Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
16/10/2011 17h04
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (10)

ISABEL CÂMARA (1940 - 2006), poeta mineira, atriz e dramaturga bissexta. Com a única peça que escreveu, As Moças, ganhou o Moliére de melhor autor de 1970. Festejada nos meios cults do Rio e São Paulo, foi amiga de Bethânia, Chico e Tom, redatora da TV Globo e tradutora. Publicou Coisas Coiós, abandonou a badalação e foi morar incógnita em Goiânia, onde 12 anos depois veio a falecer.

Afirmativa

Na posição que me encontro
só no sono do barato
na zona franca, ausente
me sinto contente!

Quem

Quem diante do amor
ousa falar do Inferno?

Quem diante do Inferno
ousa falar do Amor?

Ninguém me ama
ninguém me quer
ninguém me chama de Baudelaire

Manhã de frio

Trata-se de uma certa dama
que acorda aflita pelo dia
observando da janela do seu
Disco-Voador
o cinza que se irradia
desde a música —
Romântica e Alemã
até a cor fria da Dor.

Carta

Olha eu te desejo
tanto que perdi
o recado.
Nada temo,tremo!
Sou poeta devassa
adorando tua raça.

Lovely & lonely bird
of my Youth,tell
me how to reach
The South of your Mouth"

"Probel/Problemas

O futuro é uma ciência fodida pelo tempo
O presente é isso aí
O passado é a gavetinha onde a memória brinca
de obra e Arte"

LEILA MICCOLIS (1947) poeta carioca, contista, escritora de cinema, teatro e televisão. Tem obras publicadas na França, México, Colômbia, África, Estados Unidos e Portugal. Já publicou mais de 30 livros, uns 14 de poesia. O mais recente Sangue Cenográfico tem prefácios de Ignácio de Loyola Brandão, Heloísa Buarque de Hollanda, Gilberto Mendonça Teles e Nélida Piñon.Mantém na internet o concorrido site de poesia e literatura Blocos

DOS MALES O MENOR...

Se te chamo de putinha
sou machista e indecorosa.
No entanto, se não chamo,
você não goza...

CONTRADIÇÕES 

Foi na vida que aprendi
a interpretar às avessas
os provérbios, pois na prática
as verdades são inversas:
quem não deve é quem mais teme,
há quem cale e não consinta,
e o diabo é exatamente
tão feio quanto se pinta.

NOVO AMOR 

Meu coração nunca pára 
pra comparar, solta amarras, 
vive seu tempo presente: 
se ferido, em mim se ampara; 
mas quando sara e se sente 
contente, fica eloqüente, 
feito algazarra de araras. 

BROWSERS DIVERSOS (V)

Sem rodeios:
nos chats,
os fins justificam os mails...

Geração Inde(x)pendente

Em vez de me deitar na cama,
resolvi criar fama.
E aí comecei a fazer versos, a mendigar editores,
como se eles fizessem grandes favores
em nos publicar...
E de tanto batalhar, virei... poeta
— um grande passo em minha meta,
porque em poetisa todo mundo pisa.
E quando me consideraram menina prodígio,
consegui que um crítico de prestígio
analisasse minha papelada.
Ele deu uma boa folheada,
pensou, pesou e sentenciou:
— "Incrível... não tem nível..."
Juro que fiquei com muita mágoa
porque, afinal, quem precisa de nível
é caixa d'água...

DIVA CUNHA(1947) poeta potiguar, formou-se em letras, fez pós-graduação na Puc do Rio de Janeiro e doutorado em Barcelona. Seu último livro de poesia, Resina, (2009), reúne a reedição dos três primeiros livros Canto de Página (1986), Palavra Estampada (1993) e Coração de Lata (1996). Recentemente, em junho deste ano, passou a ocupar cadeira na Academia Norte Rio-Grandense de Letras.

Sou todos...

sou todos

os poetas que li

com a devida

ressalva

eles não são eu

cadeira que ocupo

enquanto escrevo

 

Certas mulheres...

Certas mulheres catam coisas pequeninas

conchas, feijões, letras

 

outras distraem-se nos espelhos

contam rugas

 

algumas contam nuvens

criam cachorros e gatos como crianças

 

certas mulheres guardam mágoas

ressentimentos, botões, elásticos

 

algumas são como certos homens

não contam nada

ocupadas com coisas incontáveis

 

 

Minha mãe...

Minha mãe diz

que eu sou da pá virada
a da vida torta

os modelos dela são outros:
santa terezinha do menino Jesus
santa rita de cássia
santas

fora as santas domésticas
que foram sacrificadas
no dia a dia
e ninguém viu
sangradas como galinhas
maceradas em vinha d’alhos
postas a dormir no sereno
para secar odores
enfurnadas como bananas verdes
esfregadas nos ladrilhos
claros dos banheiros
costuradas em botões de quatro furos
esbofeteadas e sacudidas
como colchões e almofadas
para desprender o pó das horas

secaram todas
nos linhos brancos
dos lençóis bordados
ao morrer, não morreram
entregaram a alma a deus,
que provavelmente não as perdoou
pelo gasto inútil
que fizeram dos seus talentos.”

 

Em casa...
Em casa sozinha
para matar meu desejo
leio poesias
não beijo
Me masturbo
e me contorço
leio poesias
não ouço
a voz
onda da pele clara
que aflora
sobre meus ossos
Em casa
entre coqueiros e arcos
ouço o desejo e passo
pelo fim do meu desejo
portas adentro atravesso
prendo sonhos entre paredes
minhas mãos prendem nos versos
os meus desejos inda verdes. 

