Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
09/01/2011 17h49
Sem dar fuga para as rugas e sem procurar abrigo no jazigo
O POETA ESTÁ DE VOLTA SABENDO QUE AMOR É SEMPRE UM SÓ, GENITAL E GENITIVO, UM DEUS E UM SUBSTANTIVO, UM FIO DE LIBERDADE E UM LAÇO QUE VIRA NÓ.
Ao abrir este espaço ao poeta Carlos Soulié do Amaral, não poderia deixar de mencionar um conceito desenvolvido por Jung: a sincronicidade. Que em termos mais simples pode ser associada ou substituída pela expressão: coincidência significativa. Claro que é o mínimo que posso dizer a respeito de um fato que nos aproxima radicalmente: tanto Soulié como eu ficamos trinta anos sem publicar livro de poesia!
Eu ainda participei, durante esse período, de diversas antologias publicadas nestas paragens e no exterior. Mas, que eu saiba, o Soulié tornou-se bem mais refratário e nos privou de vez de sua voz poética -- já tão bem recebida pela crítica nos tempos de nossa juventude. Só para lembrar, Carlos Soulié do Amaral ganhou, em 1966, o prêmio Jabuti na categoria poesia. E ganhou, no ano seguinte, outro Jabuti –como crítico. Pra dimensionar a importância disso, basta citar alguns ganhadores: Cassiano Ricardo(em 1965) , João Cabral (em 1967) e Carlos Drummond de Andrade(em 1968).
Para um jovem poeta de 20 e poucos anos, lúcido, sensível e inteligente, essas premiações poderiam estimular a realização de uma obra mais numerosa. Mas com Soulié deu-se o inverso. Ele só publicou três livros de poemas, todos nos anos 60: Tributo Poético (1963), Procura e Névoa(1965) e Morte na Rua Simpatia(1967). A única exceção é Verba, livro publicado em 1999 graças aos “amigos e companheiros reencontrados”.
Mesmo sem lembrar claramente de nossas conversas na juventude e de três reencontros poéticos acontecidos nos últimos dez anos, atrevo-me atribuir ao poeta Carlos Soulié do Amaral o entendimento de que a poesia é quase uma religião, um gênero sagrado. Pelo menos é o que depreendi do texto de apresentação. Ali ele cita o Evangelho desse jeito: “Como sabemos, Verba é o nominativo plural de Verbum. In principio erat Verbum, diz o poeta João no prólogo de seu Evangelho.
Depurado pelo tempo e pela vida, Soulié continua sendo um poeta conciso, econômico, de fina sensibilidade e com hábil domínio do seu instrumento: a palavra. Daí o surgimento dos ritmos, das pulsações verbais, das sonoridades e de tudo aquilo que se situa nos limbos misteriosos e nos abismos existentes dentro de cada um de nós. Afinal, qualquer poema não deixa de ser a manifestação de um mistério. Um mistério original que está na sua própria origem--e que só o poema pode revelar. Portanto, vamos as revelações do poeta Carlos Soulié do Amaral.
Antes disso, porém, gostaria de lembrar que a condição de poeta e o exercício da poesia já causaram sérios problemas a Soulié . Suspeito de atividades subversivas por fazer recitais de poesia em clubes, escolas e até mesmo em boates, ele foi preso em 1964. Em 1965, quando organizou o histórico Comício Poético da Praça da Sé, Soulié foi, juntamente com seus companheiros Álvaro Alves de Faria, Eduardo Alves da Costa, Lindolf Bell, Rubens Jardim, Clarice Jacy Piovesan e outros, cercado pela polícia. "O número de pessoas que nos ouvia era tão grande que a polícia não pôde fazer nada", recorda ele. "A massa de gente interessada e curiosa em relação ao que dizíamos, formou um escudo protetor que nos salvou de complicados contratempos.”
Com a palavra o poeta:

 
VERBA I
A palavra acácia
Cai em cachos
Se desmancha em ramos
Se avoluma em folhas
Pulsa
Em flor e luz
Treme
Quando o vento vem
E se molha toda
Quando a chuva.
 
A palavra acácia
Pode ter um ninho dentro.
Afora todo o céu
E terra
Que entrelaça.
 
