Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
19/04/2012 12h47
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA(19)

OLGA SAVARY (1933) poeta paraense, jornalista, tradutora, crítica, ensaísta Tem em seu currículo 20 livros, mais de 40 prêmios de literatura — entre eles, dois Jabutis — e traduções de Pablo Neruda, Julio Cortazar e Mário Vargas Llosa. Estréia em livro em 1970, com Espelho Provisório, prefácio de Ferreira Gullar. Seguem-se: Sumidouro(1977), Altaonda(1979), Hai-Kais(1986) e Berço Esplêndido(2001), entre outros. Primeira mulher a publicar poesia eróticas, Magma(1982).

Ser
Essa boca cúmplice e insensata
Tangendo a mais antiga e solitária ária
Na anfíbia flauta do teu corpo.

LIMITE

Ausente e lassa, queria
estar pisando
a areia fina de Arraial do Cabo,
a areia grossa de Amaralina,
em Goiás Velho urdir a tarde
com Bernardo Elis e Cora Coralina,
farejar
cheiro de candeia por toda Ouro Preto...
mas estou presa à molduras de todos os meus retratos.

Liberdade condicional

Que eu toda me torne desterro,
lugar de exílio, exílio em ti;
meu corpo é um edifício erguido
com vista para o mar, ou seja,
como o mar rodeando a ilha,
todo com vista para ti.

Que sejas a tensa corda
do arco só a atirar
– único prazer da memória –
setas não para a altura
mas em única direção
abaixo da minha cintura.

E te amo morto ou vivo
com a certeza de quem sabe
do grande fogo das vísceras,
cartas marcadas de risco,
cujo mapa é só abismo,
precipício onde se cai.

de mãos dadas com o perigo
e as sete quedas de vício.

MAR I

para ti queria estar

sempre vestida de branco

como convém a deuses

tendo na boca o esperma

de tua brava espuma.

Violenta ou lentamente o mar

no seu vai-e-vem pulsante

ordena vagas me lamberem  coxas,

seu arremesso me cravando

uma adaga roxa.

DARCY DENÓFRIO (1936) poeta goiana, professora universitária, ensaísta e autora didática.Estréia como poeta com o livro Voo Cego(1980) que conquista o prêmio Cora Coralina/UBE em 1982. Seguem-se outros: O risco das palavras(1982), finalista da I Bienal Nestlé de Literatura; Amaro mar(1988) e Ínvio Lado (2000).

O RISCO DAS PALAVRAS

Ah! a miséria da oficina das palavras!
Onde pescar a que melhor convém?
                                       Maiakovski

Diante de você sempre emudeço.
Tenho as palavras batendo, ba-ten-do
ao peito mais que à garganta.
Mas é tão grande o risco das palavras
que, delas, finjo que me esqueço. 

Ah, as palavras, se não houvesse o risco,
eu diria todas, tropeçando em pedras
como algumas cachoeiras, mas jorrando
sem parar a urgência de suas águas. 

Mas as palavras acordam até mesmo 
os deuses mais adormecidos
e é melhor não dizê-las, guardá-las
como pedras, mesmo ferindo o peito. 

Se eu não as disse algum dia,
alguém lhe dirá sem medo do risco,
porque há os que abrem as comportas
e extravasem sem reservas suas águas. 

Mas eu sou dessas barragens
que não se entregam nem extravasam,
mesmo com a maior das enchentes.

POEMA DA DOR SEM NOME

Essa mágoa

dói tão fundo

como se houvesse

perfurado o abismo

interior de meu  mundo.

 

Dela, não serei vassala

só quero lançá-la

como um fio infinito

que se joga no abismo

até vomitar de vez

o início da ponta.

 

Depois, chegar

à íntima alegria

sem sentir a broca

perfurando a rocha

de meu poço artesiano.

 

À alegria de alcançar

as águas tranquilas

minhas mais profundas

reservas humanas.

 

E ouvir o íntimo silêncio

águas entre rochas calcárias

sem nenhuma pressa

águas que não estremecem

nem trincam

                     o espelho da alma.

PONTO FINAL

Se não há mais nada a fazer

é isto mesmo - em frente.

Não importa a direção

a que se ande (já disseram)

desde que seja para frente.

Se a última palavra

já foi pronunciada

não cabe vírgula

nem outros sinais de pontuação

a não ser o ponto final

ENFRENTE!

LENILDE FREITAS (1939 ) poeta e  tradutora paraibana, com formação acadêmica em literatura. Seis livros publicados: Desvios (1987); Esboço de Eva (1987); Cercanias (1989); Espaço Neutro (1991); Tributos (1994) e Grãos na Eira (2001). Conquistou alguns prêmios literários: "All Nation Poetry Contesf (USA);  "Prémio Emilio  Moura de Poesia” (MG),"Augusto dos Anjos" (PB), "Arriete Vilela" (AL), “Prêmio Pasárgada” (SP), “Nestlé de Poesia” (SP).

A Fernando Pessoa

Não é disso que estou falando
nem do silêncio presente nesta sala
em que os pensamentos entram
igual moscas e pousam onde querem.
Não é disso
nem de tarde que mastiga devagar
o que resta da hora
e o vento procura, procura
lá fora não se sabe a quem.
Falo do teu sonho
ancorado nas alturas
e desta porta aberta
a esperar ninguém

A Florbela Espanca

Conheço a casa
onde o acordar é infeliz

Na mesma rua, outras casas cintilam
no matiz em que os sonhos aterrissam

Um pássaro cuja plumagem é um pincel
voando torto despinta o céu

A casa que eu conheço
chove por dentro

enquanto a alma
de que lá mora

trinca no centro.

