Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
21/09/2013 17h16
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (39ª POSTAGEM)

LILIAN MAIAL , poeta carioca nascida nos anos 60, é médica e escritora. Já teve poemas publicados em diversas antologias. Faz parte do  movimento poetrix. Publicou Enfim, renasci (2000)

SOMBRA

Sou o estranho que mais conheço

sem meio sem fim

Sou meu recomeço.

PAGO PRA VER

Caminho sobre navalhas afiadas
nessa  espera.
A ferida é incontestável,
a dor é certa,
mas não há como chegar
sem machucar.


Prefiro sangrar 
ao som do pulsar desse jogo,
que secar segura
no silêncio da conformação.

POEMA ESTÉTICO

Preciso urgentemente de um poema estético
eliminar a gordura localizada da palavra,
depilar o verbo e limpar a pele da poesia.
 
Necessito impreterivelmente de uma rima cirúrgica,
da assepsia do olhar sistólico,
laquear o peito lacerado.
 
Careço remover os resíduos de ossos triturados
na medula da saudade,
suturar a deiscência da canção.
 
Uma incisão limpa no músculo entremeado de versos,
cujas paredes bombeiam ausências.
 
Por fim, a cicatriz imóvel e cintilante
com o traço fino da pena.

 

CONFESSIONÁRIO

Teus ruídos indecifráveis,

teu despetalar,

em versos,

germinar esperas,

fecundar lençóis.

 

Tua face de entrega,

o dorso contorcido,

expectativas.

 

Teu suor recende a pecado,

teus olhos, profanação...

 

Abre a boca,

confessa,

eu te absorvo!

DENIZIS TRINDADE (19   ) considera-se poeta bissexta, é atriz e já fez cinema, teatro e televisão. Desde os anos 80, Denizis é integrante da Gang (o bando poético-performático que segurava o pornô-poema e hoje se apresenta em eventos especiais) e da Dupla do Prazer. Têm 2 livros publicados, Sessão Cabacinho e Book New Look e o inédito Coisa de Pele.

GRITO AO INFINITO

Não venham me dizer

o que sou, o que sinto,

como eu devo viver

e o que devo fazer.

 

Não venham condenar

o meu modo de ser,

de amar e de me expor.

Eu faço o meu caminho.

 

Não venham me ensinar:

eu sei errar sozinha.

FIM DE CASO

É estranho

rever você

e não reconhecer

mais nada

 

É estranho

tocar em você

e não desejar

mais nada

 

É estranho

ter sentido tudo

e não gozar mais nada

 

É estranho:

muito mais

que uma porrada:

uma faca nas entranhas

 

mais nada

 

DISTÂNCIA

eu em casa

tu na rua

 

tu de gala

eu tão nua

 

eu na cama

tu na lua

 

tu em outra

eu na tua

 

ANGEL OF LOVE

anjo de olhar penetrante

mãos divinas, mãos de amante

 

anjo de boca sedenta

sabor de céu e de sexo

 

anjo de corpo fremente

anjo-demônio-gente

 

pênis faminto, viril

alma e voz de poeta

 

cara, você me liberta

me leva ao desvario

 

e eu me sinto uma santa no cio

 

DANIELA DELIAS (1971) poeta gaúcha, é psicóloga e professora universitária. Tem poemas publicados no Livro da Tribo, em revistas literárias e no blog de poesia Do Lado de Cá. Publicou seu primeiro livro de poesia, Boneca Russa em Casa de Silêncios, em 2012.

MADEIRA

há rumores de que o tempo

devastou paredes e cercas

 

que a película da noite

não esconde a palidez

das roupas e dos fios

 

há rumores de que as vidraças

não contêm os motores

tampouco os silêncios

 

que a madeira cansada

contrai, range, geme

estende aflita os seus nós

 

há rumores de que os pés

não pesam mais que as partidas

TEAR

ela tece com fio lilás

as rotas do seu olhar

 

mas quando ele chega

ensaia outras cores

inventa moda

cobre-se de rendas

 

ele anseia por suas saias

e rende-se às suas teias

LABIRINTOS

esqueço o guarda-chuva

recolho os pratos, as flores

gemem de frio as sandálias

 

tonta, invento labirintos

nego as lonjuras da noite

transito órbitas improváveis

 

nas curvas de um ideograma

a musa estende o braço, a boca

 

há um nome dentro do meu nome

uma palavra que chamo minha

PÉROLAS

das coisas breves, o peso de pés atados à pedra

que tínhamos aqueles olhos de ir ao fundo

existir entre mergulhos, querer pérolas

 

e como sangrássemos sem ver, permanecíamos

eu ancorada ao seu silêncio

vestida de distâncias e maresia

 

das coisas belas, o gozo da palavra

a morte anunciada naquele estranho dialeto

de corpos e poemas impossíveis:

 

eu quero morrer de amor, ele dizia

seu verso atravessado em minha garganta

À BEIRA

tudo era quase:

corpo, corte, lâmina

tudo à beira

se não distante

tudo era perto de

 

estranha e bela substância

em tela de cores decompostas

e dores reviradas

 

tão bruta longe da palavra

tão outra

e você me lia

 

de que delicada matéria

é feita a poesia?

MARIANA IANELLI(1979) poeta paulistana, é mestre em literatura e crítica literária, e colabora como resenhista em alguns jornais. Publicou: Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer Silêncio (2005), Almádena (2007) e Treva Alvorada (2010), O Amor e depois (2012)

TREVA ALVORADA

Absurda leveza que te faz afundar

E não é a morte.

 

Cumpres tua descida calado

(Uma palavra por descuido

Seria amputar a verdade).

 

Náufrago do tempo,

Tuas horas transbordam.

