09/01/2011 17h49
Sem dar fuga para as rugas e sem procurar abrigo no jazigo
O POETA ESTÁ DE VOLTA SABENDO QUE AMOR É SEMPRE UM SÓ, GENITAL E GENITIVO, UM DEUS E UM SUBSTANTIVO, UM FIO DE LIBERDADE E UM LAÇO QUE VIRA NÓ.
Ao abrir este espaço ao poeta Carlos Soulié do Amaral, não poderia deixar de mencionar um conceito desenvolvido por Jung: a sincronicidade. Que em termos mais simples pode ser associada ou substituída pela expressão: coincidência significativa. Claro que é o mínimo que posso dizer a respeito de um fato que nos aproxima radicalmente: tanto Soulié como eu ficamos trinta anos sem publicar livro de poesia! Eu ainda participei, durante esse período, de diversas antologias publicadas nestas paragens e no exterior. Mas, que eu saiba, o Soulié tornou-se bem mais refratário e nos privou de vez de sua voz poética -- já tão bem recebida pela crítica nos tempos de nossa juventude. Só para lembrar, Carlos Soulié do Amaral ganhou, em 1966, o prêmio Jabuti na categoria poesia. E ganhou, no ano seguinte, outro Jabuti –como crítico. Pra dimensionar a importância disso, basta citar alguns ganhadores: Cassiano Ricardo(em 1965) , João Cabral (em 1967) e Carlos Drummond de Andrade(em 1968). Para um jovem poeta de 20 e poucos anos, lúcido, sensível e inteligente, essas premiações poderiam estimular a realização de uma obra mais numerosa. Mas com Soulié deu-se o inverso. Ele só publicou três livros de poemas, todos nos anos 60: Tributo Poético (1963), Procura e Névoa(1965) e Morte na Rua Simpatia(1967). A única exceção é Verba, livro publicado em 1999 graças aos “amigos e companheiros reencontrados”. Mesmo sem lembrar claramente de nossas conversas na juventude e de três reencontros poéticos acontecidos nos últimos dez anos, atrevo-me atribuir ao poeta Carlos Soulié do Amaral o entendimento de que a poesia é quase uma religião, um gênero sagrado. Pelo menos é o que depreendi do texto de apresentação. Ali ele cita o Evangelho desse jeito: “Como sabemos, Verba é o nominativo plural de Verbum. In principio erat Verbum, diz o poeta João no prólogo de seu Evangelho.” Depurado pelo tempo e pela vida, Soulié continua sendo um poeta conciso, econômico, de fina sensibilidade e com hábil domínio do seu instrumento: a palavra. Daí o surgimento dos ritmos, das pulsações verbais, das sonoridades e de tudo aquilo que se situa nos limbos misteriosos e nos abismos existentes dentro de cada um de nós. Afinal, qualquer poema não deixa de ser a manifestação de um mistério. Um mistério original que está na sua própria origem--e que só o poema pode revelar. Portanto, vamos as revelações do poeta Carlos Soulié do Amaral. Antes disso, porém, gostaria de lembrar que a condição de poeta e o exercício da poesia já causaram sérios problemas a Soulié . Suspeito de atividades subversivas por fazer recitais de poesia em clubes, escolas e até mesmo em boates, ele foi preso em 1964. Em 1965, quando organizou o histórico Comício Poético da Praça da Sé, Soulié foi, juntamente com seus companheiros Álvaro Alves de Faria, Eduardo Alves da Costa, Lindolf Bell, Rubens Jardim, Clarice Jacy Piovesan e outros, cercado pela polícia. "O número de pessoas que nos ouvia era tão grande que a polícia não pôde fazer nada", recorda ele. "A massa de gente interessada e curiosa em relação ao que dizíamos, formou um escudo protetor que nos salvou de complicados contratempos.” Com a palavra o poeta: VERBA I A palavra acácia Cai em cachos Se desmancha em ramos Se avoluma em folhas Pulsa Em flor