Aquário

O amor em mim
está maduro como um peixe.
De tanta água repleto,
ele não nada.
Pesado cochila sob pedras
— completo.

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS(1944) poeta soteropolitana, contista, teatróloga, professora universitária, pesquisadora e ensaísta. Fez mestrado em teoria da literatura na UFBA e doutorado em literatura comparada na Universidade da Califórnia. Estreou em livro com Chão Circular (1970) que recebeu Prêmio Arthur Salles.Seguem-se os títulos ABC re-obtido(1974), Os Eternos Tormentos(1986) e As Esporas do Tempo (1996).

Luz inesperada

Preparei a casa para te esperar:
procurei nos cantos o passado
e engastei-o à soleira da porta,
petrificado em dor, mas refulgente.

Não foi necessário mudar de casa
para te esperar. Bastou a tua vinda,
ainda de madrugada, para que tudo mudasse,
e a lua crescente surgisse ao meio dia.

A cama está feita, a mesa está posta,
nas compoteiras brilham sobremesas
feitas para adoçarem a tua boca
quando a vida amargar, travar-se o riso.

Meu corpo não é o mesmo de ontem,
mas é mais virgem, através das horas,
que me apartaram de outros desejos
dos quais me afasto, emigrada de mim mesma.

Foi gratuito o teu chegar. Por isso fica:
permanece em mim e esquece a lágrima.
Te esperei para chamar-te "meu amor",
embora ingressem em minha voz e corpo

antigas sereias, com pentes de espelhos,
a retrançar meus cabelos destrançados,
e te convidem para o sábio mergulho
onde habitaremos: nós e o tempo.

Escuta

Ocorre que há uns lapsos na história,
há uns lapsos. Então vêm, videntes,
relatar histórias conhecidas
em noites longas de calor, insônia.
Ouvimos. Pacientemente.
Sob discursos jazem outras vozes.

Necessário cantar.
Animais se aninham ao nosso ânimo,
baixam seu brado à espera da canção.
E os leões de pedra dos portões
deixam rolar os globos que os sustentam.

Falamos línguas obscenas.
Não. Endureceu-se o ouvir.
Indefinidamente?
Afrontar a rija espada dos confrontos,
permitir soluços, se o peito arfa
curvado de rajadas imprudentes.
Se não se deixa a alma nesses lances
em que transidos vagamos dementes,
como afrontar as rugas, decifrar mensagens
(não correm ventos nas paisagens mortas,
largadas ao relento)?

Necessário é amar.
Primeiro e último tormento.

Anunciação

Anunciar.
Lembra-me o encontro,
vez primeira
em que vi teu rosto no entanto oculto
por tanta e tão espessa bruma.

Tarefa de dizer.
Pedi a tua vinda,
supliquei às garras do tempo
o teu encontro.

Vieste,
a indesejada das gentes,
vieste
e te alojaste à flor
do lábio que não abre.

Tomei a iniciativa.
Ou fui, ao revés,
tomada pela iminência,
essa ganância,

essa arrogância,
essa demência,
que se aloja na garganta?

Pouco importa.
Necessário sonharmos juntos.

Vieste,
apesar da hesitação
nas fontes hostis
da História.

Doçura de ficar
em tua sombra,
permitida dessa luz
inesperada,
que me arrasta
em surtos de violência

Anunciação.

 


Publicado por Rubens Jardim em 19/04/2012 às 12h47
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26/03/2012 20h21
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (18)

ELIZABETH LORENZOTTI,  poeta paulistana, jornalista, escritora, fez mestrado em comunicação (USP) e é doutoranda em literatura brasileira. Passou a infância em Poços de Caldas(MG) e voltou pra lá no ano passado.  Está iniciando carreira acadêmica. Publicou Suplemento Literário-Que falta Ele Faz!, Tinhorão, o Legendário e o livro de poemas As Dez Mil Coisas(2011).

Visita

No estranho caminho de Santiago
os magos perdem as botas
e as mulheres ganham sandálias de saltos altos

Nas veredas
Saltitam
Gaviões e passarinhos

Criado-mudo

O rosário de jade sobre a Teogonia
O livro de Leonardo
Meu caderno de sonhos
Cristais de gengibre
A caixinha de Alhambra
A pedra cor-de-rosa
O hexágono da China
Potinhos de pedra-sabão de Minas
A obra em negro
Os escritos de Blake:

Tudo existe porque tem um nome

Declaração

Abúlica, nevrálgica, efêmera
Helênica, epidérmica, esdrúxula
itálica, inédita, neófita
ínclito, másculo, cáustico
seráfico, trópico, feérico
Amor às proparoxítonas

Visita

Fincado nos píncaros
majestoso enigma
espreita, de perfil

Memórias de cordilheiras
em meio à neurose

Incorruptível


no secular vício da carniça
observa o ciclo da caça

Ruídos esganiçados não te assustam
Parabólicas captam todas as aparências

Excluído do olhar humano
Impassível urubu urbano

RITA MOREIRA (1944) poeta paulistana, autodidata, estreou muito jovem, com o livro Maria Morta em Mim(1962). Seguiram-se A Hora do Maior Amor (1965) e Perscrutando o Papaia (1999). Recebeu elogios de Menotti del Picchia e Paulo Bonfim. Durante vários anos foi redatora da Abril, morou em Nova Iorque e tornou-se vídeo-documentarista de sucesso..Muito jovem foi letrista parceira de Paulinho Nogueira (Moça da Chuva e Historinha, entre outras).

IPSIS

A palavra é ainda

a mais sublime invenção.