Dentro da lágrima,

Imensidão, já não choras.

 

Estrelas e estrelas,

Copulam a sede e o engenho

De que te alimentas

Como nunca te alimentou

O gosto da carne.

 

Tua face atónita

Se existisse uma face,

Tuas costas nuas,

Se a nudez fosse do corpo.

 

Um sorvedouro

Onde a paz dos contrários,

Treva alvorada.

 

Fecundado, flutuas.

É a lei da graça.

O AMOR E DEPOIS

Era esperado que aos poucos

Definhasse, fosse desaparecendo

Naturalmente levado pelo sono.

Era suposto que por abandono

Morresse –

 

E não teria o vento nenhum sentido

De ventura, seria apenas

A passagem de uma hora branca,

Entre outras tantas,

Para um coração manso

Que já nada espera nem recorda –

 

Como se o tempo não devorasse

Também o desconsolo,

E dele fizesse exsudar um leve perfume,

Como se não arrastasse

Cada corpo uma penumbra,

Como se fosse possível

Em vida a paz dos mortos.

PIETÁ

Por delicadeza

Devia cada um resolver seu vestígio,

Não deixar o corpo a esmo,

Atravessado na passagem,

Sem desejo, sem enigma.

 

Mas se me fica o teu corpo

Eu te arrepanho nos braços

Com a maternidade do ofício

E lavo os teus ombros

De quanto pesou sobre eles,

O teu sexo, que a nenhum afago responde,

Lavo os teus pés, o ato mais santo.

 

Eu te arremato, eu te limpo da vida,

Faço com que desapareças,

Que o teu equívoco me abasteça

Da razão dos humildes.

 

Fardo ensoalhado, esse,

De amparar o meu próprio destino

O ENCONTRO

Dá-me um acontecimento

E eu nada direi sobre isso.

O crime perfeito

Será meu segredo

Fechado por dentro

Em silêncio

Como um vício.

Face à justiça dos homens

Há de me salvar

A vida rotineira

Entre mil outras tão parecidas.

Irei mansamente,

Azul sobre azul,

Sem que desconfiem.

(Quase diurna, eu diria,

Não me turvasse o delírio.)

E no passeio dos lobos,

Teu sangue meu sangue,

Para o chão

Águas e limites.

Repleta do terceiro corpo,

Em asa de luz

Nada direi sobre isso.

De línguas mortas

E um tempo morto

Farei caixa de guardar

Minha fé ilícita.

 


Publicado por Rubens Jardim em 21/09/2013 às 17h16
 
03/09/2013 16h39
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA( 38ª POSTAGEM)

LUÍZA MENDES FURIA(1961) poeta paulista, jornalista e tradutora. Publicou seu primeiro livro ainda menina, com 16 anos: Madrugada e Outros Poemas (1978). Participou de diversas antologias coletivas e tem poemas em diversos jornais e revistas. Outros livros de sua lavra: Inventário da Solidão (1998) e Vênus em Escorpião(2001).

POEMA-1

Esculpir conchas

tão delicadas

e diversas

é um segredo do mar

e dos moluscos.

 

Fazer versos

como quem esculpe conchas

um desafio interminável

ininterrupto.

 

XXI

Tua língua

é chama e pétala

na minha boca

 

Uma orquídea

rósea e fulva

se alastra no meu ventre

 

Selvagem e pura

no meu corpo

te enraízas.

....................................................................

Deus é o Poema

que todo dia não lemos

 

Todo dia avançamos

uma página

 

e outra começa

assim que a noite se cala.

 

Deus canta

e um pássaro salmodia.

 

Ensurdecidos passamos

em meio a esta babel de algaravias.

 

Ele escreve certo

por linhas tortas.

 

O texto está em ti.

 

INFÂNCIA – 3

Porque tudo na vida é passado

rebusco-te nas fotos da infância

o vestidinho pregueado

alguma trança

que se desfez ao vento

cariciando seus cabelos frios

Porque agora é também ontem

habitando esparsas latitudes

em contração e espasmo o pensamento

delineia a sempre mesma busca

Ainda hoje um raio claro

povoou teu rosto, fragmentou-se em sombras

efêmeros detalhes

e em teus olhos se firmou

como um sorriso frágil

a serenar-se em fugaz arquitetura

Revisito tua imagem cotidianamente

e assim o meu amor se expande

em tessituras de voo e altura

Porque o passado

é um presente que perdura

 

PAULA GLENADEL (1964) poeta carioca, é professora de literatura francesa na UFF. Teve poemas publicados em antologias no Brasil e Exterior e textos críticos em jornais e revistas. Publicou três livros: A vida espiralada (1999), Quase uma arte (2005), A fábrica do feminino (2008).

CRISÁLIDA

Agora já não pedes

meus nervos em pasto

 

agora já te afastas

crescida em beleza

 

agora me contas piadas

que aprendes ou inventas

 

agora pressinto tuas asas

 

QUASE UMA ARTE

grande amor tenho por seus membros

ombros pescoço braços pernas o viril

mais forte do que tudo

a mão que estendo sem cessar

parece que pede mas oferece

nada ou quase uma arte:

joga nos dados

o olho por olho

o dente por dente

 

O OUTRO, O MESMO

é do outro, ventríloqua

a voz que articulo mal

 

flui de mim, vampirizada

uma seiva que não volta

 

em lugar da epifania

entra a aparição

 

sobe ao palco

o outro, o indesejado

 

nem vivo nem morto

vestido com minha pele

mesmerizada

 

AÍLA  MARIA LEITE SAMPAIO (1965) poeta cearense, é professora universitária. Desde adolescente participa de movimentos literários. Escreve contos, crônicas, poemas e ensaios, que vem publicando esparsamente em jornais, revistas e blogs. Publicou dois livros de poemas: Desesperadamente Nua (1987) e Amálgama (2001)

SEPARAÇÃO

Deixo teu corpo

como quem deixa a pele

e em carne viva

se expõe ao sol.