e luz Treme Quando o vento vem E se molha toda Quando a chuva. A palavra acácia Pode ter um ninho dentro. Afora todo o céu E terra Que entrelaça. A palavra número Tem letras Como acácia. Mas que sol a aquece? Verba ll A palavra número É sempre uma só: É a palavra um. Da simplicidade Que veste a unidade Tudo mais advém Num jogo que enlaça E aparta, contém E dispersa, mede, Acresce, subtrai E nunca tem fim. Mas toda a magia Dessa uma palavra Foge da poesia. Bem melhor o grito De um gato, de um rato. Pois isso arrepia. Verba lll A palavra número É fonte de guerra, Fruto de botins Ou afã de afins. A palavra número É insinuante. Entra até na acácia: Quantas são as pétalas De um cacho maduro? Quantos são os tons De verde no amarelo? A palavra número É quantificante, É socializante. Decreta e concreta. É a raiz da usura. É uma legião. Verbo que exacerba, Em tudo põe grilhão. Espelho l Além do brilho álgido e polido Que treme nesse campo de cristal, Há chumbo e estanho, há um peso denso e liso Marcando a indiferença de uma frente Contrária a tudo em plano horizontal, Sempre impassível revelando o inciso, Esfíngica, incomunicável, pronta A devorar depressa o que a defronta. E o que a defronta, o devorado, vê Nada brilhante e ardente como gelo, Mas só o que ainda tenta resistir (com seu cansaço e com o seu cabelo Seco e desfeito, com seu rosto inchado E sem disfarce, a boca espessa e amarga) À fácil aparência do cristal Opondo, em oferenda matinal, Aos metais densos substância igual: Uma face onde as rugas podem rir A gosto, do desgosto de existir. SONETO DA ALEGRIA De nada, ou quase nada, uma alegria Criar e permitir que nos aqueça E acenda o vôo e a voz da fantasia Provando-se à exaustão adversa e avessa. Uma alegria que dê fogo à fria E brumosa jornada e não se esqueça De transbordar, cravando-se travessa E incontida, no coração do dia. E que por ela os nossos corações Se deixem, sem constrangimento, ser E fluir, como fluem as canções, Como fluem os rios, sem saber Nem indagar as mil ou mais razões De tudo quanto vive e vai morrer. Despertar Por mais que pese o imemorial e vasto Cansaço, e a náusea e o asco, Por mais que tudo se revele gasto, Há´que tentar ainda resistir Ao peso, à náusea, ao asco E a pálpebra da pálpebra soltar E permitir que uma vez mais se faça Aquela bruma fluida e elástica Que em sonho e frio se entrelaça Uma vez mais E, lentamente, qual ginástica De lesmas na fumaça, Uma vez mais Abrir os olhos para ver a treva De pelos brancos ficar salpicada. E pouco a pouco, emergir dela Até domar essa tordilha cor, Mista de sono, noite, madrugada, Que empina o dia, mais um dia Subitamente aceso na janela. Publicado por Rubens Jardim em 09/01/2011 às 17h49
30/12/2010 12h49
VOCÊS ME EDUCARAM NA IMENSA ALEGRIA DA EXPECTATIVA
CARTAS NATALINAS DE RILKE PARA SUA MÃE
Costuma-se dizer que o conjunto das cartas escritas por Rilke corresponde ao triplo de sua obra poética. E se Rilke não foi poeta prolífico, também não foi autor de poucos livros de poemas. Publicou Vida e Canções (1894), Histórias do Bom Deus(1900),O Livro das Imagens (1902), O Livro das Horas (1905), Novos Poemas (1907-1908), A Vida de Maria (1913), Elegias de Duino (1923) e Sonetos a Orfeu (1923). Em prosa, suas obras mais conhecidas são Os cadernos de Malte Laurids Brigge e as célebres e indispensáveis Cartas a um Jovem Poeta --livros imperdíveis. Mas ele foi prodigioso, também, em sua correspondência, espantosamente vasta -- e diversificada. Existem cartas para a grande