e artista plástica, integrou o movimento Catequese Poética, iniciado em 1964 pelo poeta catarinense Lindolf Bell. Foi morar em Salvador na década de 70 e criou uma galeria de arte que acabou sendo ponto de encontro de muitos artistas.Publicou Os Rumos(1964)

A tudo direi, sim,

Sem nenhuma importância.

Saberá alguém dos silêncios dos cofres cheios de miçangas

Em símbolos de vidro, mais que a verdade caberá.

A tudo sorrirei

Recolhendo as esperas.

Ninguém perceberá a urgência de ontem.

Às noites com piedades tão cruas

Pedirei que antecipem as anmarras do voo.

Caminharei cansada, sem flores nos meus cantos,

Pois cairemos, eu sei,

Folha por folha,

E o verde se perderá num excesso de odor.

Quem armazenará o fruto, nestes campos estéreis,

Se as flores distribuem-se vestidas de verdade?

A tudo hei de jazer calada

Num silêncio pletórico de cardos.

 

Alguém inventará gestações de mármores e bronzes.

........................................................................................................

Assim seremos, tigres,

E no jângal deslizaremos em combates.

Assim seremos, faunos,

E nas campinas dançaremos a aurora.

Ah! Tivéssemos jamais amado,

E alguma rosa teria lâmpadas de riso,

Em alguma árvores seríamos mais sóis.

Assim estaremos, cansados

Dos templos que fizemos em segredo.

Das preces, todas elas sem resposta.

Os deuses dormem!

Assim extinguiremos.

Unos, com tudo o que nos mata.

Uno, com tudo o que matamos.

.........................................................................................................

Eu falarei

De todas as ternuras

Que te pertenceriam

 

Eu falarei

Das flores e dos frutos

Que abrigarias nos dedos

 

Eu falarei

De todas as canções

Que ouvirias crescer

 

Eu falarei

Das paisagens, muitas

Que se abririam, claras, para ti.

 

Eu falarei

De estrelas, incontáveis

Que no teu céu aos poucos morrerão

........................................................................................

 

Brancos são os olhos das mulheres

Brancas as paisagens

 

O céu todo branco arqueando-se em horizontes.

 

Brancos homens? Brancas ruas?

Onde estão as cores da vida?

 

O sol quer se por e nada mudou!

 

Sempre a alvura infinita

Distendendo-se em toda a parte

 

Os olhos cansam de ver

Sempre a mesma paisagem.

 

Ele.—o que tinha azul nos olhos

Que tanto me assombraram

Que branca lembrança me deixou!

 

Ah! Este tédio branco ao meu encalço

Onde tudo é loucura,

 

Este longínquo marulhar de vozes veladas

Que passam por mim

 

E este sussurro de harmonia extinta.

 

RENI CARDOSO (1945-2008) poeta paulista, atriz, professora, pesquisadora e tradutora. Também integrou o movimento Catequese Poética nos anos 60. Fez mestrado e doutorado na USP e destacou-se como grande especialista em teatro russo.

O CAMINHO

Não é medo de chegar sozinha:
é medo de não chegar.
Não é angústia de saber longa a estrada:
é de não saber escolher entre todas
a verdadeira.
Oh! Meu segredo inviolável!
O longo mapa a percorrer!
Quantas vezes penso ter chegado à paz 
e é apenas uma encruzilhada.

CARTAS A ALESSANDRO

1

O trem partiu.

A princípio pensei

No teu rosto.

Depois, que não existias.

No final, deixei de sentir.

Tua mão acenou

E vi que eras incomparável

-o único.

2

Ontem à noite

Fui colher uvas

E a uveira não deixou.

 

Hoje de manhã

Os meninos roubaram

Minhas uvas

-todas.

3

Estou como num hotel.

Redescubro conversas de um dia anterior

E sei que alguma festa está no fim.

Converso com tua voz

De trás de uma coluna

Para sempre.