 

Como o filho que deixa a casa,

deixo teu corpo em silêncio

sem itinerário e só.

 

Deixo teu corpo

como quem abandona

o cais e perde-se

mar adentro

sem medo de não voltar.

 

Como quem naufraga,

deixo teu corpo

e minha alma nele

nua a dardejar.

Como quem se mutila,

deixo teu corpo

como quem deixa a vida.

 

AUSÊNCIAS

O que me habita é feito de ausências:

a casa perdida nos abismos da memória,

o amor feito lembranças do que poderia ter sido,

a criança que insiste em rasgar

o tecido do tempo em que borda sua história.

O que tenho são metades, nunca inteiros.

Sou feita assim, dessa argamassa vil dos crédulos

que sonham sem medo dos interditos e dos desesperos.

 

NUNCA MAIS

Jaz teu corpo.

Nunca mais tua boca

fará de mim teu alimento.

 

És um homem morto.

 

Nunca mais tuas mãos

tocarão meu corpo;

nunca mais nossos olhos

se beijarão em silêncio.

 

Só o tempo nos unirá um ao outro

quando enterrados estivermos

na indiferença, no esquecimento.

 

EM OUTRO TEMPO

Há em mim uma casa desabitada

perdida no abandono dos ventos

que sopram sem direção

há portas que batem silenciosas

atrás de um adeus sem data,

lágrimas nas paredes retintas

e trancas enferrujadas nos portais

há hera entranhada nas vigas,

nos muros e em minha alma,

fechando porteiras,

lacrando janelas

misturando-se ao musgo

que no jardim cresceu.

Há em mim um silêncio quase sagrado

e a memória de um tempo que não é o meu.

 

CARMEN MORENO (19   ) poeta e escritora carioca, recebeu prêmios em diversos gêneros literários. É contista, romancista, poeta e dramaturga. Está presente em diversas antologias e participa de recitais desde a década de 80. Publicou De Cama e Cortes (1993) e Lojas de Amores Usados (2010).            

AMPARO

Meu pai e sua cela

Cotovelos cravados no mármore: vislumbrava o já visto.

Vistas revistando a vida como um inspetor insone.

Nos ombros, o norte o não e a culpa.

Meu pai: calvície e calvário.

Frases verticais: chicotes sobre minhas certezas.

Meu pai morava no desamparo.

Sorte que a casa amparava sorrisos nas frestas da cal -

Nas tréguas do caos.

E havia alegrias resistentes nos cantos dos quartos, nas rosas das janelas...

E havia o movimento dos irmãos,

E as mãos da mulher partindo pedaços de pão

Para não perdermos o caminho.

E havia a vida, avessa à loucura, sendo urdida para nós,

Por minha mãe.

 

CARÍCIA OU DESAMPARO

Pedra ou ponte entre nós,

a palavra costura, ou aparta-me do próximo.

No papel, deitada sobre a página,

deflagra-me o Universo.

O meu e o do outro.

No livro, a palavra não é ímpeto,

como no improviso da fala.

No livro, revisada, escolhida,

oferece-me apenas o perigo da beleza.

Que já é bárbaro!

O perigo de me impelir à ousada viagem de ver.

 Ver-me, ver aquele que me escreve,

 ver aqueles que são criados por quem me escreve.

O perigo de ver os mundos fervilhados nas folhas...

E não ser mais a mesma.

No livro, a palavra só ameaça

porque me convida a sair do lugar - a mover-me.

A palavra, estirada na página,

só pode me oferecer o risco do vôo.

E o risco de toda viagem,

por mar, terra ou verbo, é sempre o vôo.

Portanto, a palavra burilada do poeta,

a verve vertida em sílabas, do escritor,

é sempre bem-vinda, mesmo quando ameaça.

Sobretudo quando ameaça!

É brinquedo, mesmo quando bélica.

Plástica, mesmo quando revela a feiúra do mundo.

Salvadora, mesmo quando mata.

A palavra, pregada nas páginas dos livros,

em aparente imobilidade, está viva.

 

Contudo, proferida, às vezes agrupa-se tão ágil

que não há tempo de retocar-lhe o rosto.

E a verdade brota, abrupta.

E a mentira enfeita-se, convicta.

Quando proferida, sua ameaça tem natureza diversa

da que deleitamos no leito da página.

Falada, a palavra encorpa-se, cálida ou bélica.

E é carícia ou desamparo.

No entanto, uma vez expelida,

segue seu curso reto, irrevogável.

E atira, sem revólver, talha sem sangue...

mata sem vestígios.

Mas também tem o poder de socorrer,

com sua saliva salvadora,

qualquer um de nós que, na dor,

encontre alguém com o dom de usá-la como abraço.

Qualquer um de nós

que saiba valer-se de sua sonoridade

para adoçar a língua e salvar alguém.

Para salvar-se.

 

A palavra quando fala,

expulsa da boca um corpo invisível.

Quando fala, a palavra é carne, é gesto.

Mas quando cala, também é forma viva.

Disfarçada de silêncio, no fundo do pensamento,

às vezes grita seu medo de exprimir-se, parir-se.

Grita seus segredos, seu lixo orgânico e suas benfeitorias.

Viva, no caos do pensamento, a palavra inventa o futuro,

retoca o passado, e ensaia o presente - para vivê-lo.

Mas neste trajeto do falar ao ouvir,

pode gerar breu ou brilho,

conforme o berço preparado para acolhê-la.