 

ANA CRISTINA CÉSAR (1952-1983) poeta carioca da chamada poesia marginal dos anos 70, suicidou-se em 29 de outubro de 1983. Escreveu para revistas, jornais alternativos e lançou livros em edições independentes. Tornou-se conhecida ao participar da antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em 1976. Entre os títulos publicados: Cenas de Abril, Correspondencia Completa, Luvas de Pelica—e o celebrado A Teus Pés, além de Inéditos e Esparsos.

Tenho uma folha branca

                            e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma cama branca

                            e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma vida branca

                            e limpa à minha espera.

Noite carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio

Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento

a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum

segredo.

Psicografia
Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não sou e digo
a palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto

Acreditei...

Acreditei que se amasse de novo

esqueceria outros

pelo menos três ou quatro rostos que amei

Num delírio de arquivística

organizei a memória em alfabetos

como quem conta carneiros e amansa

no entanto flanco aberto não esqueço

e amo em ti os outros rostos

Olho muito...

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas    


Publicado por Rubens Jardim em 16/10/2011 às 17h04
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28/09/2011 11h07
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (9)

VERA CASA NOVA (1944 ) poeta carioca, ensaísta, pesquisadora e professora da UFMG. Tem diversos trabalhos, poesias, ensaios, estudos e pesquisas publicados em livros, internet, jornais, revistas, suplementos literários do Brasil e exterior. Autora, entre outros, de Lições de almanaque e Desertos . Atualmente tem programa na Rádio UFMG Educativa, chamado UM TOQUE DE POESIA, que vai ao ar todos os dias pela manhã e à noite.

Para escrever um poema
não basta um pássaro
ou uma flor:
basta  o escrever
se é que basta:
esse pão
essa comida
esse vinho
do escrito
à impressão.

Fica um grito
entalado na garganta.
Tudo o que temos
não basta.
É preciso tirar da morte
da palavra
esse silêncio bastante
de si mesmo
e ouvir uma canção inexistente.

RETORNO RIMBAUD

Farejo na areia os restos de um instante sem fim
Cada minuto deixa o suave frescor de um mar longínquo
Viajo além.
Percorro a água revolta no barco de Rimbaud
Deixando que o éter em mim se faça.
Simbolista ultrapassado, o poeta ronrona no turbilhão de vertigens pós-tudo.
Toma o chá da luxúria e rasto atrás não deixa.
Brinca nos intercursos da palavra, e
De um segundo a outro, deixa a leveza passar inteira.
Seu caminho asperamente se refaz na areia
12345 conta a dedo as conchas apanhadas
e some com a onda envolto em si mesmo.

Logogrifos

Logo meu pensamento
Vira verso
Grifo rápido pois ele se vai rápido como o avião
Ou quem sabe o trem.
O poema é ironia da vida
E tu, poeta, morto ou vivo
Circulas deixando rastros
pairando sobre a mesa
na sala de jantar:

poesia é feita pra gente comer.

Jogo

Dessa solidão
Nada romântica, talvez clássica
Do poeta,
Envio metáforas desconcertantes;
De meu celibato existencial
Clamo pelas palavras possíveis
As não ditas ou apenasmente
                                                                       Gritadas pelo verso.

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No beijo de Rodin
A arte estremece
As mãos passam nas pernas
E
o pescoço
vai soletrando o que a boca e a língua
sofregamente murmuram
O mármore frio
Aquece os ais de Camille.

DALILA TELES VERAS(1946) poeta portuguesa radicada em São Paulo desde 1957. Animadora cultural, há cerca de duas décadas organiza cursos, seminários e congressos. Fundadora do Grupo Livrespaço de Poesia que, de 1983 a 1994, desenvolveu intensa atividade cultural e co-editora da revista literária livrespaço, ganhadora do Prêmio APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, como melhor realização Cultural de 1993. Reside e trabalha em Santo André.

SOLILÓQUIOS

De tanto ficar consigo

dispensou as palavras

 

Bastavam-lhe os gestos

(batuta invisível)

a orquestrar o silêncio
 

DO AMOR E SEUS SILÊNCIOS

 

No destempero e ardências

da fúria inaugural

a palavra sem proveito

(verbalização de corpos)

 

No rito já maturado

do caminho reconhecido

a muda comunhão

(frêmito de carne e espírito)

 

Urgências mitigadas

os silêncios primordiais

já agora interpretáveis

(epifania outonal)

 

NO MUSEU

O encordoamento da memória só pode ser retesado 

onde haja silêncio

George Steiner

 

Para ver

calar

(ocultos sentidos

a preencher sobressaltos)

 

Para ouvir

calar

(perturbadoras vozes

coladas às telas

- ruídos da memória)

 

Para guardar

calar

(outra beleza

ainda não catalogada)

 

Da insaciável cobiça

 

"Gloriae et virtutis invidia est comes"

provérbio latino

 

Cobiço

qualquer coisa

desde que te prive

desde que te despoje

 

 

Meus olhos na tua alegria

roubam-te o riso

saqueiam teu saber

e tudo que não tenho

 

 

Nem a mim serve

este desejo só desejo

basta-me que nada seja teu

(a felicidade apenas no alheio)

 

BRUNA LOMBARDI (1952 ) poeta paulistana, escritora, modelo e atriz. Publicou 3 livros de poesia, No Ritmo dessa Festa(1976), Gaia (1980) e O Perigo do Dragão( 1984) , dois romances, roteiro de filme e um diário com o registro poético das filmagens do Grande Sertão.