 

NILZA BARUDE (1946) poeta paulista, fez parte da Catequese Poética e atuou como jornalista em São Paulo e na Bahia. Dirigiu, criou e apresentou programas na TV. Recebeu título de Cidadã da Cidade de Salvador e publicou Amor/Ação(1995), Contos &Cartas Memórias de um Coração e Reticências (2011).É também artista plástica.

6

Calcei os chinelos velhos  de deus

E caminhei pelas águas

Pela mão de todos os meus irmãos,

E dançamos a ciranda das ondas junto com todos os peixes

Depois,

Exaustos

E em paz,

Deitamos no leito marinho

Entre algas.

Adormecemos para acordar

Ao lado dos velhos chinelos.

 

34

A cama vazia não me

Angustia mais,

Posso dormir em paz.

Tua ausência já não tem peso.

O meu ser

É metal fino e precioso,

vale mais na bolsa de valores

da vida.

Minhas ações estão na ordem do dia.

Nada a temer,

Adeus.                                                                                                        

44

Eu tenho todas as raças liquidadas em meu sangue,

Eu tenho todos os povos tombados em meus braços,

Eu tenho o estigma desse tempo,

E tenho o sangue e a terra misturando-se e restaurando-se

In memorian.

Eu tenho as trincheiras nas costas e asas nos pés,

Que me levam a todos os continentes.

Eu tenho em cada olho uma bomba detonada,

E na boca uma granada por explodir.

Eu sou o produto desse tempo discutido em dialética.

Eu sou a hipótese e a síntese matemática dos acontecimentos.

Eu sou a criança metralhada,

Eu sou a angústia da humanidade toda,

Que se desfaz,

Aprendendo a morte,

Dia a dia.


Publicado por Rubens Jardim em 28/11/2013 às 01h04
 
03/11/2013 20h45
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (41ª postagem)

MARCIA BARROCA(1951) poeta  mineira, formada em letras, vive no Rio de Janeiro. Seu primeiro livro, Marés e Semeaduras, saiu em 2006. O segundo, Desclausura-o verniz da unha na boca, em 2009. No ano seguinte, publicou 50 Poemas Escolhidos pelo Autor, livro que ganhou o prêmio Henriqueta Lisboa, da UBE-RJ. Há poucos dias publicou Poemas Nus.

Sentido do poema

Teria a poesia

violetas e vírgulas

áridas palavras

essencial sentido?

 

Não sei…

 

Quando sinto o poema

Exponho o grito

 

Enigma consagrado

A liberdade do poema

sopra no papel

fecundos enigmas

 

Casulo rompido

verso explodindo

o que sente

 

Não existe remendos

em  pele danificada

 

Desvirginada a palavra

cicatriz consagrada

no poeta

 

Livre voo

Meu deserto

desarmado dos ventos

castiga palavras soltas

estribilhos

 

canções contidas

na armadilha dos versos

redondilhas

 

Silêncios ecoam

 

Não mais escondo

minhas asas negras

Livre voo

em outras companhias

 

Multiplico fogos de artifício

em festa constante

O céu enche-se de estrelas

 

REFLEXO

O apartamento inteiro

respira você.

Nunca pensei

que moléculas de poeira

gritassem seu nome.

 

Pedro Almodóvar

Desço a ladeira

dos meus sonhos

de salto alto.

Requebro bamboleante

nos paralelepípedos

de um filme real

em preto e branco.

Um dia ainda

sairei dos nervos.

Virarei Almodóvar.

ROSA RAMOS (1955) poeta carioca, publicou poemas em jornais e na revista Poesia Sempre, editada pela Biblioteca Nacional. Participou de algumas antologias, Sete Vozes(2004) e Poema de Mil Faces(2012). Não tem livro publicado. Recentemente, 12 poemas de sua autoria foram publicados na revista mallarmargens.

ESCATOLÓGICA EM DECLIVE MÉTRICO

Há ratos sobre os estoques de mercadorias

e algumas baratas rondam a despensa

eletrônicos, tecidos, sapatos

bananas nanicas e tulipas

de Holanda. Tudo cheira a morte

e fome e temor e vida.