Quem ouve é sempre co-autor do que é dito.

A tradução de quem ouve,

seu universo de significados e imagens,

sempre ajuda a escrever paz ou guerra.

No entanto, há de chegar o dia em que,

libertos de escrúpulos e medos,

domados pelo afeto,

usaremos bem mais a palavra como beijo

 

AINDA

Dizer urgente do amor

Ao amante

Antes que se quebre

O tempo

E os ouvidos –

Dissolvidos na terra

Não apreciem mais

A carícia das sílabas

 

Antes que as mãos

Tímidas de dar

Cessem de vez

Os movimentos

E todos os gestos

Virem ossos

 

Dizer urgente ao amigo

O valor do vínculo

Que só o amigo costura

Só o amigo cozeduras

Cozimentos cerziduras

Que só o amigo estanca

Os sangramentos

 

 

Dizer urgente do amor

Sem resistências

Antes que a língua

De súbito se cale

E o amor –

Preso por reticências

Maledicências

Medos mágoas

Role pelos ralos

 

Antes que o amor

Quedado pela foice

Faça da palavra não dita

Eterno açoite

 

DESTINO

O morto não mora onde o corpo se expõe

No último traje

Não cessa ali - sob o assédio dos olhos na caixa fria.

Jaz, na derradeira vitrine do rito,

Apenas a casca oca

(que seus sonhos e medos já não guarda).

Inútil pranteá-lo, em flores e confissões,

Na masmorra de mármore.

Sob a lápide, apenas pele e destroços.

Sua dor volátil migrou para o invisível, rumo ao sol.

 

O morto não mora no ossário,

Na urna de cinzas prometida ao mar,

Nos tesouros que guardava,

No quarto que o aguardava.

Não cessa no tiro, no corte,

Ou quando, amorosa, a morte o elege

No sossego da noite.

 

O morto não morre.

 


Publicado por Rubens Jardim em 03/09/2013 às 16h39
 
15/08/2013 13h25
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (37ª POSTAGEM)

ADÉLIA MARIA (1940) poeta paranaense, advogada e professora universitária. Participou de diversas antologias. Estreou em livro em 1963 com a Balada do Amor Que Se Foi. Seguiram-se Nhanduti(1964), Poesia Trilógica(1972), Encontro Maior e Avesso Meu(1990), Infinito em Mim (2000) e Sons do Silêncio(2004). Algumas coletâneas de seus poemas, em edição de bolso, tiveram tiragens raras (tratando-se de poesia): 20, 40 e 120 mil exemplares.

POESIA

Pássaro arisco,
a poesia resiste à prisão
na gaiola-poema.

INDAGAÇÃO

Vida:

jogo de xadrez.

Deverei aceitar,

resignada,

o limitado espaço

que me foi r eservado

nesse tabuleiro?

 

CONQUISTA

Joguei o laço,

ajustei o nó;

apertei o espaço

e segurei o tempo.

 

Onde e quando

agora não existem.

 

Basto-me eu só,

na insistência

em viver...

 

MEMÓRIA ATÁVICA

Em algum lugar

deste infinito mistério

- que é meu ser -,

a emoção primitiva

brilha

e reflete

a memória de todas as eras.

 

ALINE DE MELLO BRANDÃO(1947) poeta paraense, é médica-neurologista e professora universitária. Já teve alguns de seus poemas musicados e tem colaborado com jornais e revistas do Pará e de outros Estados. Publicou os livros de poemas: Cantiga Geral de Amor (1984 - com o nome de Aline Carreira); Viola d’Água (1986); As Mãos do Tempo (1989)

ABSTINÊNCIA

Abstenho-me do pão
e sem luxo, sobrevivo.
Não trago o peito cativo
em luxúria sem paixão.
Porém preservo o tesão
de exercer com poesia
a fina flor do meu dia
sem pudor ou perfeição.
Eu penso que meu pecado
é não ter mais encontrado
a quem dei meu coração
tão antigo em novidades
tão moço nas descobertas.
O resto são veleidades,
letra tonta em linhas certas!

FÊNIX

Renascida das cinzas dos vestígios das horas,
no ensejo tão exato das palavras
da poesia andarilha e descalça,
perfumei os caminhos
onde bebi lágrimas em taças de ausências.
Na barra da saia amarrei a reza dos poetas sem medo
recolhi lampejos dos versos que salvam
e escolhendo as cores cuidadosamente,
preparei a transparência inteira desse manto
que me recobre a alma.

CAMINHO, SEMPRE CAMINHO

Caminho, sempre caminho

por velhas novas palavras

por grandes pequenos feitos,

retalhos do dia-a-dia

Atalhos, sempre evitados

como recuso calçados.

Os pés – desnudos – no chão.

Letras brotando na mão.

CENA

o povo empresta o nome e o pretexto
para o discurso e gozo do político

o povo exibe o prato e a fome nua
para o comício/vício do poder

o povo enreda o tema para um samba,
passeia suas dores nos refrões

o povo aprisionado nos decretos
consome ofícios petições detritos

do complicado jogo de esticar
o ordenado pra abranger as contas

mas sendo gente, sangue insubmisso,
um dia inverte a sina e se descobre.

MIRIAM PORTELA (1954) poeta catarinense, ficcionista e jornalista. Vive em São Paulo desde 1973, é formada pela ECA e durante muito tempo trabalhou em televisão, nas mais diversas funções. Atualmente produz vídeos e documentaries para empresas e tevês. Publicou mais de vinte  livros. Eis alguns títulos: O Continente Possuído(1987), No Fundo dos Olhos(1993), Nos Mares de Vênus(2002).