A palavra número
Tem letras
Como acácia.
Mas que sol a aquece?
 
Verba ll
A palavra número
É sempre uma só:
É a palavra um.
 
Da simplicidade
Que veste a unidade
Tudo mais advém
Num jogo que enlaça
E aparta, contém
E dispersa, mede,
Acresce, subtrai
E nunca tem fim.
 
Mas toda a magia
Dessa uma palavra
Foge da poesia.
Bem melhor o grito
De um gato, de um rato.
Pois isso arrepia.
 
Verba lll
A palavra número
É fonte de guerra,
Fruto de botins
Ou afã de afins.
 
A palavra número
É insinuante.
Entra até na acácia:
Quantas são as pétalas
De um cacho maduro?
Quantos são os tons
De verde no amarelo?
 
A palavra número
É quantificante,
É socializante.
Decreta e concreta.
É a raiz da usura.
É uma legião.
Verbo que exacerba,
Em tudo põe grilhão.
 
Espelho l
 
Além do brilho álgido e polido
Que treme nesse campo de cristal,
Há chumbo e estanho, há um peso denso e liso
Marcando a indiferença de uma frente
Contrária a tudo em plano horizontal,
Sempre impassível revelando o inciso,
Esfíngica, incomunicável, pronta
A devorar depressa o que a defronta.
 
E o que a defronta, o devorado, vê
Nada brilhante e ardente como gelo,
Mas só o que ainda tenta resistir
(com seu cansaço e com o seu cabelo
Seco e desfeito, com seu rosto inchado
E sem disfarce, a boca espessa e amarga)
À fácil aparência do cristal
Opondo, em oferenda matinal,
Aos metais densos substância igual:
Uma face onde as rugas podem rir
A gosto, do desgosto de existir.
 
SONETO DA ALEGRIA
 
De nada, ou quase nada, uma alegria
Criar e permitir que nos aqueça
E acenda o vôo e a voz da fantasia
Provando-se à exaustão adversa e avessa.
 
Uma alegria que dê fogo à fria
E brumosa jornada e não se esqueça
De transbordar, cravando-se travessa
E incontida, no coração do dia.
 
E que por ela os nossos corações
Se deixem, sem constrangimento, ser
E fluir, como fluem as canções,
 
Como fluem os rios, sem saber
Nem indagar as mil ou mais razões
De tudo quanto vive e vai morrer.
 
Despertar
 
Por mais que pese o imemorial e vasto
Cansaço, e a náusea e o asco,
Por mais que tudo se revele gasto,
Há´que tentar ainda resistir
Ao peso, à náusea, ao asco
E a pálpebra da pálpebra soltar
E permitir que uma vez mais se faça
Aquela bruma fluida e elástica
Que em sonho e frio se entrelaça
Uma vez mais
E, lentamente, qual ginástica
De lesmas na fumaça,
Uma vez mais
Abrir os olhos para ver a treva
De pelos brancos ficar salpicada.
E pouco a pouco, emergir dela
Até domar essa tordilha cor,
Mista de sono, noite, madrugada,
Que empina o dia, mais um dia
Subitamente aceso na janela.

 


Publicado por Rubens Jardim em 09/01/2011 às 17h49
 
30/12/2010 12h49
VOCÊS ME EDUCARAM NA IMENSA ALEGRIA DA EXPECTATIVA
CARTAS NATALINAS DE RILKE PARA SUA MÃE
Costuma-se dizer que o conjunto das cartas escritas por Rilke corresponde ao triplo de sua obra poética. E se Rilke não foi poeta prolífico, também não foi autor de poucos livros de poemas. Publicou Vida e Canções (1894), Histórias do Bom Deus(1900),O Livro das Imagens (1902), O Livro das Horas (1905), Novos Poemas (1907-1908), A Vida de Maria (1913), Elegias de Duino (1923) e Sonetos a Orfeu (1923).
Em prosa, suas obras mais conhecidas são Os cadernos de Malte Laurids Brigge e as célebres e indispensáveis Cartas a um Jovem Poeta --livros imperdíveis. Mas ele foi prodigioso, também, em sua correspondência, espantosamente vasta -- e diversificada. Existem cartas para a grande amiga russa Lou Andreas- Salomé (amiga de Freud e Nietzsche), para a pintora Baladine Klossowska, para a pianista Magda de Hattingberg, para a princesa Maria von Thurn und Taxis (Castelo de Duino), para a condessa Aurélia Gallarati Scotti e para a jovem operária francesa Marthe Hennebert.
Destacamos, desta vez, a correspondência natalina de Rilke com sua mãe, Sophie. Durante 26 anos –de 1900 a 1925 – ele escreveu, com constância e fidelidade, cartas que são uma verdadeira celebração da festa de Natal. Ele mesmo confessou que, através do ritual do nascimento do menino Jesus, reconquistou o acesso à felicidade da infância.Textualmente: “Todas as alegrias de minha vida me remetem irremediavelmente às recordações natalinas.”