Há um morto sem estômago

sob a porta aberta,

um visgo seco

e um incômodo.

Se há vida,

mata!

 

ANDANÇAS

Olho os dois pés que descansam de suas viagens.

Os dedos, são dez,

imóveis conversam entre si.

Aconselho-me com eles, afinal

são pés sábios, correram terras,

pularam abismos,

subiram montanhas.

Aconselho-me com eles

mas não sei a que corpo pertencem.

Membros desconhecidos

magros, ossudos,

lembram os pés de meu pai.

Verde-azuis as veias saltam,

num grito, ao mergulharem,

na confortante bacia.

Quisera tivessem asas, pensei.

Mas sobram cores nas unhas

e uma certa impaciência

de caminhos

tão reconhecíveis agora                        

depois do banho.

Dentro das meias,

sob as cobertas,

meus pés sou eu.

 

FAZERES

o poeta chega sem alarde

ao branco da página;

invisível quase,

pensa a melodia

que há em cada frase

e conjuga verbo e imagem,

tudo em pensamento,

que não se atreve

a acelerar o tempo

do poema imberbe.

cheira a folha,

rege o vento que a sopra

espanta a mariposa-

palavra que vem surgindo

como a lua clara.

talvez um tango,

talvez espanto, ele pensa,

as rimas passarinhando seu cérebro,

uns grunhidos de fonemas

avançam sobre ele

até que exausto rende-se

ao eterno ex´lio

da palavra extrema.

 

CONVERSAS

não quero ser uma sombra contra esta janela que dá para o mar

nem uma foto na parede nem uma memória partilhada.

meu desejo é ser nossa senhora dos cordões de Oswald,

deixar de lado, com Manuel, o lirismo comedido

sambar e escrever loucamente

e colocar a poesia na rua, essa doceamarga.

“ó tristeza, me desculpe”

mas já não ando à míngua em busca de amor

e sorte. “minha pátria é minha língua”

e o mais são cortes na pele das palavras.

LELIA MARIA ROMERO (19   ), poeta paulistana, é geógrafa formada pela PUC, pós-graduanda em jornalismo literário. Autora de Poemas pra navegar (1993) e Andaluza (2000). Foi premiada no Concurso de Poesia Falada em 2000. (Dpto. de Bibliotecas Públicas/SP).  Seu poema “Teia” fez parte do vídeo da Campanha da Fraternidade/2005. Colaborou com revistas eletrônicas e pesquisa a Espanha medieval.

TEIA

No tapete de sisal

mil dedos de crianças gemem

nas fibras do tapete de sisal

mil lágrimas de crianças úmidas na contramão

nas tiras do tapete de sisal

mil unhas de crianças quebradas

dentes de leite caídos

mil brinquedos mortos apodrecem

nas tranças do tapete de sisal

mil vozes de crianças calam a cartilha branca

nos nós do tapete de sisal

mil corações gotejam na memória da terra

mil dedos me arranham as veias

lutas intestinas se deitam no tapete de sisal

sonhos tecidos pelo avesso

mil bocas

mil esperanças

mil destinos diluídos

me deixam o útero

vazio.

 

ASTROLABIO

                 para Amir Klink

No fim do mundo

há um lugar para mim.

 

Meus olhos lá estão

fusão de céu e mar

paisagem linha

desancora meu coração,

horizonte em mim

aponta o zênite do sonho,

comunhão.

 

Ali,

no fim do mundo

o mar mergulha em mim.

 

MEDITERRÂNEA

Vem da aldeia

vento que insemina, céu

luz paraíso de dor antiga.

Ontem.

Pulsam sete lamparinas, tangerinas

incandescem pupilas

drama solar, ilhas

que se foram.

 

ECO

                   Para F.G.Lorca

O Cristo Cigano meditou

diante do mar, antes da morte

a amplidão abraçada a si

perdido e lançado ali

ante extremos

sem faróis, sem palavra nem canto.