Intransitivo

A carne anda cada vez mais fraca
e o silencio cada vez mais comprometedor
cômicos somos nós que estamos falando sério
e pobres são todos, de uma pobreza irremediável
de uma doença incurável, apesar de todos os esforços
da medicina, da psicoterapia, da parapsicologia
quando a única solução seria um sortilégio.

Há políticas bastantes para não pensarmos em nada
e condicionamento suficiente para termos a ilusão de que pensamos
de que somos livres e vivemos como queremos.
Temos vontades baratas: um novo par de sapato
um pouquinho mais de espaço para alongar as pernas
e se possível mais tempo pra reclamar da vida.

Ah, deveríamos desobedecer secretamente a nós mesmos,
imitar um pouco mais os bichos
inventar qualquer forma mais pura
do que esta selvageria civilizada
do que este progresso cheio de violência
do que esta racionalidade que não deu certo.

Meu irmão, o absurdo somos nós.

Sob o Signo da Inquietação

 O susto em nós foi avançar muito para dentro do proibido. 
Muito para perto de uma zona perigosa 
A boca da noite... o desconhecido... 
Vagos caminhos de uma via nebulosa. 
   
Vários conceitos para falar da mesma coisa 
O susto em nós foi descobrir porteiras 
de territórios nunca antes percorridos 
No fundo de todos nós um visitante 
No fundo, a falta de sentido... 
   
Visitantes de nós mesmos cometíamos 
a imprudência de quase enlouquecer 
Para chegar à compreensão. 
E uma coisa afiada nos conduzia 
através da trilha da poesia 
e do difícil trajeto da paixão....

 

Princípio

                  

 

Na paixão de um homem, na inquietude 
das feras, no vermelho  
que o fio da lâmina provoca  
o olho acostumado a perscrutar  
as máscaras, as almas, o que não se confessa.  
   
Na origem profunda do ser 
Onde tudo começa  
na sua luta contra o tempo  
e contra a natureza  
   
em tudo há o desgaste 
em tudo o conflito se apresenta  
raiz do ataque e defesa  
há o mar, a fúria do mar  
e a força da rocha que o enfrenta.

Baixo-ventre

eu não agüentava mais de amor por você
tava ardendo de vontade de você
você há de me querer
há de tentar, se atrever
mesmo se for um delito, se for errado
maldito, amaldiçoado
mesmo que o céu nos castigue
com um eterno eclipse
e venha o caos, satã, o fim de tudo
e a gente seja culpado
porque não soube resistir à tentação
eu não quero me livrar desse pecado
e me salvo através dessa paixão.

 

BETH BRAIT ALVIM (1952). é poeta paulista com forte presença nos movimentos culturais de São José dos Campos, ABC e São Paulo nos anos 80, 90 e 2000. Tem passagens pelo teatro, cinema e vídeo, artes plásticas e visuais e gestão da cultura. Publicou Mitos e Ritos, Ciranda dos Tempos e Visões do medo, premiado pelo PAC 2007. Participou de diversas antologias no Brasil e no exterior.

Outono
quando eu era jovem
a dor doía

horizontal

bastava o pôr-do-sol
e os dias não

eram iguais

hoje o outono escorre nos vitrais
e no outono a dor é
vertical

trajo vestes escuras
e baixo os olhos quando vejo o
horizonte

assim a dor
afunda meus pés no chão
amarra o nariz ao queixo

e a boca cerrada

rumina

terra

Visões baldias 

 ah se a menina de cinqüenta anos sucumbisse menos às visões do juízo final e vagasse mais nas feiras e terrenos baldios à beira do surto daqueles dias onde o muco anterior às boas maneiras mantinha o sinal o segredo a magia e rompia o novelo da mãe da avó e das tias

 por certo ela desfilaria todas as noites e dias sua saia de absinto meias de cereja e seus dentes de ninfa pulsando nas esquinas

Eu quero

meu útero seco banhado pelas águas das andorinhas
a lua em frente
um antro de poetas mortos nas asas do meu cérebro

a tramontana de Portbou rangendo nas travas das câmaras de gás
a transfusão do câncer que tritura minha mãe

eu quero verter lixo tóxico
pra ver se meu sangue limpo

respira por mim

Em nossos dias

o poste ainda 

espera um bêbado 

que tropece um tango 

vocifere um Rimbaud

ou exorcize uma Anaïs

 

 não é fácil em nossos dias sorver 

em taças de cristal luas de 

celofane como se fossem hóstias

   

Fruto

não lambuzo o beiço

nem salivo doce

diante do meu fruto

predileto

 

a casca áspera no

caminho do seu pomo

lanha-me a garganta

 

não lambuzo o beiço

nem salivo doce
 

engulo seco


Publicado por Rubens Jardim em 28/09/2011 às 11h07
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08/09/2011 13h15
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (8)

Estão reunidas aqui algumas vozes femininas que obtiveram grande destaque e repercussão nos anos 60. Lamentavelmente, quase todas andam meio desaparecidas e sequer entraram na rede da internet. Mas elas fizeram um bom trabalho e merecem ser lidas e conhecidas. São poemas de sondagem interior que revelam a consciência de  uma luminosa dimensão da espécie humana.

IDA LAURA (1928-2008) – Poeta paulista, crítica de cinema e psiquiatra –embora nunca tenha exercido a profissão. Publicou poemas nos livros Antecipação(1963), Poema Cíclico(1962)e Nova idade(1969). Foi presidente da APCA e exerceu a crítica de cinema no Estadão e na antiga revista Senhor. Participou de leitura pública de poemas como convidada da Catequese Poética. Obteve boa repercussão crítica nos anos 60.
 