LOUCURA

Ela olhou-me no fundo dos olhos
lambeu minha alma
como os animais à cria
e me disse:
- se a vida se tornar
insuportável
eu te dou abrigo.

 

GOLES LÚCIDOS ANUNCIANDO ETERNIDADES…

Bebo da vida

goles

basta de alucinações

não tenho tempo

para embriaguez.

Quero restar

Sóbria

Para não ofender

Os instantes.

Os anos passam

Passaram

Eu não os vi

Outros gastei-os

Com dores fúteis.

Assim
me vejo

Transportando

Idades

Que não vivi.

Da vida

Apenas goles

Lúcidos

Anunciando

Eternidades.

 

JURAMENTO

Juro nunca mais

Resistir à poesia

Mesmo que ela

Crave suas unhas

Em minha pele branca

E me abandone

Em noite alta

Insana e nua.

Juro nunca mais

Desistir da poesia

Mesmo que ela

Cubra meu colo

De palavras

E me obrigue

A bordar com elas:

Anêmonas

Plânctons

Cósmicas

Redondilhas.

Juro nunca mais

Me negar à poesia

Mesmo que ela

dispa da minha alma

a lucidez

e me deixe infante e tola

a rodar. a rodar, a rodar

alegremente.

 

O HÓSPEDE

Mora em minha casa
um poeta louco
cansado de seus excessos.
Nos seus desvarios
ele me fala de aventuras e de sonhos.
Nos momentos de lucidez
descreve territórios e pátrias
em que já viveu.
Mora em minha casa
um poeta velho
exausto de eternidade.
Na sua loucura mansa
cultiva canteiros
de girassóis e miosótis
que esmaga com fúria nos momentos de dor.
e toda luz o cega
fazendo-o chorar lágrimas excessivamente salgadas. 
De vez em quando
ele me toma nos braços
e dançamos noites seguidas:
ele embriagado pelos escuros
e eu fascinada por sua embriaguez.
Mora em minha casa
um poeta rude
que grita impropérios e
rasga com suas unhas sujas de terra
os versos recém nascidos.
De vez em quando
em suas mãos crestadas pelo sol
ele me oferta o gosto do sal
trazido do mar do norte
e em sua pele áspera
cortada pelos ventos gélidos do ártico
desenha rios e fiordes.
Mora em minha casa
um poeta triste
como um menino órfão
a exigir carícias
a cobrar afetos
tantos
Vive em mim
um poeta
e eu o protejo.

MÁRCIA PELTIER (1958) poeta carioca, jornalista, tornou-se conhecida como apresentadora de TV (Manchete, Globo, SBT). Já publicou livros infanto-juvenis, crônicas e poesia. Estreou em 1986 com Poética(mente)-Vida e sobrevida de um poeta. Seguiram-se As Garras do Mel(1989) e As Ilhas de Betacam(1991).

TV-VIDA

Queria se editar na vida.

Tirar os maus pedaços.

Enxugar as passagens mal resolvidas.

E

Fazer a vida em contraplanos  perfeitos.

 

Não deu.

 

A vida é

Ao vivo.

 

CORDILHEIRA

Essa cordilheira que se estende pelo meu corpo

Já virou mar.

 

Como o sertão,

Vivo afogada em meus ossos.

 

INSOLÚVEL

Não quero ser ímpar

Nem par.

Par tem sempre o outro

Ímpar não tem ninguém.

 

Não quero ser direita

Nem avesso.

Direita exige costuras certas

Avesso, costuras corretas.

 

Não quero brilho

Nem opacidade.

Brilho fere.

Opacidade emburrece.

 

Não quero nada que me transtorne

Nem me torne.

Nem cá, nem lá.

 

Sou assim.

Algo meio sem jeito,

IN-BETWEEN,

No meio do eu e do mim.

 

NATUREZA

O mais espantoso em Betacam

É a solidão da natureza.

Ilhas com apenas uma palmeira eletrônica

Tão longe umas das outras

Que não se consegue colocar uma rede!


Publicado por Rubens Jardim em 15/08/2013 às 13h25
 
21/07/2013 11h38
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (36ª POSTAGEM)

 ANNITA COSTA MALUFE –(1975) poeta paulistana, jornalista, é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo e doutora em teoria literária pela Unicamp, onde estuda poesia contemporânea e filosofia. Publicou Quando não estou por perto (2012), Como se caísse devagar, (2008); Nesta cidade e abaixo de teus olhos, (2007); Fundos para dias de chuva, (2004)

Quero de volta os pretextos
para lavar as superfícies encardidas
não acredito mais no que dão por feito os outros
prefiro eu mesma laçar
usuras da imperfeição
viver dá nisso
uma certa arrogância necessária
desisto de entediar as palavras
com o gesto monótono da caneta
perco o medo dos abstratos e sigo dizendo
vida amor solidão
e catando as horas
como quem rasga papéis antigos
como quem verte um copo de groselha
na toalha branca de linho da avó
 