                       

Morte ao Cristo Cigano,

que sem dança,

se recolhe ao todo

silêncio e sons submersos, lhe afogam

antes da morte, o verso.

 

Não mais um poema

nem o giro cantar,

cravos de sangue e sal

lançados no maior

guitarra

conchas

e vento.

 

MONICA MONTONE (19   ) , poeta de  Campinas, interior de São Paulo, é formada em psicologia e vive no Rio de Janeiro. Antes de publicar seu primeiro livro, Mulher de Minutos(2003) circulou pela internet onde fez muito sucesso. Participou de várias antologias e tem atuado em inúmeros recitais.  Estreou este ano sua peça Sexo, Champanhe e Tchau( que virou livro) e acabou de lançar novo livro: A Louca do Castelo. Link  www.monicamontonehome.blogspot.com.br

 

Mulher de minutos

Não sou mulher de minutos

Daquelas que os segundos varrem para debaixo do tapete sujo

Não pinto os cabelos de fogo

Nem faço tatuagem no umbigo

Me recuso a usar corpetes e cinta-liga

                                                                         

São poemas que ainda não reguei            

Prefiro guardá-los em silêncio

Até que o tempo amadureça meus minutos

E a vida me contemple com seus frutos

 

Não borro meus cílios com a solidão da noite

Nem pinto meu rosto com a palidez das manhãs

Meu corpo é feito de marés

Onde navegam mil anseios

Veleiros sem direção

Estou sempre na contramão

 

Te  amo de amor

Te amo de amor

A qualquer hora

O dia inteiro

Do jeito que for

 

Te amo simplesmente

Sem mistério, vícios ou pudor

Amo o amarelo dos seus olhos

Sol poente em plena madrugada

Suas melodias

Suas trilhas

 

Amo sem precisar ser amada em retribuição

Sem hora marcada

Sem demora

 

Amo na cama e no chão

No meio da rua e na calçada

Debaixo de chuva

Sóbria ou embriagada

 

Te amo de amor

E não há nada que você possa fazer

Nem contra ou a favor

 

Tenho pena das mulheres que não gozam

Tenho pena das mulheres que não gozam

Elas não sabem

Que sob o colchão

A pele derrete

E que suas grutas ficam quentes

Como lava de vulcão

 

Desconhecem a meninice dos dedos

Que pulam de um mamilo ao outro

E brincam de esconde-esconde

Sob a chuva de estrelas mil

 

Não imaginam para que servem as mãos

Nem para que suas bocas foram feitas -

Talvez seja por isso que falem demais

 

Tenho pena das mulheres que invejam aquelas que gozam

Elas não sabem

Que seus seios são frutas maduras

Morangos, pêssegos, pêras, uvas

Pequenas cerejas mergulhadas em doces trufas

 

Por suas pernas e ancas

Jamais escorreu o néctar dos deuses

A bebida sagrada

O mel branco que é alimento

Feito leite de cabra

 

Tenho pena dessas mulheres

Por que elas serão eternamente amargas

 

As coisas que amo

Eu não sei dizer te amo!

Porque as coisas que amo, parecem não caber no amor

 

Amo o aconchego das casas

E a maneira como os pés se procuram debaixo das cobertas

 

Amo a ciranda dos dedos sobre a pele

E o aroma dos poemas do Jorge de Lima

 

Amo o som de água

O cheiro de chuva

O motivo do riso, não a risada

 

Amo a beleza que põe mesa

A beleza do erro

do engano

e da imperfeição

 

Amo o desejo de amar

 

O tédio de não querer nada

O desejo de tudo querer

 

Amo o cheiro dos ouvidos

O jeito de falar

A maneira como se olha

 

Eu não sei dizer te amo!