"O verbo
dito
caos
pouco a pouco
se dissolve”
.........................................
"Um diálogo
estabelece-se
entre Terra e cosmos
magnífico
terrorífíco
céu
Inferno
deus
demônio
profeta em seu carro de fogo
o astronauta
fala
e sua voz
se transforma
em palavra nova"

...........................................................

"Onde deus
se sua essência
vai além do ar
do vácuo
ninguém jamais viu
o rosto
daquele que
cria
visões terrificantes
visões do céu
a Terra
que deus habita
onde sua força
acumulada
em séculos
de repente explode na atormentada
na obscura fórmula
do Homem"

...................................................................

"As paisagens
serão engolidas
pelos espaços
no turbilhão tudo se refaz
do nada
vias-lácteas
nascem
como eu
da imensidão
do espaço
sou espaço
ao mesmo tempo
eu sou eu
em resposta
aos deuses
aos demônios curvos
boitatás que sobre a Terra
espreitam
em Terra
além
eu sou todos os homens
e isto
é
tudo"

IVETE TANNUS, (1936-1986) poeta paulista, professora universitária, socióloga e pedagoga. Estreou, em 1960, com A violeta e o espelho. Seguiram-se A irmã escolhida(1961), Canto de Amor e Morte para um rei(1963), Eu do teu ser(1964) e O poeta e a Origem(1966). Teve vários poemas traduzidos para o francês, inglês e espanhol. E participou de diversas antologias. Obteve boa repercussão crítica nos anos 60.

A DANÇA DOS CIPRESTES
Sou apenas uma mulher pequena que escuta o nascimento das plantas
Sem entender-lhes o diálogo.

Sou pequena e estou cansada de interrogar-me,
De perscrutar sempre as mesmas coisas
Para sempre descobrir que os homens são tristes.

Ah, meus irmãos
A estrêla se aproxima
Para nunca mais regressar.
 

Ainda bem que a noite desceu
E o luar me visita em casa
É ele que me deixa nua
Enquanto os ciprestes bailam.

LÊDA SEM CISNE

Está solto na alegoria
Lúcido cisne
Num lago sem fêmea.

À noite um piano me visita
Não sei se sou Lêda
Só sei que estremeço
Nas gazes do sono.
E não vejo a presença.

 

PROFISSÃO DE FÉ

Amo-te, Musa
Espumosa e leda
Mas de músculos de aço e hálito forte
De pudor e pétala.

Amo-te a efígie
Em que nasce o Mistério
E a raiz da Música.

Quero-te límpida e concisa
Como a Morte
Mas não apenas mensageira da angústia
Que o Destino põe no meu cabide
Como um chapéu de outono                                                                                    

LÉLIA COELHO FROTA (1938-2010) poeta carioca, escritora, antropóloga e crítica de arte, foi responsável pelas representações brasileiras nas bienais de Veneza de 1978 e 1988 e curadora da exposição Brésil, Art Populaire Contemporain, no Grand Palais (Paris, 1987). Recebeu os prêmios Jabuti e Olavo Bilac (Academia Brasileira de Letras) pelo livro de poemas Menino Deitado em Alfa (1978).

LITORAL (poemas portugueses)

Estávamos um diante do outro
como um só espelho de ouro.
Entre nós corria o rio rubro
e era tempo de despedida.
Portugal, Espanha ou as cícladas
é tempo, mas de frutas cítricas
para ter nas mãos a colhida,
ácida, consentida, súplice vida.

9.PROJETO

Sim, iremos para a América do Sul

para as quadras de tênis vazias

para os parques de diversão silenciosos

movidos pelos anúncios luminosos.
 

UMA DOR

1.

O vento soprava árvores da esquerda.

Ao fundo, o menino tocava o violão

preso no ombro, como um pequeno navio adernado.

Uma dor

no mundo

rachava tudo fino e longe,

cinema mudo.

2.

Acordar é fechar as pálpebras.

Nossos olhos só escrevem

por cima, muito por cima.

E quando abrimos as janelas

É só o vento que está ali.

 

Existe uma dor

                   solta no mundo.

 

E eu quero deixar meu emprego, meus cabelos

                   minha família

para ir atrás dela

                   bicho com fome.

HELENA ARMOND, Poeta mineira radicada em São Paulo, publicou quase duas dezenas de livros de poesia. Já foi premiada pela APCA, mas vive distante das badalações literárias. Já lançou livro em supermercado, sem avisar ninguém.É artista plástica também e já se apresentou em salões, galerias.Participou de uma das Bienais com uma instalação de protesto à sociedade de consumo.

O quanto vale o vale
passaporte da morte
rumo à vala?

Vale o equivalente
da consciência plena
num quase valer a pena


como detectar o ato
chegar à certeza
do contacto e o que se expande?

Ser

forma-se o cerco
sem saída o SER
evoca sobre si
o umbilical cordão
acha o fio
a -ponta e encontra
o princípio...
de uma interrogação
 
Não crio tolas mentiras

Nem da verdade um vão
a escandir cada verso
arremedo em canto chão

Que te saibas terra

Que te saibas água
Que te saibas pedra
que te saibas
ser
aos saltos de um girino
a espermatozóide
a centelha
a
ser
uma estrela que erra...
mas ilumina a terra

PAZ

já aqui e agora há paz ...
no lá fora deveria haver floração de acácias 
ao vento filtrando um mantra...

mais adiante há instantes
variáveis de tumultos
des-encontros... e insultos

aos que comem pedra e se deliciam
sem argumentos...envio um vale
aos mantras redefinidos de cada grito

há muito deixei as aquarelas
pesquiso fractais da humanidade
e...sem ruidos desço o vidro da janela

 


Publicado por Rubens Jardim em 08/09/2011 às 13h15
 
21/08/2011 20h44
A MULHER NA LITERATURA BRASILEIRA (7)

 Apresentando as mais variadas tendências de estilo, processos ou temas,  um traço comum pode ser destacado: é a participação na consciência experimentalista, no reajustamento da linguagem e na integração do ser humano e da poesia no processo histórico .