EIS AÍ TRECHOS DE ALGUMAS CARTAS

Minha querida e bondosa Mama, (Berlim, 22 de dezembro de1900)
 
Nunca conversamos muito sob a árvore de Natal. Hoje tampouco quero fazê-lo, sobretudo, pois as palavras no papel nem ao menos suscitam ilusão de proximidade. Aliás, desejo-lhe mais que a ilusão –a certeza, de que estou ao seu lado nessa noite que, desde quando a vivenciei pela primeira vez, você embelezou e enriqueceu através do seu testemunho de amor e bondade! E você deve me sentir próximo, porque lhe presentearei com meu novo livro e, dessa maneira, dirijo-me a você com o sumo do que até agora conquistei e me tornei, com muito mais que meu corpo e feição, com muito mais que minha alma: com a potência da minha energia e amor, com uma parcela da minha profunda devoção, com um fragmento do meu futuro. O livro “do Bom Deus”...é tudo isso. Acolha-o bem e deixe-o concretizar meus votos na Noite Sagrada. Reconheça-me nele, querida Mama.
 
Querida Mama, (Westerwede, 21 de dezembro de1901)
 

Natal! Eu gostaria muito de lhe escrever uma longa carta natalina, mas na minha nova e invejável qualidade de pai, tenho tantas obrigações, que somente posso lhe enviar algumas poucas palavras afetuosas...eu tenho uma casa própria, uma mulher querida e uma criancinha para quem naturalmente desejo enfeitar uma árvore de natal... Pela hora dos presentes, estarei em pensamento com você!
 
Minha querida e bondosa Mama, (Paris, 21 de dezembro de1902)
 
Estamos nos aproximando da Noite de Natal...fiquei mais uma vez longamente sem escrever, não é mesmo? Mas ultimamente estive traalhando num ritmo extraordinário e , assim, precisei deixar pendente de resposta tudo que entrasse (inclusive assuntos afetivos e importantes). Perdoe-me. Como sempre acontece na ocasião, também nessa Noite estarei a seu lado, com carinho e cheio de amor...
 
Minha querida Mama, (Roma, 20 de dezembro de1903)
 
Somente no dia 24, na hora preciosa de paz, você deve ler estas linhas, testemunhas da minha presença em sua noite de Natal. Só com uma dádiva posso me apresentar, mas ela realmente me aproxima de você e me permite acompanhá-la, onde quer que esteja...O Menino Jesus que você me destinou adquiriu um valor ainda mais especial do que tudo que eu pudesse ofertar-lhe, depois do modo como você me escreveu a respeito!
A fé fortalece e a hora silenciosa do Natal é dessas, capazes de irradiar força, porque está impregnada pelo milagre e é plena de mistério....Tudo consiste em ater-se à grandeza, àquilo que nós vivenciamos no íntimo dos nossos corações e ninguém pode perturbar. Se nas horas de recolhimento e elevação, afirmamos ser vida o que em nós palpita vibrante e festivo e nosso olhar cintila com as lágrimas abundantes e sinceras, então o rebuliço que nos atordoa, o cotidiano e a tristeza não mais nos confundirão...
 