Mas tem tanta coisa linda

que escapa à nomeação!

 

HIMALAIAS

Mulheres fortes, centradas,

essas mulheres maduras

eternamente animadas

dum fogo que rodopia

pra além dos filhos criados,

dos romances resolvidos,

peagadês concluidos,

himalaias escalados...

 

E esse olhar sem pensamentos,

o caminho aberto em frente,

com tanta promessa linda

de mais himalaia ainda.

Energia tão valente

que nem sabe o quanto é.

Essas mulheres fortes

que sabem cair de pé,

que sabem fazer os cortes

nos momentos mais precisos

de repente tão suaves

desmanchando-se em sorrisos...

 

Mulheres firmes, inteiras,

que se preocupam com o mundo,

bem além dos próprios netos.

Que sabem da dor das aves

cobertas de óleo nas praias.

Da mudança necessária

nos hábitos de consumo.

Da importância nenhuma

dos elogios ou vaias.

Da tragédia dos sem-teto,

dos problemas de afeto

das irmãs e irmãos mais frágeis.

Essas mulheres tão ágeis,

tão presentes, tão futuras,

não se perdem em procuras

nem tem temores noturnos.

Não tomam Prozac, calmante,

não vão no que as mídias ditam.

Desprezam intoxicantes –

religiosas, meditam.

 

-- As almas dessas mulheres

tão retas e iluminadas,

por mãos de que outras mulheres

terão sido torneadas?

 

Sherazade

Proibida no edifício

a cachorra da velhinha

na verdade não existe.

Mas em noites mais escuras

a senhora, muito  triste,

fecha  os olhinhos cansados

e não reza ave-marias

como fazem as vizinhas

com quem tem pouca amizade.

Chama  o nome que inventou

-- Sherazade,  Sherazade! --

e sente nas mãos manchadas

amorosas  lambidinhas.

 

MÃE MODERNA

Mesmo longe, a viajar,

sempre comigo.

Pendurados no celular,

neo-umbigo.

 

MÁRCIA MARANHÃO DE CONTI (1957) poeta maranhense, passou um período da infância em Goiânia, residiu em São Paulo e atualmente vive em Goiânia. Estudou piano, é formada em nutrição e em direito. Já participou de antologias e concursos, sendo várias vezes premiada, inclusive no 5° Prêmio Nacional de Poesia - Cidade Ipatinga com o 2° lugar (2007). Teve três poemas selecionados no concurso Poemas no Ônibus e no Trem, promovido pela prefeitura de Porto Alegre. Publicou o livro de poemas Luar nos Porões (piano mudo), em 2011.

Enfrentamento

Abro a frase devagar

Como se abrisse um lenço

Que guardasse um segredo mofado.

 

Leio afastando cada sílaba,

Na tentativa inútil

De romper todo o sentido.

 

Depois de ler essa verdade

Que tentou se inscrever

Num insight de coragem

 

Acovardo-me.

Fecho o lenço...

E enxugo meus olhos.

 

Um poema no ônibus

Parece que a cidade passeia,

E o pensamento espia a palavra.

Há um poema que vagueia,

Versos virando paisagem.

 

Parece que a janela me leva,

E o poema levanta os olhos.

Não sei se fico ou viajo.

Vou nas palavras e volto.

 

Parece que tudo é passagem.

O poema beija meus olhos.

 

A ninhada

A ninhada de palavras

Não me deixa dormir.

Ser poeta é suportar os peitos

Inflamados

E deixar a linguagem sugar

Até sangrarem os bicos.

 

Vestígios

Meus acasos não povoam

Páginas de dicionários.

São trilhas que transcendem

A leveza dos passeios.

 

As palavras são rastros

Deixados no cimento fresco.

Nem que eu falseie os passos,

Minto comigo, nos versos.

 

As palavras são pérolas

De um colar que nunca tiro,

Criadas nas conchas antigas

Dos mares que habitam em mim.

 

Águas sem caminho

I

Ao atracar no meu porto,

Não me reconheço,

E a cidade não existe.

Não há quem me busque

Ou me convide.

E o tempo de espera,

Esse não finda.

Olho infinitamente pro mar,

Que me atrai, mas não me conduz.

Não há caminho nas águas.

E na verdade não há navio.

II

À beira do meu mar,

Espero o teu navio.

Move-se o horizonte

No manto das ondas, espumas.

No movimento do medo,

Deixo um chorinho

Tocar os meus olhos.

Vultos e velas, barcos distantes.

O pensamento suplica o agora.

Desisto da longa espera

E olho ao redor:

Meu continente é de águas,

Se o teu navio não volta,

Me afogarei, pois não nado.

III

Eu me afogo em meu próprio oceano.

E me encharco deste sal que é meu.

A água que eu engulo é que me mata,

Levando a lucidez que me perdeu.

IV

É que a palavra não pode abarcar

A extensão deste mar que me invade.

Não avisto terra em confins nenhum.

Já não me sobra espaço em mim mesma.

Quero arranhar o céu para ver se enxergo

Luz que me leve à orla da vida.

Estou s

u

b

m

e

r

s

a

Imóvel e patética.

Gritar não consigo,

Não sei o que grito.

E a fala me foge

No momento exato.

Não há fôlego, vencida no mar.

É luta vã salvar

                      O corpo do verso.

 

 

CARMEN SILVIA PRESOTTO(1957) poeta de Po rto Alegre, escritora, psicanalista, professora de língua portuguesa e literatura clássica, agitadora cultural e editora. Publicou, dentre outros, Dobras do Tempo (2001) e Encaixes (2006), Postigos (2010) e um grande número de crônicas, photoPoemas, photoCrônicas em espaço que mantém na internet: Vidráguas. É aí que ela divulga outros autores, livros e principalmente poemas. Com um empenho e uma dedicação inquestionáveis.