Nêsperas
O que foi que aconteceu conosco?
O que é
que agora
tão distantes
miramos neste casto horizonte
nesperado
que montanhas foram estas que cruzamos
quais foram os andaimes
quais os versos que nos mantêm tão perto
como se os raios de sol no apogeu
pudessem ser capturados
por um instante
só por um
instante
paro
e retomo as pastas de papéis coloridos
de papéis passados
e retomo os panos os enganos
(Poderíamos ter sido
algo
e não fomos?
Poderíamos?
O que poderíamos tanto?
O que tanto quisemos juntas?)
Paro
um instante
diante de teu armazém
e contemplo as rugas de um tempo
imenso
esse que nunca é nosso
e torço para que possamos sempre
nos encontrar aí
neste puro instante sem ponteiros
que tão poucos
- tão poucos mesmo -
sabem onde fica
 
a verdade é que as malas já estavam prontas
na véspera
ela seguiu junto com ele
uma espécie de viagem sem volta
só a passagem de ida
era a busca por um outro mundo a busca por
algum lugar possível
o mais distante que pudessem ir
apenas a passagem de ida a pouca bagagem
decidir depois onde ficar
as malas já estavam prontas e eles seguiram
sem pressa
eu fiquei olhando de longe
achando bonito aquilo
aquele casal sumindo na neblina
caminhando lentamente
como num filme que não me lembro o nome
como as cenas finais de um filme cobertas pelo letreiro
dois corpos da mesma estatura abraçados
empurrando duas pequenas bagagens
os rostos sorrindo
mesmo de costas
era o que se via mesmo de costas
os rostos sorrindo nos contornos que iam perdendo a nitidez
à medida que avançavam
 
dos fios desta separação, abre-se uma porta discreta, pequena
quase imperceptível
economizar uma ou outra palavra não faz diferença
são fios longos
um emaranhado de ondas e feixes de luz
não faz grande diferença a geografia das frases
falamos articulando tons e gestos apenas
nada transcorre de fato nas frases
nada nas palavras ou no entre-sílabas
mas fios
um emaranhado que às vezes transparece
às vezes some
um calar de expressões e olhares
a boca entreaberta
um fechar de pálpebras
ao alcance das mãos a maçaneta a porta
uma pequena porta que às vezes transparece
às vezes some
nesse longo emaranhado
de fios
em que se buscam e se perdem
nossas vozes nossos vãos
fios
e uma longa separação
a porta entreaberta
já não posso me conter
as curvas transparecem em meus dedos
a curvatura da maçaneta e a porta
tão pequena, ao fundo
a porta que se abre
a porta e a passagem para fora
 
ANA ELISA RIBEIRO(1975) poeta mineira, é doutora em Linguística Aplicada e mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais  onde também se bacharelou e licenciou em Letras/Português.Publicou Poesinha (1997) e Perversa (2002), além de minicontos e poemas em revistas e jornais, no Brasil e em Portugal. É cronista do site Digestivo Cultural (www.digestivocultural.com).
 
Peças de madeira em pau-marfim
A linha dos olhos
faz flechas da cor de futuros
As mãos formam conchas
de pegar contentamentos
Os pés são grandes como
as telas holandesas realistas
O corpo inteiro é um tabuleiro
de jogar jogos de azar
As costas quadriculadas
As coxas quadriculadas
A boca quadriculada
Onde eu me finjo
de dama
 
Antigüidade d’onde viemos
Péricles disse que a maior virtude de uma mulher
Era ficar calada.
Péricles se fodeu.
Péricles, hoje, levaria uma surra
dada por mil mulheres como eu.
 
Ciuminho básico
escuta
calado
a proposta rude
deste meu
ciúme:
vou cercar tua boca
com arame farpado
pôr cerca elétrica
ao redor dos braços
na envergadura
pra bloquear o abraço
vou serrar teus sorrisos
deixar apenas os sisos
esculhambar com teus olhos
furá-los com farpas
queimar os cabelos
no pau acendo uma tocha
que se apague apenas
ao sinal da minha xota
finco no cu uma placa
“não há vagas, vagabundas”
na bunda ponho uma cerca
proíbo os arrepios
exceto os de medo
e marco no lombo, a brasa,
a impressão única do meu dedo.
 
ANA MARTINS MARQUES(1977) poeta mineira, é mestre em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada pelã UFMG .Em 2007, ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria “Poesia — autor estreante”, e, em 2008, recebeu novamente o mesmo prêmio, na categoria “Poesia”. Publicou dois livros de poemas: A vida Submarina(2009) e Da Arte das Armadilhas(2011).
 
ESPELHO
Dentro do armário
do seu quarto de dormir
deve haver um espelho.
Se você sai
e deixa o armário aberto
durante todo o dia
o espelho reflete
um pedaço da sua cama
desfeita.
Se você sai
e deixa a porta fechada
durante todo o dia
o espelho reflete o escuro
do seu armário de roupas,
a luz contida dos vidros
de perfume.
Do outro lado do poema
não há nada.
 
PAPEL DE ARROZ
Mira:
as coisas construídas oscilam
numa frágil arquitetura
(os papéis cultivados
em campos
guardarão sempre a memória seca
dos dias alagados).
Também as palavras revelam somente o que escondem:
eis a solução de uma questão
delicada.
 
VASO
Moldar em torno do nada
uma forma
aberta e fechada.
Palavra por palavra
o poema circunscreve seu vazio.
 
A VIDA SUBMARINA
Eu precisava te dizer.
Tenho quase trinta anos
e uma vida marítima, que não vês,
que não se pode contar.
Começa assim: foi engendrada na espuma,
como uma Vênus ainda sem beleza,
sobre a pele nasciam os corais,
pele de baleia, calcária e dura.
Ou assim: a luz marítima trabalha lentamente,
os peixes começam a consumir por dentro
o sal do desejo,
estão habituados ao sal.
Quando vês, a água inundou os pulmões,
neles crescem algas íntimas,
os olhos voltam-se para dentro,
para o sono infinito do mar.
As mãos se movem num ritmo submerso,
os pensamentos guiam-se pela noite
do Oceano, uma noite maior que a noite.
Tenho quase trinta anos e uma vida antiga,
anterior a mim.
Daí meu silêncio, daí meu alheamento,
daí minha recusa da promessa desse dia
que você me oferece,
esse dia que é como uma cama
que se oferece ao peixe
(você não haveria de querer
um peixe em sua cama).
Quem atribuiria ao mar
a culpa pela solidão dos corais
pelas vidas imperfeitas
dos peixes habituados ao abismo,
monstros quietos
só de sal silêncio e sono?
Eu precisava te dizer,
enquanto as palavras ainda resistem,
antes de se tornarem moluscos
nas espinhas da noite,
antes de se perderam de vez
no esplendor da vida
submarina
 
DILÁ GALVÃO ( ) poeta amazonense, jornalista e professora da FAAP. Foi repórter, apresentadora e diretora em 1994 e 95 na TV Cultura do Amazonas. Atuou, também, como colaboradora do jornal Folha de São Paulo, de 1997 a 99. É autora do livro de poemas DUVIDA DIVIDA DADIVA(2009).
 