Minha querida e bondosa Mama, (Oberneuland, 20 de dezembro de1904)
 
Como sempre, no dia 24, às seis horas, pensarei em você e rogarei a Deus que prepare em seu íntimo uma hora de muita paz. Uma hora regida por uma infinda confiança, que soe como sinos natalinos. Tenha o espírito alegre, amada Mama. Pense em sua querida Roma e isso também será uma parcela de sua festa, se você endereçar uma breve carta a si mesma contendo uma única palavra: Roma.
 
Minha querida e bondosa Mama, (Wospswede, 20 de dezembro de1905)
 
...Enfeitarei a árvore de Natal por volta das cinco horas; se você, mais ou menos a essa hora nos dirigir suas orações, então elas encontrarão no meio do caminho nossos pensamentos que estarão à sua procura, a fim de levar-lhe o perfume, o brilho e a paz natalinos: e como são dádivas de coração para coração, naturalmente não existe distância; na sua reclusão você será, sim, abraçada por nós, e perceberá como estamos impregnados do espírito de Natal que também nos envolve.
 
Minha querida e bondosa Mama, (Capri, 19 de dezembro de 1906)
 
Aconteceu o que eu temia: os novos livros não chegaram e, mesmo se vierem a chegar nos dias vindouros, não tenho a esperança de poder colocá-los a tempo na sua mesa de Natal. Portanto, estou de mãos abanando. Ainda dei umas voltas esperando poder lhe comprar uma lembrança de Capri como presente provisório, mas preciso sinceramente confessar nada ter encontrado, porque fora da estação as lojas maiores cumprem uma espécie de férias invernais. Logo, me perdoe se pareço ainda mais miserável que de hábito: na verdade estou sempre chegando com o mesmo coração com o qual chegava como criança e, você não perdeu a confiança nesse coração, devido às complicações acumuladas pela vida entre duas pessoas próximas que raramente se vêem. Não é verdade?
Pois ele está novamente ao seu lado como sempre com os votos sinceros e calorosos, sem algum pedido especial desta vez, mas sim partilhando a paz das horas sagradas, quando todas as máquinas do mundo param e nada está em movimento, salvo os corações, que batem mais rápidas, festivas, misteriosas palpitações de esperança e bem-aventurança pura e silenciosa. Ambos solitários desta vez, nós estaremos especialmente próximos na noite de Cristo e você com certeza sentirá como meu desígnio a encontra quando você o busca no preâmbulo de suas orações.
 
Minha querida e bondosa Mama, (Oberneuland, 21 de dezembro de1907)
 
Todos os nossos mas efusivos votos para o momento sagrado de seu Natal. Você sabe, claro, como nós também nesse particular nos afinamos de maneira profunda em compreensão mútua, e o quanto sua solidão evoca uma série de relações misteriosas que talvez possam ser irradiadas com essa potência exclusivamente por quem está só.