Holografias

Velhos fantasmas
transmutam olhos em caleidoscópios.

Fantasiosa
adorno-me das criaturas.

Saudosa
bordo-me de alguns retalhos.

Numa ilusão de ser
reflito figuras no céu.

Cúmplice pisco à Lua
pela colcha de retalhos que me devolve.

 

Névoas

Cinzas
passado
Suor
e lágrimas

Nada é domável
durmo em sonhos não vividos

Esqueci meus luares imaginários

O último trem levou o lenço
e ainda aceno pelo teu beijo.

 

Pisares

Existe um sono a que chamo silêncio

Velho mapa
de onde voam meus pés
vento

em que me espelho momentos

existe um tempo em que desperto memórias
terras

em que calço meus rastros
fendas
onde soluço meus ossos.

 

O Amor...

O amor é este letreiro
em que todos os dias
reVerdeces olhares

de mim em ti…

O amor é este tabuleiro
em que todos dizeres
te acompanham no dito

e para que não sejamos contradito…

Psiu!
:
pisco e digo
te amo

O amor é poesia
este tempo no espaço
tempAço
onde me dizes
não ser…

 



 


Publicado por Rubens Jardim em 26/03/2012 às 20h21
 
08/03/2012 11h46
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (17)

ELIZABETH HAZIN (1951) poeta pernambucana, doutora em teoria literária pela USP já ensinou nas universidades federais de Pernambuco e Bahia e atualmente dá aulas na universidade de Brasília.Participou do Festival Internacional de Poesia, em Copenhagen. Estreou em 1974, com o livro Poesias. Outros títulos: Verso e Reverso(1980), Casa de Vidro(1982) Arco-Íris(1983), Espelho Meu(1985), Martu(1987 premio Rio de Literatura) e o Arqueiro da Lua(1994).

 

O melhor está sendo feito?

Não.

Perdido nas esquinas

sugerido nos desejos

o melhor não tem mais jeito.

 

É o pão que não comemos

mas amassamos

esse vinho derramado

que não bebemos

todo amor que não amamos

— imaginado —

é sempre o que não fazemos.

 

o melhor nasce desfeito

ou nos desfaz em mil momentos?

 

Não Escute

Não escute meu choro

quieto:

eu sou um deserto

e preciso chorar

 

Não escute meu amor

fugidio:

eu sou um rio

e preciso passar

 

Não escute meu sorriso

constante:

eu sou um instante

e preciso durar

 

No espelho I

Sombra fugaz num túnel sem fim

o tempo passa despercebido

passa de mim a outro espelho

eu defronte de outro (eu mesmo?)

um espelho no espelho no espelho

somos nada ao infinito das vezes.

Descubro um Narciso de repente

em mim. Debruçado sobre mim

me vejo mil vezes repetido:

o mundo é só um túnel de vidro.

Mas que imagem vale esse vazio

sem rosto quebrando a solidão

que corta meu corpo como um rio

sem nunca alcançar meu coração?

 

DAGMAR BRAGA (1952) poeta mineira, professora, formou-se em letras pela PUC, especializando-se em literatura brasileira. Depois fez pós-graduação em jornalismo. Atualmente trabalha como revisora de textos e é responsável pelo espaço cultural Letras e Ponto, onde também ministra oficinas de literatura.Estreou em livro recentemente, 2008, com Geometria da Paixão, finalista no prêmio Jabuti de 2009.

 

CONSTRUÇÃO

Lanhada a pedra,
faço-me fio,
partilho, rasgo
entranha e estranho.

Quebrado o leme,
desoriento,
acolho vento,
maré e abismo.

Cavado o poço,
torno-me água,
mão retorcida,
lisura e barro.

Feito o silêncio,
lasso a palavra -
gume sequioso
de outra navalha.

 

Arqueologia

removo o pó dos sonhos

convoco oráculos

deuses

pitonisas

remonto a um passado

indecifrado

labiríntico

 

descerro véus

– é tua esta sentença?

 

como dói escavar este argumento

o nó                 o laço              o texto

 

quando somos nós mesmos

subterrados

 

MADRUGADA

quando em silêncio arde o desespero
teu rosto assoma

 

tua mão acolhe o fogo e me desata
o descompasso

 

o dia serpenteia na garganta
um poema grita
germinando luz

 

DENISE EMMER (1956) poeta carioca, ficcionista,compositora, cantora e instrumentista. É formada em física, violoncelo e fez pós-graduação em filosofia. Já publicou 13 livros, dez de poesia e três romances. Estreou muito jovem, com Geração de Estrela (1975) e a sua obra mais recente, Lampadário(2008) conquistou o prêmio ABL de poesia.Compôs para trilhas sonoras de novelas e já ganhou até disco de ouro. Outros títulos: O Inventor de Enigmas(1989), Cantares de Amor e Abismo(1995) e Poesia Reunida(2002).

 

Das rochas escuto rimas
Deixo que passem pássaros
As palavras as vertigens
Não me aproprio ainda
Do seu imprevisto canto
Escalo a página em branco.

 

PROSA CANORA

Meus pensamentos nem sei
Vieram de estrelas tristes
Invento o que não existe
Para enganar minha alma

Invento a morte sem ossos
Escrevo auroras em lápides
Pastoro as águas da tarde
Para tecer mais um dia

Em minha roca sombria
Costuro uma blusa eterna
Colchas claras de lanterna
Para tecer mais um dia

Vou além da alta noite
Além das cruzes em quadras
Ausências extraviadas
Meu verso em ti amanhece.