STELLA LEONARDOS (1923) poeta carioca,tradutora e teatróloga, é considerada integrante da terceira geração do movimento modernista. Já ganhou vários prêmios, inclusive o Nacional de Poesia, em 1964, por Geolírica. Publicou romances, literatura infantil em prosa e verso, além de peças teatrais infantis. Sua obra inclui mais de 70 títulos, entre eles os premiados Cantabile,(1967) Amanhecência(1974) e Romanceiro da Abolição(1986).

DO APRENDIZ DE ESCULTOR

Existe uma voz na pedra?
Lá no alto daquela pedra
mora um colomi de pedra
chamado Itacolomi.
O colomi, lá da pedra
me fala: — Não queiras ouro.
Menino, teu ouro é outro.
Escuta, Antônio Francisco,
tuas mãos querem lavrar.
Procura tornar mais que ouro
a pedra que te encontrar.

Existe voz na madeira?

Lá do alto daquela igreja
vive uma cruz de madeira,
a mais alta que já vi.
A cruz, lá do alto, me fala:
— Escuta, Antônio Francisco,
não te coube em Vila-Rica
muita lenha. Coube lenho
e mãos que querem talhar.
Procura tornar madeiro
a madeira que te achar.

ESPELHOS

         ... "Sigamos, primeiro, as próprias indicações de Bretas: o Aleijadinho, diz-nos ele, sofreu complicações d'humor gallico com escorbuto". Germain Bazin

É mancha de tinta

         ou pele manchada?

É poeira em camada

         ou pele que escama?

É pingo de roxo

         ou sangue pisado?

É raiva de um rosto

         ou rictus de máscara?

É imagem disforme

         ou espelho infamante?

É mais que grotesco:

         é face de drama.

É o trágico doendo:

         um monstro se olhando.

 

Abaixo o que espelha!

         Cristal, água, lâmina.  

 

QUASE MITO

— Quem veste esse poncho

e encobre a cabeça?

Que vivo? Que morto?

Que réu de sentença?

 

         —Nenhum pobre diabo.

 

— Debaixo das abas

do imenso chapéu

há o rosto de um diabo

oculto dos céus?

 

         De um monstro sagrado.

 

O QUE SE É VEM À FLOR?

“Não, não digas nada”    Fernando Pessoa

Melhor seria não dizer-te nada
já que as palavras se frustram, Pessoa
- ai! onde as pás sutis e as virgens lavras
do ver de terna fala entre as criaturas?
Já que as palavras nos frustram, pessoas
perdidas no universo das palavras
- ai tempos de durames sem ternuras! -
melhor seria não dizer-te nada.
Calo. Do teu silêncio aflora a fala
desse verde essencial – cerne, mensagem,
viva raiz-mistério da linguagem.
Na força de não ter dito o que mais cala.

 

LILIA A.PEREIRA DA SILVA, (1926  ) poeta paulista, escritora, pintora, desenhista. Conquistou excelente fortuna crítica, tanto aqui quanto no exterior, onde vários de seus títulos foram traduzidos. Publicou noventa e dois livros nas áreas de poesia, romance, literatura infantil e artes plásticas. Estreou com o livro Lenço Materno(1958). Alguns títulos de seus livros de poemas: Estrela Descalça(1960), Relógio de Raízes(1964),Menino de Orvalho(1973) No Cristal do Abismo(1989), Europeanas(1997).

O ANJO

Que Anjo és que só me faltas?
Se ainda te sonho,
tens as asas
pétalas de cimento?

Que Anjo és, sem luz, sem nada,
se até a silhueta que tiveste,
a noite, surpreendendo, encolheu?

Celebro-te memória, no meu tempo,
Anjo,
agora que é cinzento o arco-íris
e a estrela reclinada indesejei.

Amadurece em mim o provisório
de teres sido nunca
o que sonhei.

VISÃO

Duas asas no chão:
de um anjo?
De lúcifer?
De um cão?

Se a chuva pisasse nelas,
não sangrariam, como meus sapatos.

Onde buscar remorso, se forem de um anjo?
Onde encontrar mais forças, sendo de um Lúcifer?
Onde mais espanto, se forem de um cão?

RETRATO PLURAL

Em todas cidades do mundo,
sofrimento é maior quando não se perdeu
coração em ninguém.

Em todas cidades do mundo,
há roupas estendidas nas paredes
e nudez dentro
das vidraças.

Em toda cidade do mundo,
em algum tempo,
manhãs já não estão cansadas
da procissão de gestos inacabados.

Em todas cidades do mundo há espaços, muros
e sapatos abandonados nas ruas,
tirando retratos do passado
e futuro,
e pombas que exibem asas
e não voam
- como outras – acima dos telhados.

Em todas cidades do mundo
há janelas sujas de trens
anuviando paisagem,
olhos azuis aleijados
lendo nome da estrela
e do lixo.

Em todas cidades do mundo há ciganos
que revivem esta saudade,
estalando
no meu céu da boca
o grito da vida.