CARTA DA EUROPA AO MEUS PAIS

Tenho, sinto e vivo saudades maravilhosas de vocês. A cada momento --fácil ou difícil, belo ou feio, agradável ou desagradável-- volto à vocês. E esse voltar é muito parecido com este meu voltar às Igrejas antigas --e aos símbolos mais permanentes que permearam a minha vida de criança. Deixando marcas e ressoando preces pela vida afora.
Tenho certeza, e ela vai ficando cada vez mais clara e serena, de que ser filho de quem sou me deu a oportunidade de um exercício de liberdade -- de repudiar ou concordar -- de aprender sempre, de procurar errar menos, de escolher com mais critério e de estar sempre disposto a enfrentar o difícil caminho da beleza, da solidariedade e da verdade.
Sou grato, por exemplo, por estar simplesmente vivo, cheio de carências e imperfeições, e pertencer a esse continente e a essa geografia humana. Esses laços, e até os desdobramentos dele, me prendem ao chão da humanidade. E ao mesmo tempo libertam signos e significações muito especiais e específicas. Caso da palavra exuperyana cativar de tantos significados e lembranças. E desta monumental Catedral de Colônia.
Vocês não podem imaginar o que foi pra mim estar diante dela e de mim mesmo, recapturado na infância. Acho que essa emoção só poderá ser transmitida diante de um frasco de perfume que eu vi e gravei ainda muito pequeno. Mas isso é indizível e indivisível! Talvez seja partilhável em um plano mais profundo e abrangente --mas só realizável por essas raras pessoas escolhidas e enraizadas no viver e conviver da gente.
De certa forma, por conjunturas sempre inexplicáveis, recebi o legado da vida através de vocês. Não para ser do jeito que sou: cheio de precariedades e incompletudes. Mas do jeito que vocês gostariam que eu fosse: invulnerável à dor e cheio de felicidade. Hoje, depois dos meus 48 anos, posso confessar que o sonho e o imaginário de vocês tem muito a ver com aquilo que eu fui, com aquilo que eu sou e, provavelmente, com aquilo que eu serei.
Vocês me deram e me doaram as primeiras percepções desse estar aqui. Foi junto de vocês que eu respirei pela primeira vez. Que eu chorei pela primeira vez.  O primeiro abraço e o primeiro beijo vieram de vocês. Como vieram de vocês as primeiras palavras e as primeiras alegrias do viver. Depois vieram as primeiras alegrias do conhecer, do viajar, do amar. E é claro, as celebrações do conviver. Hoje, a minha resposta, amorosa, fraterna, é que estou apenas no caminho que vocês abriram para mim nessa longa travessia da vida.
Não sei, e acho que nunca saberei, mostrar ou demonstrar a minha gratidão e a minha alegria de ser o prolongamento e a continuação de tudo aquilo que vocês já viveram e nós já vivemos juntos.
Tento fazer isso com meus filhos. E não só com meus filhos, de conformidade com aquilo que vocês me ensinaram e fazem, cristocentricamente, até hoje. É certo que tem horas em que isso é muito difícil. Mas em boa parte do tempo isso não é complicado e é até mesmo muito simples e natural. E como é bom sentir isso: esses elos fortes que nos prendem à vida de pessoas amadas e nos enredam no chão único da humanidade. Sou réu confesso de muitos equívocos e erros. Mas cansei disso e hoje procuro, talvez com mais maturidade e fé, aparar as arestas da minha personalidade, arredondar as formas do meu ser, aceitar mais os planos e os espaços reservados às diferenças. Não tenho mais receitas prontas, princípios simplórios, chaves falsas que servem para qualquer porta.
Busco e intento compreender as razões e os modos de cada um de meus semelhantes. Ou dessemelhantes. Mas sou frágil e incompetente para tarefa tão árdua. Por isso abdiquei dos meus inconformismos infantis. Mas quero deixar claro que não abandono a minha percepção de criança. Nem a minha inocência. Nem a minha revolta e a minha alegria, sempre viscerais e espontâneas.
Confio --e espero continuar confiando-- na vida e no amor. E a demonstração mais clara disso é que estou aqui, de novo na Europa, vendo e vivendo junto da mulher e do filho amados, as mais inusitadas e estimulantes situações. Todas elas emocionantes e convergentes sob a prismática idéia da revelação. São depuramentos experimentais da nossa própria natureza e dos nossos próprios --ou impróprios -- valores, posto à prova em incontáveis situações e momentos. O célebre concerto para Violino do Tchaikovsky, por exemplo, está irremediavelmente ligado à minha infância e ao papai. E vocês não podem imaginar o que eu senti ao ouví-lo por esses caminhos encantatórios da Áustria e da República Tcheca.
Compramos uma fita em Praga e a gravação é, realmente, soberba, magnífica. Coisa que não é novidade nenhuma, pois no Leste europeu o time de cordas é sempre de primeira. E nem é preciso dizer como isso me fez voltar no tempo. Lembrei do Ruggero Ricci, da capa do disco e do papai, é claro, entusiasmado e emocionado com as frases melódicas e com aquele discurso sonoro romântico e comovente. E não dá pra deixar de chorar! De contentamento! De felicidade! E de saudade! Que impulsos misteriosos são esses que ecoam em minha alma aberta e encantada? O que o papai sentia ouvindo essa música na sala de casa, na Cristiano Viana, não pode ser muito diferente do que estou sentindo agora, 40 anos depois.
Que momentos de comunhão são estes que nos recolocam em nossos verdadeiros lugares, uns diante dos outros, uns ao lado dos outros, unidos por esse laço invisível das origens? Quantas emoções vividas pelo papai não tiveram e não estão tendo continuidade em mim, em espirais cíclicas? Quantos gestos e palavras não ficaram dentro de mim, ecoando e reverberando até nessa música? Pois é. Acho que viver é muito isso: esse reencontro forte e pleno com a paisagem humana de cada um de nós.
beijos amorosos do filho
Rubens /dezembro/1996