JAZ
Não me interessa
a poesia, nem
que seja essa:
escrita sem
nada que a valha;
corta-me — não por
dentro — a navalha,
sem contar a dor —
não essa — mas
aquela outra mais
funda que jaz
perene por detrás.
 
Eurídice 1
Um caminho tão
longo
a perseguir
e depois dizer:
foi tudo
pra
você,
e você
dizer:
eu não
estava ali.
 
ESQUIVANÇA
Tropeçava primeiro
na escada, depois
em pedras e, por fim,
em palavras.
Dizer por si, assim,
de modo esquivo,
não que se esquivasse
propriamente,
— porque há certas coisas,
(quase todas, na verdade)
não há muito como
deixá-las fora,
deixá-las fora é,
de qualquer modo,
sempre uma esquivança,
e uma esquivança
não é algo que
está, propriamente,
fora, ao largo; a
esquivança seria
mais exatamente
aquele modo
(esquivo) de pôr
fora o que já é
dentro — era esquivar-
-se das metáforas,
tão cedo viessem elas,
que insistiam em
dizer por si. Assim
tropeçava ela: primeiro
na escada, depois,
de modo esquivo,
em pedras e, por fim,
(não que se esquivasse),
em palavras,
propriamente.

 


Publicado por Rubens Jardim em 21/07/2013 às 11h38
 
30/06/2013 22h00
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (35º Post)

ANGELA MELIM (1952) poeta gaucha, vive no Rio onde é escritora e trabalha como redatora, tradutora e intérprete de conferências. Publicou diversos livros, tendo sido premiada pela Fundação Vitae e UBE – União Brasileira de Escritores. Alguns títulos de sua obra poética: O vidro o nome (1974) Das tripas coração (1978) Vale o escrito (1981) Mais dia menos dia (1996, obra reunidae Possibilidades (2006).

Meu pai nos abandonou.

Minha mãe casou e mudou.

Vovó morreu.

Os irmãos sumiram no mundo

ou submundo.

Sem explicação

Yvonne nunca mais falou comigo

e, para Ronaldo,

sou fantasma do passado.

Vejo meus filhos já voando.

Nem um pássaro na mão.

 

FLORES

Colho olhos fixos

de novo

boca seca

aberta

- o não completo me suspende

entre parênteses invisíveis e impotentes

no ar parado -

de passeio neste campo imperceptível

minado

que a pasma semântica do absurdo

colore de avesso e espanto,

flores que explodem ao contrário.

 

MANIA DE LIMPEZA

Raspa de limão

cheira seco:

assim

a lua limpa

alto relevo

que a letra afixa

no papel novo.

 

NÃO SINTO

Não sinto

(muito mais)

falta

nem saudade.

 

Estou tomando gosto das coisas.

Figuras e linguagem.

Uma laranja

diminutivo

sopinha quente

um sorriso

uma boa chuveirada.

 

O verão!

Como é colorido.

Super.

 

O Rio de Janeiro.

Uma viagem.

Contradições. Sinônimos.

 

Que boa a mão da idade.

 

IZABELA LEAL (1969) poeta carioca, é graduada em psicologia, doutoranda em literatura portuguesa pela UFRJ e professora. Tem ensaios publicados em revistas de literatura e alguns poemas publicados na internet, em blogues de poesia, na Zunái, na Inimigo Rumor e nas Escritoras Suicidas.

MARÇO NO CENTRO

era o começo de março no centro

seu corpo junto ao meu corpo, uma

proximidade assustadora.

primeiro um sorvete de creme derretia

com o calor e as frases que dizíamos

escorriam sobre os livros

do andar de baixo.

confissões de chocolate.

depois pedimos um café e eu olhava espantada

uma palavra

que se debatia no líquido escuro.

pensei em socorrê-la com a colher, mas logo vieram

outras palavras

e mergulharam no copo d´água.

(na mesa a margarida inclinava-se)

era tudo tão claro, apenas aquela palavra

turvava a nitidez do dia.

olhei novamente e ela

jazia no fundo da xícara,

imóvel.