 

ILKA BRUNHILDE LAURITO, (1925) poeta paulistana, estreou cedo  com o livro Caminhos ( 1948). No ano seguinte formou-se em letras e dirigiu a Cinemateca Brasileira (1962). Entre 1969 e 1975 participou de movimentos de divulgação, como Poesia na Praça e Poetas na Praça. Recebeu o Jabuti de poesia, pelo livro Canteiro de Obras,(1987) e o Jabuti de literatura juvenil, pelo livro A Menina que Fez a América.(1990)

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poste.

(Em homem:
pode.)

 

VIII (Olhos que tacteais este poema)

Olhos que tacteais este poema
como instruídos dedos
sobre as nervuras do espalmar
do texto,
olhos, lúcidos parceiros
da voz alinhavada em letras,
a luz que vos guia o íntimo
passeio,
cegos videntes,
é a que decifra os gestos desta
mão
que fala e canta
imprimindo as rugas do seu
críptico desenho
na lisa pele do papel em branco.

Leitor,
meu quiroamante.

V (Canto ao arrumar a cama)

Canto ao arrumar a cama,
canto
diligente verônica
oficiando os passos
da paixão cotidiana.

Exibo ao meu espelho atônito
os lençóis que estampam o corpo
do senhor que nunca me salvou
da crucificação no pranto.

E canto porque canto,
sem esperanças de glória
ou de ressurreição.

PERDAS E DANOS

Arrotaram uma arrogância de água mineral gasosa.

Sacudiram qualidades de plástico

num chocalho sem guizos.

Aplausos primeiro.

Depois, risos.

A menina que catava conchas na praia suja cresceu.

Hoje conta histórias para boi mugir.

A ilha que eu sonhava, bem ao norte deste empate,

afundou no oceano de porquês.

Eu poderia fazer uma corda com retalhos

a fim de atravessar os sete mares e as cinco pontes.

Ou escrever uma peça para marionetes sem fios.

Recusei a oferta e o altar.

Com os olhos procurei ao redor,

mas o redor era fora do alcance da vista.

O tiro de despedida é mais doce

do que o beijo de misericórdia.

Surpresas a varejo empresariam nossa mentira.

Um chiclete gruda na memória

retardando a detonação daquela bomba.

Publicarei minhas memórias num edital do tribunal de contas.

 

YEDA PRATES BERNIS, (1926)poeta mineira, diplomada em letras, com passagem por canto e piano em conservatório. É membro da Academia de Letras de Minas Gerais, já ganhou vários prêmios, teve poemas musicados por Carmargo Guarnieri e já foi traduzida para o francês, espanhol, inglês, italiano e húngaro. Estreou em 1967 com livro Entre o Rosa e o Azul. Já foi premiada e elogiada por poetas do porte de Drummond e Henriqueta Lisboa. Seus últimos livros: Cantata (2004) e Viandante (2006).

QUANDO O AMOR SE ACHEGA

Quando o amor se achega

e, no outro, não encontra

espaço aberto,

ele, humilde, se aconchega

a si mesmo. E descoberto

se agasalha com pesado manto

do temor, dúvida e espanto.

 

E a tempo pede

que o acalente,

à desventura

que o sustente

não mais que o prazo certo,

e a um vento

inexistente que o leve

em momento brando e breve.

 

SABEDORIA

Aborrecem-me as mulheres de lantejoulas

e as coroadas com tiaras de diamantes.

Nem mesmo invejo as que muito leram

e extraíram dos livros o sumo

da desesperança

ou as que misturaram palavras,

pincéis e pautas

às linhas de suas vidas.

 

Fascinam-me as mulheres do campo

que acordam de madrugada,

coam café com rapadura

para os maridos e lavram a terra

com enxada, suor e amor,

ou as lavadeiras de beira-rio

quarando suas roupas com canções

e coração:

sábias, não meditam sobre a fugacidade

das horas, fazem de cada instante

a doação perfeita, a morte é sua

verdade sem temência

e suas vidas são plenas

como árvore absorvendo o sol das manhãs.

 

MARITMO 
 

Barco é a noite

onde a alma navega.

O sonho é marinheiro.

 

No oceano do momento

o amor é timoneiro.

O mais é entrega.
 

FOGUEIRA 

Espio à beira

do que chamam de minha alma.

Fingindo calma,

vejo no poço uma fogueira

queimando o já tão pouco

do muito edificado.

Não como um louco

mas como quem não presta

atenção, despejo gasolina.

 

Tudo o que resta

é um choro de menina.

DESENHO

O menino desenha
coloridos pássaros
e os aprisiona, na gaveta.
Ao ouvir trinados
no papel
vê, saindo pela fresta,
asas em festa
buscando o céu.

 

NASCER

Desenrolar
o eterno
no solar
diminuto

Minuto
materno


Publicado por Rubens Jardim em 21/08/2011 às 20h44
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10/08/2011 20h22
A MULHER NA LITERATURA BRASILEIRA (6)

MIRIAN DE CARVALHO,(1943) poeta, ensaísta e crítica de arte, nasceu no Rio de Janeiro, estudou história da arte, educação artística e filosofia, área em que defendeu tese de doutorado. Docente na UFRJ, lecionou estética. Em 1999, publicou seu primeiro livro de poesias: Cantos do Visitante (Edição da autora). Seguiram-se Teia dos Labirintos (2004), O Camaleão no Jardim (2005), Travessias (2006) e Violinos de Barro (2009).

DESEJO À DISTÂNCIA

Herdeiros do mito, eu

Os escrevo na tela de cristal

Onde os humanos são deuses

Do desejo à distância.