Publicado por Rubens Jardim em 30/12/2010 às 12h49
 
25/12/2010 15h17
POETA, DIPLOMATA E CAPITÃO DO MATO

"Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural.  Foi o único de nós que teve a vida de poeta. Eu queria ter sido Vinicius de Moraes"
. Com essas palavras, sem disfarçar sua imensa admiração pelo amigo, Carlos Drummond de Andrade ressaltou o aspecto mais ousado e controvertido de Vinicius. Um poeta que surge nos anos 30 tratando das questões mais complicadas do ser humano: o mistério, a paixão e a morte.

Segundo José Castelo, seu biógrafo, Vinicius foi um homem que viveu para se ultrapassar e para se desmentir. Para se entregar totalmente e fugir, depois, em definitivo. Para jogar, enfim, com as ilusões e com a credulidade, por saber que a vida nada mais é que uma forma encarnada de ficção. Foi, antes de tudo, um apaixonado — e a paixão, sabemos desde os gregos, é o terreno do indomável.

POEMA DE NATAL
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.



Publicado por Rubens Jardim em 25/12/2010 às 15h17
 
22/12/2010 21h53
O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças
e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

Torturado pelo passado, assombrado com o futuro e testemunha lúcida de si mesmo, Carlos Drummond de Andrade
é o poeta definitivo de seu tempo. Escreveu versos inesquecíveis sobre o mundo, sobre Itabira e sobre a situação do ser humano em confronto com as mudanças.Não posso deixar de citar aqui algumas preciosidades:“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.” O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.”“Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor.Nele não cabem nem as minhas dores.”“Sou tão pequeno (sou apenas um homem) e verdadeiramente só conheço minha terra natal, dois ou três bois, o caminho da roça, alguns versos que li há tempos.”

ORGANIZA O NATAL
Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.


Carlos Drummond de Andrade


Publicado por Rubens Jardim em 22/12/2010 às 21h53
 
16/12/2010 20h34
UM MENINO JESUS SEM MOLDURAS E SEM ALTARES.
UM MENINO JESUS QUE BRINCA, SORRI E É
A ETERNA CRIANÇA, O DEUS QUE FALTAVA


O nosso poeta maior, Carlos  Drummond de Andrade, dizia que teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança.E como dezembro é o mês em que comemoramos o nascimento da criança mais célebre da humanidade, o menino Jesus, resolvi abrir este espaço para o Natal.
E para iniciar as celebrações natalinas escolhi um poema de Alberto Caeiro --um dos heterônimos de Fernando Pessoa--gênio literário que só foi plenamente reconhecido após a morte. Em vida publicou apenas um livro, Mensagem(1934) que ganhou o prêmio de "segunda categoria" do Concurso Antero de Quental. O vencedor de "primeira categoria" foi Vasco Reis com o livro Romaria. O que deixa claro que as avaliações críticas quase sempre não conseguem dar conta do recado. Aliás,será que existe alguém hoje que sabe quem é Vasco Reis?
Mas vamos deixar isso de lado para mergulhar nos versos de Caeiro e nessa fascinante imagem de um menino Jesus sem molduras e sem altares. Um menino Jesus que brinca e sorri e é a eterna criança, o Deus que faltava.

Poema do Menino Jesus
 
Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
 
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
 
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
 
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
 
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
 
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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
 
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
 
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
 
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
 
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
 
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
 
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.
 
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
 
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
 
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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Alberto Caeiro


Se vc quiser ver e ouvir a Bethânia dizendo esse poema é só clicar ou copiar o link abaixo.
http://www.youtube.com/watch?v=gWI1gs0dJYk





 


Publicado por Rubens Jardim em 16/12/2010 às 20h34



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