 

AS GALÁXIAS

As galáxias

se expandem

e nem ouvimos

seus gritos

 

os labirintos

se aprofundam

sem que saibamos

seus números

esperamos

que um cão azul

decifre

o infinito

 

e que nos esclareça

a álgebra

do abismo

 

a lógica

do insondável

 

a física

do ilimitado.

 

Por que é tão dramática

a visão de um céu estrelado?

 

DA MORTE

Os mortos não sobem aos céus

nem elevam-se abstratos

tornam-se apenas retratos

lado a lado nas paredes.

 

Retrato do avô imóvel

austero e silencioso

do tio tuberculoso

que esquivo me espia.

 

A avó já está fria

mas me olha com ternura

tece uma colcha escura

para as bodas da família,

 

Mortos não sobem trilhas

de inconsistentes arranjos

não viram anjos nem brisas

nem cristos nem assombrados.

 

Sequer passam dos telhados

sequer vão a outros mundos

quando morrem se enraízam

e se alastram é pelos fundos.

 

Não lhes peço algum milagre

também não lhes rogo bênçãos

de dentro de seus quadrados

não podem mover o Tempo.

 

Quadros em salas quietas

emoldurados cinzentos

memória em fragmentos

— as vezes nem lhes percebo.

 

ELISA LUCINDA (1957) poeta capixaba, jornalista e atriz, é uma das primeiras vozes poéticas do Espírito Santo a cantar a negritude .Já fez incontáveis recitais divulgando seus poemas.Montou uma peça com seus poemas e ficou 6 anos em cartaz. Criou a Casa do Poema, no Rio , a TV Escola Lucinda de Poesia Viva e mantém um site na internet com parte expressiva de sua obra. Estreou em livro com Aviso da Lua que Menstrua (1990). Seguiram-se Sócia dos Sonhos(1994) O Semelhante(1994) e A Fúria da Beleza(2006).

Aviso da Lua que Menstrua

Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.

Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia

Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita...

Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.

Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.

Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.

Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.

Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos...
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.

Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente.

Ela é uma cobra de avental.

Não despreze a meditação doméstica.

É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofia
cozinhando, costurando
e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...

Você que não sabe onde está sua cueca?

Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.

E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.

São duas dignas vizinhas do mundo daqui!

O que você tem pra falar de vaca?

O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.

Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.

Tá, não, homem.

Tá citando o princípio do mundo!

 

Zumbi Saldo

Zumbi, meu Zumbi.
Hoje meu coração eu arranco
Zumbi hoje eu fui ao banco
E ainda estou presa
Escuto os seus sinos
e ainda estou presa na senzala Bamerindus
Presa definitivamente
Presa absolutamente
à minha conta
corrente.

 

Au Gratin

Fumo um cigarro fino
Como um palito
O calor do Rio é ridículo
Calor de chuva enrustida
Calor do céu oprimido
De inferno mar resolvido
Que não sabe se queima esse cara
Ou o assa ao ponto
Um calor filho da puta
Um calor de estufa
E eu sem nem ser judia
Sofro aos pouquinhos
Sofro esse zé pagodinho
Ardo nesse pecado que não cometi
Nesse forno onde me meti
Por uma apimentada dica
De um nordestino
Que me mostrou uma placa citada, tinhosa:

"CIDADE MARAVILHOSA"

Eu vim.

 

 


Publicado por Rubens Jardim em 08/03/2012 às 11h46
 
12/02/2012 21h22
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (16)

LUCILA NOGUEIRA (1950) poeta carioca, ensaísta, contista,crítica e tradutora. Tem vinte e dois livros de poesia publicados. Estreou com Almenara(1979)e já obteve o prêmio Manuel Bandeira do Governo de Pernambuco. Essa mesma premiação foi conquistada, em 1986, com o livro Quasar. Eis alguns títulos de livros de Lucila: A Quarta Forma do Delírio(2002), Poesia em Medellin(2006), Poesia em Cuba (2007) e Casta Maladiva(2009). Foi a primeira brasileira a participar do festival internacional de Poesia de Medellin, em sua XVI versão. Vive no Recife.

 

Falarão meus poemas pelas ruas

de cor como receita de viver

e aqueles que sorriam pelas costas

recitarão meus versos sem os ler

 

Falarão meus poemas pelas ruas

de cor como receita de viver

dirão que fui um mar misterioso

onde quem navegou não esqueceu

 

Falarão meus poemas pelas ruas

de cor como receita de viver

dirão que era poesia e não loucura

meu jeito de sonhar todos vocês

 

Falarão meus poemas pelas ruas

de cor como receita de viver

perguntarão por que vivi tão pouco

sem dar-lhes tempo de me perceber

 

        — e aqueles que sorriam pelas costas

        recitarão meus versos sem os ler

 

POEMA DAS MÃES

Para Lygia, Natália, Marina e Almenara

 

AS MÃES SÃO BONECAS QUEBRADAS QUE NÓS ESQUECEMOS NO SÓTÃO

UM DIA FORAM ROMÂNTICAS E AMARAM DESESPERADAS

RESPEITEM O SEU SEGREDO QUE EXPLODE EM SÚBITAS LÁGRIMAS

EMBORA PAREÇAM ESCRAVAS TODAS POSSUEM UMA ALMA

 