 

Ante a impossível proximidade

Do corpo do outro, minha cabeça

De serpente enrola-se na própria

Cauda.

 

Ás vezes (muitas vezes)

Respirar é doloroso.

 

INCOMPREENSÕES DO TATO

Perdidas em meio à selva de códigos

Deságuam cachoeiras de mensagens

Que emergem entre estranhos na ânsia

De algum projeto de encontro.

 

Aperto de mão ou abraço não há.

Troca de carícias não há. Olhar não

Se completa se não aquele do voyeur

Colecionando imagens do amor intocável.

 

Às incompreensões do tato,

O que sobrevive é cio.

 

E poesia.

VERMELHO

Em alameda livre, saltam meus cavalos

de carmim. Saltam com narinas afeitas

ao que vive ao redor da casa.

E ao redor dos limites do portão.

 

Eriçando a pele, meu cavalo de rosas

respira. Do mundo da fábula, chegou-me 

este centauro de corolas abertas. Afoita cauda 

correndo atrás do vermelho da crina. 

                                            

À procura de pouso e fêmea,

meu cavalo do verão se olha

no lago das chuvas.

 

Lambendo a imagem desfeita,

ele ergue imenso falo. E a tarde

o amansa às horas de lascívia. 

AMARELO

Das sementes da papoula floresceu

o pelo-de-topázio. Carregando fardo

ameno, ele resfolega  atento ao que

lhe pulsa entre as veias e as costas.

 

Molhando-lhe o dorso, escorre a seiva

da amazona de lírios, que ao repouso

lhe roça o falo com sedução.

E lábios de pétalas. 

 

Vindo do Leste, ele acorda os pássaros.

Meu cavalo da manhã despertando

para o coito.

 

Meu cavalo de sol carregando

a vida. Que o recebe em berço

de gozo.

II

Nas folhas do Corão menciona-se

Do pensamento o frágil habitat

 

Sobre a tecelã, paira a dúvida do profeta:

Tece ela as roupas? Ou a ilusão do mundo?

 

Tecendo o viver, a textura do ambíguo.

V

Nos manuais de viagens, não há travessias.

Travessias não há, nesses espaços lacunares.

Imobilizadas, as fronteiras não assinalam portas.

Nem janelas. Entre rabiscos simulando rios,

Não há margens. Plantio. Nuvens não há.

Sequer cinzas. Lenha. Ou lenhador. Neutros,

os mapas não acendem o forno. Não mostram

a tigela de leite sobre a mesa.

 

Ao ermo, lamentam-se as clareiras do fogo.

 

Fogo alto. Fogo de papel. Em minha

barriga, cismam as fomes dos mortais.

  

THEREZA CHRISTINA ROCQUE DA MOTTA, poeta e advogada nascida em São Paulo. Viveu em Boston, Assunção, Montevidéu, Rio de Janeiro e  São Paulo. Aqui formou-se em direito, publicou livros, organizou leituras e exposições de poesia. Atualmente  reside no Rio. Publicou entre outros Papel Arroz (1981), Joio & Trigo (1982), Areal (1995), Sabath (1998), Alba(2001), Chiaroscuro – Poems in the dark (2002), Fundou a editora Íbis Libris, e organiza a Ponte de Versos desde 2000.

O LIVRO DAS HORAS

in Sabbath

1
Caminhas
sob águas e ramagens
- manto transparente
sobre paisagens noturnas -
frios olhos
de quem vê através a alma

2
Tua ausência te faz mais belo
Posso aguardar
nos meandros de tempo
enquanto não te vejo
Refaço os contornos de teus olhos
tua boca, teu queixo
e espero tua imagem se dissolver
e se recompor novamente

MADRAS

Para Selmo Vasconcellos

Abriste o tempo em gomos,
fruta inteira dada aos pedaços,
para cada parte, um gosto,
visível e táctil favo,
com que prendes os dedos.
Este o tempo degustado,
essa fonte maior que a vida,
sabor de tudo, num naco.

O LEGADO DA POESIA

Para João Luiz de Souza

Há um legado de Drummond em todos nós,

como há uma voz de Cecília em todos nós,

um som de Bandeira e um tinir de Mário.

Cada poeta nos empresta sua língua

para aprendermos a falar o que sentimos.

Todos têm um amor de Vinicius,

um galo de Gullar, um cão de Cabral.

Como não trazer o nada de Pessoa para os nossos versos?

Adélia nos ensina a pescar e abrir os peixes.

Cora nos empresta a chaleira e fogão de barro.

Oswald está sempre lá com sua vela.

Murilo traz seu cosmos de fascínio.

Os poetas todos nos dizem em uníssono:

- Escrevei!

Tragam os poetas no bolso.

Como Elisa Lucinda faz quando derrama sua poesia,

como Mano Melo faz quando brada seus versos,

como Chacal faz quando grita seus protestos,

como Tavinho Paes faz quando blasfema na escuridão.

Todos os poetas nos ensinam a poesia.

Leiam! Leiam!

Façam isso por si mesmos.

Um verso de Pedro Lage contém mais poesia do que o universo.

Um verso de João José contém mais sangue do que a carne.

Um verso de Afonso Henriques Neto contém mais fogo do que a chama.

Um verso de Shala Andirá contém mais luz do que a manhã.

Um verso de Armando Freitas Filho contém mais tinta do que a pena.

Um verso de Olga Savary contém mais plumas do que a ave.

Assim os poetas vêm e vão. Inúmeros.