Porque as coisas que amo, parecem não caber no amor

 

Eu sei sentir te amo

 


Publicado por Rubens Jardim em 03/11/2013 às 20h45
 
07/10/2013 20h57
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (40ª POSTAGEM)

MARLY MEDALHA (1934) poeta fluminense, licenciou-se em letras e trabalhou como jornalista durante vários anos em São Paulo. Foi diretora do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, em Niterói. Publicou: A Canção da Ternura Inútil (1961); Queima-Sangue de Narda (1973); Lírica de Antonha do Céu por Raimundo Vira-Flor (1975),cordel.     

CANTIGAS DA BENDIÇÃO

E repousada em ti me tenho

como um pombo no ninho.

Nem te faço de correio,

nem te arreio, és passarinho.

 

Passarinho, passarminho,

entre as penas do arvoredo,
Francis Hime, arvorinho,

passarinho, passaredo.

 

Quando tu voas, eu vôo.

Se desfaleces, te aqueço.

Ah, passarinho-do-vento,

passarinho-do-moinho,

pombo-sem-pombo-correio,

só por ser teu alimento

enfeito a casa de milho,

forro de folhas por dentro.

 

Por te amar, não tenho pena,

por cantar, perdi meu medo.

Que te olhando eu viro um ninho.

Tenho bem mais que mereço.

 

OUTONO AMEAÇADO
Março amaro, amargo março
– outono apunhalado em pleno berço –

Foi-se o encanto do amor
para os cantos de morte do mundo

A solidão vem suor,
inconvidada se infiltra em meus poros
e como um polvo me enlaça

Março amaro, amargo março
– cada noite é uma véspera perdida
– cada dia traz a morte resumida

Minhas mãos perdem os gestos no arado
sem o amor que se foi embuçado

Tento um rio que escorra um recado:
vem um poço e resseca ao meu passo.

Vontade de mudar-me para o poço,
fugitiva explodindo a sede do mundo.
Arrastão com meu pranto, meu brado.

MARLY DE OLIVEIRA(1938-2007) poeta capixaba, viveu no Rio de Janeiro e foi professora de língua e literatura italianas e de literatura hispano-americana. Publicou, entre outros, os livros: Cerco da Primavera (1957), Explicação de Narciso (1960), A Suave Pantera(1962), A Vida Natural e O Sangue na Veia (1967), Contato e Invocação de Orpheu (1975), O Mar de Permeio(1998) e Uma vez, sempre (2000).

MINHA FELICIDADE VEM DE QUANDO ESTOU SÓ

Minha felicidade vem de quando estou só

e ninguém me interrompe no poema,

essa espécie de transfusão

do sangue para a palavra,

sem qualquer estratagema.

A palavra é meu rito, minha forma

de celebrar, investir, reivindicar:

a palavra é a minha verdade,

minha pena exposta sem humilhação

à leitura do outro,

hypocrite lecteur, mon semblable.

 

RETRATO

Deixei em vagos espelhos

a face múltipla e vária,

mas a que ninguém conhece

essa é a face necessária.

 

Escuto quando me falam,

de alma longe e rosto liso,

e os lábios vão sustentando

indiferente sorriso.

 

A força heróica do sonho

me empurra a distantes mares,

e estou sempre navegando

por caminhos singulares.

 

Inquiri o mundo, as nuvens

o que existe e não existe,

mas, por detrás das mudanças,

permaneço a mesma, e triste.

 

O SANGUE NA VEIA

XXV

Escrevo; logo, sinto, logo, vivo,

e tiro-lhe ao viver a indisciplina

que o espraiaria, que o dispersaria,

e dou-lhe a minha forma comedida,

a que tem o tamanho de um amor

que eu guardo, que não gasto, não disperso;

amor que se concentra em dura pérola,

não pétala, não isto que é um excesso,

pois que pode voar; o que me fica

de tudo o que acontece e não se altera,

de tudo o que acontece e me escraviza,

e do que escravizando me liberta.

Escrevo; logo, sou quem se domina,

e quem avança numa descoberta.