NA VERDADE SÃO MULHERES QUE SONHARAM APAIXONADAS

E UM DIA SEM TER REMORSOS DESPEDIRAM-SE DE CASA

NA VIDA E NO ROMANCE SÃO ESTRANHAS PERSONAGENS

PERDIDAS DE SEUS VOLUMES NA POEIRA DAS ESTANTES

 

EU SOU A QUE ENSAIOU O VÔO MAS PERMANECEU NA PRAIA

AQUELA QUE CRUZOU O PORTO MAS VOLTOU NA HORA MARCADA

SALVOU-ME A MARESIA DO CONVÉS DOS TRANSATLÂNTICOS

E O HÁBITO DE REGER OS PÁSSAROS AO CHEGAR A MADRUGADA

 

OS PARTOS COBRIRAM MINHAS ASAS DE RAÍZES E FOLHAS DE ÁRVORES

E TRÊS ROSTOS DIFERENTES COMPLEMENTAM MINHA FACE

O JEJUM ME DEVOLVEU A PRIMEIRA VIRGINDADE

E EU ME TORNEI A MÁRTIR DE UMA ESTÓRIA EXTRAORDINÁRIA

 

AS MÃES SÃO APENAS MULHERES ASPIRANDO À DIVINDADE

O ESPÍRITO DE AVENTURA SUBLIMADO NA PAISAGEM

CRITICADAS POR SUAS FILHAS SOBREVIVEM COMO FADAS

SÃO AS PRIMEIRAS MURALHAS QUE DESEJAMOS QUEBRADAS

 

ASSIM COMO ESSAS BONECAS QUE NÓS ESQUECEMOS NO SÓTÃO

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Estou mais para Elis e Janis Joplin

Florbela Espanca, eu sou Virginia Woolf

amante de Essenine e Sá-Carneiro

sobre os campos; de trigo de Van Gogh

 

Compreendo mais Holderlin e Nietzsche

que a loucura de Kant ou de Descartes:

tudo que em mim pareça comedido

não passa de uma máscara de vidro

MARIA RITA KEHL(1951) poeta paulista,psicanalista, ensaísta e jornalista, tornou-se figura pública muito conhecida e atuante. No ano passado, ganhou o Jabuti com seu livro O Tempo e o Cão, a atualidade das depressões. Já publicou três livros de poemas: Imprevisão do Tempo(1979),O amor é uma droga pesada(1983), O Tempo do Desejo(1983) e Processos Primários(1996) Participou de várias antologias e desenvolve seu pensamento crítico em livros, crônicas,conferencias, entrevistas e em seu blog (www.mariaritakehl.psc.br/)

Mato Grosso

Meu irmão é um cowboy guiando a kombi
calado,
premonitório.
Ele atravessa os véus dourados de poeira
estendidos na estrada a dois palmos do chão.

Outra vez é essa hora do dia
quando o olhar procura os últimos sinais de luz
entre a faixa violeta dos morros e a unha da lua

outra vez essa hora que unifica os mundos.

e em Minas Gerais, no Mato Grosso, litoral paulista,
em Manhattan que eu não vi, campos tristes,
outra vez, é essa hora,

quando as coisas se lamentam.
choro de bois, sinos graves,
mulher louca de sexo e tédio
desolada
porque tudo é tão lindo e nenhum deus existe.

Corte de cabelos para ficar triste

Tipo faça-você-mesma. Trabalho incansável.
Pode durar uma noite -- ou mais -- fio por fio --
a memória na ponta da tesoura,
obcecada,
Medo crescente. Medo até a paixão.
Ou até conferir pelo espelho:
aquela lá morreu mesmo.

Caminhar no escuro

À frente, nem o vulto de uma luz.

Breu sem meias medidas.

Atrás, nada que faça lembrar

o percorrido.

Só o coração, na caixa preta,

vibra a agulha da bússola.

Caminha-se assim,

nem tanto a esmo:

pode-se dar um nome a cada passo

assim como a cada dia

com seu colar de minutos

sua falta de começo

sua falta de fim.

 

BERENICE SICA LAMAS(1949) poeta pelotense (RS), psicóloga, professora universitária e orientadora  de oficinas no Scrivere –espaço de criação literária. Ocupa cadeira na Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul. Já participou de várias antologias e estreou em livro em 1999, com Morder a Polpa. Outros títulos:  Ãngulos e Dobras(2000).Inventário de Ausencias(2004) e Ampulheta (2007).

 

na solidão das palavras
                me confundo descalça
                                     sem pés
                   o espírito assopra
                 me dilacera
sombra que ajuda a perder-se
curso d'água errante

extravio-me
         de mim
soçobro baralhada feito carta

ondas de fogo
           me caruncham
           e o gelo pertinaz
                     de sempre

gestos estranhos a mim
                se perdem no bosque
                             das palavras

                um pavor de não ser eu mesma

Quinta

crianças se revoltam
no parquinho
lutam para se livrar das mães
opressoras

passantes cumprem seu papel e
passam
pássaros não voam às estrelas
na tosca aldeia

e o pinheiro
adentra galhos
ao shopping
dio mio, árvores
aderindo ao consumo?

.......................................................................................................

o perigo do
caos interno
estilhaços
vazios
são navios
atracados
porto inseguro
viagem à vista
no veludo das mãos
na pata do tigre

na unha afiada e
filósofa

 

ZULEIKA DOS REIS (1949) poeta paulistana, formada em letras pela USP, é professora do ensino fundamental. Estreou em livro com Poemas de Azul e Pedra (1984), muito bem recebido pela crítica. Seu segundo livro, Espelho em Fuga (1989) foi prefaciado por Álvaro Alves de Faria e mereceu apresentação de Carlos Felipe Moisés e Caio Porfírio Carneiro. Participou de várias antologias de haicai.