Tantos que não posso todos nomeá-los.

Os presentes, os passados e os futuros.

E só na poesia se anunciam.

Só na poesia existem.

Só na poesia serão lembrados.

A pedra no meio do caminho de Drummond

é a pedra em que todos tropeçamos.

Venham, e juntem-se a nós,

nós, os poetas que lemos,

nós, os poetas que escrevemos.

A poesia é infinita.

Quanto mais se abre, mais se desdobra.

Desdobra-se em inúmeros poemas,

semeados ao vento,

ao tempo,

por todas as idades.

NOMEAÇÃO

Tudo tem seu nome,
o inominado,
o terrível semblante de Deus,
a letra esbelta,
a fome, a falta de vogais
a devorar o nome ancestral.
Sou, és.
Assim está bem.
Recomecemos.

VOLTO-ME E OLHO-ME NOVAMENTE AO ESPELHO .

Recomponho o cabelo com as mãos

e apago as marcas do rosto.

Eu fui o que fui, porque quis,

mas não preciso carregá-lo comigo.

Esquece.

MARIA ESTHER MACIEL, poeta, ensaísta e ficcionista, vive em Belo Horizonte desde 1981. É professora de teoria da literatura da faculdade de letras da UFMG, com doutorado em literatura comparada, pela mesma instituição. Realizou estudos de pós-doutorado em literatura e cinema na universidade de Londres, onde ocupou também o cargo de pesquisador visitante.Já publicou vários livros de ensaio e ficção. De poesia só estes dois: Dos Haveres do Corpo(1985) e Triz (1999).

NOTURNO 
              

                (a T. S. Eliot )
 

O dia é noite no poema:
Sombras, pedras, luas secas
encobrem a estação das flores.
Sobre o deserto 
memory and desire
ainda restam:
ecos entre as cinzas 
deste verso.

Will it bloom this year?

Na terra triste do poema
enterro o fim e o infinito:
me faço silêncio, eclipse.

PAISAGEM COM FRUTAS
 

Duas peras sobre a mesa
esperam a tua fome.
O dia é verde
e o vento tem cores provisórias.

Sobre o muro
um pássaro mudo
de olhar escuro
perscruta a tua sombra

Ele sabe
que ninguém sabe
em que azul 
ocultas 
teu absurdo.

MANUSEIO

Tépidas
essas mãos
que divagam
devagar
por meus relevos
óbvios
e demoram
fundo
no obscuro
ponto
onde o corpo
se abisma
e silencia,
absurdo.

AMOR

Na véspera de ti

eu era pouca

             e sem

sintaxe

eu era um quase

         uma parte

sem outra

            um hiato

de mim.

No agora de ti

            aconteço

tecida em ponto

              cheio

um texto

com entrelinhas

          e recheio:

um preciso corpo

um bastante sim.

OFÍCIO

Escrever

a água

da palavra mar

o vôo

da palavra ave

o rio

da palavra margem

o olho

da palavra imagem

o oco

da palavra nada.

BLACKHEATH

A poesia me chama entre as árvores

de folhas incompletas.

O vento é frio, apesar de terno.

Corvos mancham o azul sem peso

desta tarde que não começa.

O trem também me chama.

E não vou.

MYRIAM FRAGA, (1938/2016)poeta,escritora, jornalista e biógrafa. Tem 20 livros publicados, entre poesia e prosa. Pertence à Academia de Letras da Bahia e ao Conselho de Cultura do Estado. Participou de várias antologias no Brasil e exterior, tendo poemas traduzidos para o inglês, francês e alemão. Entre suas recentes publicações: Poesia Reunida (2008) com o conjunto de sua obra.

PERSPECTIVA

Este é um mundo-limite
(A que me oponho)
De ciciadas palavras,
De mesuras,
De faces decalcadas
De outras faces
E de sentenças duras.

Este é um mundo-mentira
(Não me enganam)
Da espiral de cinza.
Do frangalho do sonho.
Onde a espera faz-se inútil
E o tempo é nada.

Mundo-agora.
O demônio com seus filtros
O desvairado cachorro.
Sua matilha.
Semeando este chumbo,
Esta ameaça.

Duro é o espreitar do olho
Em cada face.
Na boca devastada
A fome pasce
E a mão ensaia o gesto
E se disfarça.
 

2

De que serve a memória
— fuso e roca —
farta de prodígios,
tinjo e lavo
o fio das meadas,
o fio desta vida

lavo com água e
mornos sais
                 o corpo
e enquanto afagas
tua remota cicatriz
tuas
chagas enigmáticas,
heroicos feitos, falos
eu refaço
            as feridas
minhas — doces talhos
de incruentas batalhas.

ABRIL

Escrevo de memória.
A infância é um bolo
Na garganta
E a dor de dividir-se
Nos espelhos.

Que foi feito de mim,
Daquela estória
Que eu me contei um dia
E que perdi?

Escrevo sempre à noite;
Pela manhã apago
E recomeço.

É tão difícil viver,
É tão de açoite
O vento nas vidraças!

É abril e chove
E a terra morta
Onde o lilás floresce
É minha pátria agora,
Meu destino. Insula.

II
Em luz e sombra agora
O contemplado
Rosto de antigamente
Exato e raro.

Tudo que foi
Aqui está enterrado.

Em branco e preto
A soma revelada
Do que outrora foi vida
E hoje é distância.

MINOGRAM

Não te mires no espelho
Côncavo das virtudes.

Esquece o labirinto.

Não cogites,
Devora


 


Publicado por Rubens Jardim em 10/08/2011 às 20h22



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