 

XXII

Eu caio em ti como uma bruta pedra

na água, no amor não me dissolvo, o amor

não me absolve, estou (quem nos governa,

quem nos arrasta à guerra ou ao repouso)

colada a quê, um copo sobre a mesa,

menos que o copo, o fundo desse copo,

e, não obstante, para sempre presa,

pois o que basta é tudo o que não posso,

pois o que basta é tudo o que me exige

uma violentação do que, por dentro,

é o meu mundo, essa coisa indefinível

e tão concreta, mas que não conheço,

e às vezes temo que me paralise.

Viver é submeter-se, eu me submeto.

 

LIRIA PORTO (1945), poeta mineira, professora, participa de vários sites e revistas como Germina Literatura, Escritoras Suicidas, Cronópios, Blocos on line. Publicou Borboletas Desfolhadas, editado em Portugal (2009). Edita o blogue Tanto Mar e escreve no Putas Resolutas.

TEATRAL

vestida de renda

tirana me ronda

eu não me rendo

 

finjo-me estátua

ela passa e desatenta

carrega outro

 

fim do primeiro ato

 

ROMANCE

há que haver algum frisson

susto arrepio

pois ficar só por costume

igual o poste da esquina

é muito triste

 

vai amor

melhor assim

procura um olho d’água

uma fagulha um rastilho

algo que te arrebate

                                                  

devolve-te à vertigem

 

AOS BONZINHOS

não sou como o sândalo

não perfumo o machado que me fere

faço escândalo e o machado

que se ferre

 

DISPARIDADES

um furacão entre as pernas

no coração a nevasca – o sexo no equador

a alma lá no alasca

SONIA SALES (1951) poeta carioca, é formada em psicologia e arte. Fez cursos de extensão em Londres, Munique e Bruxelas. Já foi premiada algumas vezes e estreou em 1996 com A Chama Breve. Outros livros de poemas: Ouvindo o Silêncio (1998); Da Rússia com Amor (2003);  Dedos da Morte (2006); 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (2007) e Sol Desativado (2009)

MAIS UMA VEZ

Amor na casualidade

do texto, como o cristal craquelado

não extingue a letra trêmula

o pranto desalentado.

Nas muitas camadas do vidro

colocaram o ciúme como

cor, cortado pelo meio

com lâminas de sangue.

Mas o remédio não tinha bula

e sem saber o conteúdo

bebemos todo o restante.

 

Esquecendo o cansaço

começamos outra vez.

 

NO ELEVADOR

Neon em reflexo de estrelas.

Cristal em céu costurado

de espelhos.

Um quadrado maior que o Universo.

 

O elevador parou entre

o quinto e o sexto andares

sem computador, nem ampulhetas.

Num instante,

centenas, milhares de anos.

O espaço cósmico em branco.

Um homem, uma mulher,

como no início do início.

 

ARRITMADO CORAÇÃO

Um anel de filigrana tão fino

que flutuasse em volta de si mesmo

como uma nuvem de pétalas.

Um silêncio tão deserto que num

grande palco destilasse sonhos.

Linhas esticadas, exaustas de tensão

mantendo a Vida e a Terra.

 

Tudo é o Nada, o indizível.

Arritmado,

só o coração.

 

ÚLTIMA VONTADE

“Enquanto eu estiver viva, faça-me

a única vontade, deixa-me ouvir minhas músicas

preferidas, no meu canto solitário, minhas margaridas repousantes, tão amigas, e as violetas em festa.

O meu cavalete encoberto de poeira e saudades, deixem ao meu lado, terei tempo e ainda sobra de fazer

mais um quadro, réplica de mim mesma, alegre

e sempre viva, de esperanças e anseios, escondendo

o que ficar feio, num sentimento de entrega

de uma alma ainda alerta.

Mesmo que o meu corpo esteja gasto e não mais

responda às suas mãos, faça-me a vontade,

a última, beija-me então.”

 


Publicado por Rubens Jardim em 07/10/2013 às 20h57



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