 

PRIMAVERA

Da página aberta
salta uma pétala seca:
Primavera antiga.

 

VERÃO
Cartão de Natal.
Jesus ainda está dormindo
no colo de Maria.

 

OUTONO
O velho espantalho
e o menino da cidade.
Ambos espantados.

 

INVERNO
Sem força nas asas
O marimbondo de inverno.
Sonhos do passado.

 

PARA ELIS REGINA

(Escrito no dia, mês e ano de sua morte, em 19 de janeiro de 1982)


Estavas aqui
há tão pouco...
Já não estás.
Será que já não és?
Tua voz me percorre
tua coragem
tua presença e tuas fugas
teus ritos
teu concreto e miragem.

O pouco do tempo que ficaste
vira caleidoscópio
do tanto que foste.

Aos poucos, muito aos poucos
vou aceitando
a certeza dessa ausência imprevista
vertigem, soco na alma.

Aos poucos, muito aos poucos
te sentirei
flor desabrochada
noutro espaço
que não sabemos.

Pássaro
voa sem medo
sem medo amplia
para além da garganta
os limites humanos
do teu canto.

Saudade
aceita em paz
os ritos desta passagem.

........................................................................................................................

O pássaro-pássaro

não sabe das estações

nas aprendi nomes

e o que sei deste momento:

Quero florescer no outono.


Publicado por Rubens Jardim em 12/02/2012 às 21h22
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29/01/2012 19h41
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (15)

YEDA SCHMALTZ (1941-2003) poeta e ficcionista pernambucana, ensaísta e expert em artes plásticas. Já morou em Recife, Rio e viveu muito tempo em Goiânia, onde faleceu prematuramente. Dedicou-se à docência superior nas áreas de estética, história e sociologia da arte. Estreou em livro com Caminhos de Mim (1964). Já publicou mais de dez livros de poemas e recebeu vários prêmios (APCA,1985; Remington-RJ, 1980). Alguns títulos: Anima Mea(1984),Prometeu Americano(1996), Vrum(1999) e Chuva de Ouro(2000).

Cavalo de Pau

Quando amo, sou assim:
dou de tudo para o amado
— a minha agulha de ouro,
meu alfinete de sonho
e a minha estrela de prata.

Quando amo, crio mitos,
dou para o amado meus olhos,
meus vestidos mais bonitos,
minhas blusas de babados,
meus livros mais esquisitos,
meus poemas desmanchados.

Vou me despindo de tudo:
meus cromos, meu travesseiro
e meu móbile de chaves.
Tudo de mim voa longe
e tudo se muda em ave.

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando:
um pandeiro de cigana
com mil fitas coloridas;
de cabelo esvoaçando,
a Vênus que nasceu loura.
(E lá vou eu navegando.)

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando,
enchendo-se os braços curtos
e o amado vai se inflando.

— O que de mais me lamento
e o que de mais me espanto:
o amado vai se inflando
não dos mitos, mas de vento
até que o elo arrebenta
e o pobre do amado estoura.

(Nenhum amado me agüenta.)

AMOR DE POETA

Quando começo
eu sou terrível: tema.
Um poeta é aquele
que faz um poema
de nenhum assunto,
o que se alimenta de nada,
o que morre de medo
mas fica gratificado
com tudo.

Contudo,
não permita o início: corte.
Caia num precipício.
Melhor a morte à rima,
ao forte amor danado
de um poeta,
amor melífluo e obsceno.

E todo o amor do mundo
fica muito pequeno
se houver comparação.

(Que estou fazendo no mundo
com este nome alemão,
este ar desconfiado
e essa cara de quem
vê cara, não vê coração?)

*

Ser poeta
Ter sol, malícia,
solenidade e insolência.
Calo no dedo médio
são os ossos que me embrulham
neste ofício intenso que me esbulha.
Carregar um nome comigo,
esta letra vazia, carregar
esta palavra tão pesada,
que te ilustra
como a última palavra
não escrita
Ter fúria
e o avesso desnudado,
anotando somente o necessário
e a muito custo mesmo
re/velá-lo.

AGLAIA SOUZA (1943) poeta carioca, contista, musicista e professora universitária. Participou de inúmeras coletâneas de poesia e de contos. Estreou em livro com Gota de Barro (1982). Além desse livro, tem publicados os seguintes títulos: Artesã(1989), Murmúrio(1993), Rondó ao Mar(1996) Canção Tagoriana(2000) e Cantaria (2010). Vive em Brasília.

O espelho

O espanto do idoso frente ao espelho
justifica o tempo que parou —
dentro do peito e da mente insone.

Onde fica o tempo que passou?

CANTARIA

Estou indo bem mais velha:

Maranhão me envelheceu.

 

Suas ruas, suas casas,

onde o passado ainda mora,

criaram raízes, lianas,

azulejaram as paredes,

ruíram caibros e tetos,

musgos nasceram nos becos.

 

Estou levando comigo

Maranhão feito em pedaços.

 

Suas pedras, suas portas,

seus licores, suas frutas,

camarões, peixes enormes,

a fala mansa, sem pressa,

os livros (tantos poetas!),

seus rios cheirando a mar.

 

Estou indo assim saudosa

do tempo do Maranhão.

CANTABILE

O chão canta

um canto de dor

se passa, rasteiro,

passageiro cantor.

 

A voz leve

enleva e some:

só fica nos ares

um aroma e um nome.

CONQUISTA 

Tua maré:
sobe e inunda
o porto
o cais
o veleiro
e te deixa
sabendo a sal.