 

PAPO NO CAFÉ

e foi assim mais uma vez enquanto

tomávamos café

uma abelha ameaçava

nossa fatia de bolo

e você falava das teorias da física quântica

da força atrativa dos buracos negros

da massa comprimida das anães brancas

e agora já eram duas abelhas

— a primeira afogada

num resto de mate —

e você falava que a idéia de deus

é congênita

e falava também da teologia negativa

da teologia positiva e da teologia

neutra

— abanei o bolo e a abelha entrou

na cesta de lixo —

falava dos discos voadores

dos seres interplanetários

dos enigmas egípcios incas maias e

astecas

queria saber a minha opinião

eu ruminava um pedaço de bolo

e tudo aquilo me deixava tão cansada

 

IPANEMA EM RESSACA

há um clamor marinho

no movimento das ondas

despedaçadas

contra as pedras do arpoador

resíduos de uma cólera branca

furiosamente em direção

ao céu

 

tuas palavras

acima das nossas cabeças

negras junto às gaivotas

escoavam pelo vão

das pupilas

e eu desejava um tratado de retórica

um livro de oratória um manual de

eloqüência

ou qualquer fórmula mágica

 

ouvia-se ainda

a veemência do mar e no entanto

era preciso riscar um fósforo

no silêncio anterior

no silêncio ancestral

além do batimento de lábios

e pálpebras

 

já era a hora

quando o ambulante se aproximava

com pequenas flores de plástico

balbuciando alguma coisa

num idioma incompreensível

já era a hora

em que as palavras

- emaranhado de sons -

em que as palavras

à deriva

se despedaçavam

contra as pedras do arpoador

 

NO FUNDO DA PUPILA

o atrito dos olhos

aprisiona imagens no fundo da

pupila.

cativas figuras de sombras e sangue

arranham a córnea,

seres minúsculos forçam passagem pelos

trilhos lacrimais.

 

um cisco irremovível.

 

e são comboios de corda por dentro

da noite veloz. nervos

impulsionam barcos na extensão da pele.

 

ao redor do quarto a gravidade

cega e pulsante.

lâmina de guilhotina.

não há perigo - somente

o terror dos encarcerados -

até que a tempestade

desabe sobre o corpo. bastam

bocas e mãos

para cerrar as pálpebras.

 

ADRIANA LISBOA (1970) poeta carioca, romancista, contista e autora de livros infantis. Morou na França, passou algum tempo no Japão e vive nos Estados Unidos. Entre seus principais livros estão os romances Azul-corvo e Sinfonia em branco. Publicou poemas em algumas antologias. Seus livros foram publicados em doze países.

POR UM INSTANTE DE PENUMBRA

Há sol demais por aqui. As sombras

expatriam-se dentro das coisas, sem uma

chance. A luz é cáustica,

esta luz de inquérito sob a qual o preso

não tem outra alternativa.

Você optaria por um mundo em claro-escuro,

mas tudo se revela (pior: se demonstra,

como num laboratório, como no corpo

aberto de uma cobaia) com enorme zelo e

não admite perfis, murmúrios, vislumbres.

Essa luz medonha que se esfrega

na sua cara – o quanto você não daria

por um instante de penumbra.

Por um segundo de indecisão.

 

POESIA

Pense nela

como o dedo cavando a fresta onde

há ainda uma pequena chance,

algo semelhante à colher numa cela

de presídio investindo contra

o chão de barro: um túnel,

a vaga ideia de liberdade.

 

BLUE SUNDAY

Não me lembro se foi on a blue Sunday,

como cantava Jim Morrison em nossos ouvidos.

Nem sei quantos atalhos tomamos, depois –

o herói de Truffaut é hoje um cara sério,

e nós, que o conhecemos

da época dos nossos quatre cents coups,

das nossas tardes sem nenhuma urgência

debruçados sobre o Rio, em meio aos turistas,

envelhecemos também. Sei que não disparam

os alarmes por nós: não somos nem mesmo

vaga ameaça. Mas nesse oco mal vedado

que ficou, sigo mendicante,

e carrego meias-luas sob os olhos

enquanto aguardo os tempos mais brandos

anunciados na canção.

 

ANDRÉIA CARVALHO GAVITA(1973)  poeta curitibana, estudou ciências biológicas e produção multimídia. Atualmente trabalha com farmácia hospitalar e web design. Tem poemas publicados na revista eletrônicas Zunái, Germina e Eutomia..Publicou os livros de poemas A Cortesã do Infinito Transparente(2001) e Camafeu Escarlate (2012).  Edita o blog o hábito escarlate, http://habitoescarlate.blogspot.com/

CASA DE ORAÇÃO

nosso cálice

nossa hóstia

nosso altar

não cabe na gota

vermelha

furtada

da última ceia

de salivas derramadas

no vazio

cravejado

dos passos

que não ousamos

pronunciar

andrógino rebelde de nossas portas perdidas,

afasta de nós esta lástima

de entornar o graal

de jejuar o pão

de ser o rio sedento de esquecimento

na fome secreta

das chaves

e deixa-nos no templo

na transfusão de nós

solve et coagula

 

INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM

Conhecer-te

Foi feito abrir um livro antigo

Sabe-se das literaturas seculares

Que nos serão reveladas

No dia de um trígono celeste pardo

E era noite,

Quando os olhos são tochas de candelárias

 

AMADEO

reina a mão em minha pele

amadeo

e leve

com ígnea prece

a lamúria da injúria-veste

em breu

ao cremado manto

enfloresce lírio negro

amadeo

a palma do sudário santo

em domínio ateu

doutrinado

orvalho já devolve

à mortalha cortejada

o toque amado

de um deus

 

ABRE-TE CÉSIO

o céu é sempre azul

na dormência aquecida

da sessão das dez

os diamantes estão soterrados

muito longe da placenta

dos vulcões da parteira terra

nos cofres da sapiência

eclesiástica

ah partitura de repetidas eugenias

somos espécimes preciosos

em teus museus

bem acondicionados

na tenda dos milagres

do circo de nero

respirando o bolor dos livros sagrados

a pele esverdeada das condecorações

ah suástica

ah ansata

ah rosa obscenamente

atarracada na cruz

nos deixem de vez

na insígnia vazia

do ícone maior

de uma bíblia de safira

ainda não escrita

abre-te césio

teus olhos nirvana sobre nós

não nos deixe estáticos

em frente à TV

como se não pudesse nos ver


Publicado por Rubens Jardim em 30/06/2013 às 22h00



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