EULÁLIA MARIA RADKE (1949) poeta catarinense, compositora, teatróloga e jornalista. É presença atuante em seu meio cultural.Já morou em Blumenau e vive em Curitiba.Estréia em livro em 1980, com Espiral, que teve apresentação de Lindolf Bell. No livro seguinte, O Sermão das Sete Palavras(1986) ganha o prêmio Luis Delfino de Poesia. Eulália já coleciona vários prêmios e distinções.Destacamos:premio Ferreira Gullar, concurso nacional de poesia do Paraná; premio Mário Quintana, Alegrete, RS. Publicou em 2000, Lavra Lírica.

ATEMPORAL  JARDIM
                                                 
Nenhum tempo existia
nos altares de tua terra interior
Nenhuma distância
entre teus gestos de partilha
e o amor incondicional.
Em tua bagagem
conheci a paz de quem recolhe frutos
para ofertá-los
Em teus olhos
um sino sonante regendo luz
nos caminhos dos que te procuravam.
Em tua voz
 o canto da liberdade
-ainda que de silêncios.
Em tua garganta
um choro fechado por um amor mudo.
Em teus lábios
o riso largo pinçado de pequenas ternuras
e grifos de humor.

Ontem,
Dionísio bateu em minha porta.
Grafou em minha quietude
a notícia de  tua morte.
Espalhando flores de fogo
apontou o infinito
lá onde gravitam os místicos
onde dormem os sátiros
Ofertou-me flores risonhas
                      outras quase maduras.
Disse que te encontraremos em Epidauro
sob o reposteiro d'uma grande arena
- é lá onde brilhas
  eterno e sonoro.

 (Homenagem a Carlos Roberto Jardim, que durante anos fez público para teatro em toda Santa Catarina, dirigindo a Cia Vira Latas de Teatro.Pessoa especialíssima em entretenimento cultural da cidade de Blumenau)

POEMA 4

A maestria dos erros sombrios
vertidos, quebrantados, modular
cadencia na ordem dos fins.

A memória logra pentímetros
contrafaz num olhar de cataclismo,
atrozes e cínicas evidências.

Ruminamos, subjugados, a memória
regemos em notas, abismos
ritos desmesuráveis, entorpecidos.

As solidões são nossas vítimas,
amargamos tornados nulos
silenciando particípios e gerúndios.

A DANAÇÃO DO RISO

Nas folhas do Boi Mamão
arrepiava até os tendões.
No céu vermelho das fogueiras
reverenciava São João,
aquecendo o corpo sem solidão
(ainda).

Mas foi sob as fagulhas breves
e a frágil arquitetura
da lenha queimada,
onde conheci o cálice da morte
no perfume ativo do jasmim
guardando o corpo de meu avô.

Avolumada,
como as trovoadas poderosas
que tantas vezes vieram em direção
aos meus olhos temerosos,
adquiri uma das faces mais divinas
que a separação pode assumir:
                                          a ira.

Esta,
ensinou-me que a flor que enfeita
a festa
também murcha triste na solidão dos túmulos.

Amalgamava então
as criaturas sagradas
e a morte me parecia
alta e solene
como as visões de um pesadelo.

Guardei meu avô
sob o cristal das cinzas
num culto à memória,
abreviando mais tarde
a saudade sobre o retrato
                                da parede.

O mistério da ausência
— como a sonoridade sutil e grave das palavras —
desenhou parcial esquecimento.

Mas a morte lavrada
no grande cemitério da existência
criou dentro do peito
um olho d'água de curso subterrâneo.

Desde então,
aprendi a dissimular a dor
amoldando-a às formas de versos,
quando o reverso torna-se incompreensível.

MARIA BEATRIZ FARIAS DE SOUZA (1948) poeta carioca, psicóloga e ensaísta,faz parte do grupo AdVersos e já publicou vários livros. Utiliza em seus trabalhos o pseudônimo Kuri. Teve estréia auspiciosa com Lugar Nenhum(1968), com prefácio de Vinicius de Moraes, talvez o único que o poeta tenha topado fazer. Outros títulos: Poemancipação(1970), O Negócio da Pia(1972), e Gueto(1981). Tem vários livros inéditos.

Gueto

Venha beber conosco, os placidamente aflitos,
pernoitar em nossas pequenas casas sem teto,
partilhar dessa dimensão em que o sonho
e a realidade não se distinguem, não se excluem.
Venha embriagar-se conosco, os anjos tortos,
desatrelar-se, aventurar-se pelo prazer da descoberta
e brindar a loucura com a mesma reverência
com que os outros brindam a coerência
das linhas retas, das quadras, dos quadrantes.
Venha misturar-se a nós, crianças medonhas,
radicar-se nesse gueto entrincheirado
além do território das engrenagens metálicas,
provar a lucidez mágica da poesia
que, de súbito, é uma dor e uma alegria.

Marítimo N.º 5

Não atento ao que os homens
falam de Deus.
Prefiro supor
o que ele mesmo diria
se eu fosse capaz de ouvi-lo.

Ironia

Às vezes eu me sinto
como se não tivesse
mais nada pra dizer…
aí me contradigo
e os rios rolam seixos
até a beira do mar.

REMANSO

Se eu fosse a mesma,
não houvesse perdido meu rosto
no espelho das águas do remanso
e sonhar ainda fosse possível,
meus olhos não fugiriam dos seus
feito passarinhs assustados,
meus gestos não se calariam
(ao contrário, ousariam),
meu poema seria belo e límpido
como as águas do remanso
onde perdi meus rosto.


Publicado por Rubens Jardim em 29/01/2012 às 19h41
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