amiga russa Lou Andreas- Salomé (amiga de Freud e Nietzsche), para a pintora Baladine Klossowska, para a pianista Magda de Hattingberg, para a princesa Maria von Thurn und Taxis (Castelo de Duino), para a condessa Aurélia Gallarati Scotti e para a jovem operária francesa Marthe Hennebert. Destacamos, desta vez, a correspondência natalina de Rilke com sua mãe, Sophie. Durante 26 anos –de 1900 a 1925 – ele escreveu, com constância e fidelidade, cartas que são uma verdadeira celebração da festa de Natal. Ele mesmo confessou que, através do ritual do nascimento do menino Jesus, reconquistou o acesso à felicidade da infância.Textualmente: “Todas as alegrias de minha vida me remetem irremediavelmente às recordações natalinas.” EIS AÍ TRECHOS DE ALGUMAS CARTAS Minha querida e bondosa Mama, (Berlim, 22 de dezembro de1900) Nunca conversamos muito sob a árvore de Natal. Hoje tampouco quero fazê-lo, sobretudo, pois as palavras no papel nem ao menos suscitam ilusão de proximidade. Aliás, desejo-lhe mais que a ilusão –a certeza, de que estou ao seu lado nessa noite que, desde quando a vivenciei pela primeira vez, você embelezou e enriqueceu através do seu testemunho de amor e bondade! E você deve me sentir próximo, porque lhe presentearei com meu novo livro e, dessa maneira, dirijo-me a você com o sumo do que até agora conquistei e me tornei, com muito mais que meu corpo e feição, com muito mais que minha alma: com a potência da minha energia e amor, com uma parcela da minha profunda devoção, com um fragmento do meu futuro. O livro “do Bom Deus”...é tudo isso. Acolha-o bem e deixe-o concretizar meus votos na Noite Sagrada. Reconheça-me nele, querida Mama. Querida Mama, (Westerwede, 21 de dezembro de1901) Natal! Eu gostaria muito de lhe escrever uma longa carta natalina, mas na minha nova e invejável qualidade de pai, tenho tantas obrigações, que somente posso lhe enviar algumas poucas palavras afetuosas...eu tenho uma casa própria, uma mulher querida e uma criancinha para quem naturalmente desejo enfeitar uma árvore de natal... Pela hora dos presentes, estarei em pensamento com você! Minha querida e bondosa Mama, (Paris, 21 de dezembro de1902) Estamos nos aproximando da Noite de Natal...fiquei mais uma vez longamente sem escrever, não é mesmo? Mas ultimamente estive traalhando num ritmo extraordinário e , assim, precisei deixar pendente de resposta tudo que entrasse (inclusive assuntos afetivos e importantes). Perdoe-me. Como sempre acontece na ocasião, também nessa Noite estarei a seu lado, com carinho e cheio de amor... Minha querida Mama, (Roma, 20 de dezembro de1903) Somente no dia 24, na hora preciosa de paz, você deve ler estas linhas, testemunhas da minha presença em sua noite de Natal. Só com uma dádiva posso me apresentar, mas ela realmente me aproxima de você e me permite acompanhá-la, onde quer que esteja...O Menino Jesus que você me destinou adquiriu um valor ainda mais especial do que tudo que eu pudesse ofertar-lhe, depois do modo como você me escreveu a respeito! A fé fortalece e a hora silenciosa do Natal é dessas, capazes de irradiar força, porque está impregnada pelo milagre e é plena de mistério....Tudo consiste em ater-se à grandeza, àquilo que nós vivenciamos no íntimo dos nossos corações e ninguém pode perturbar. Se nas horas de recolhimento e elevação, afirmamos ser vida o que em nós palpita vibrante e festivo e nosso olhar cintila com as lágrimas abundantes e sinceras, então o rebuliço que nos atordoa, o cotidiano e a tristeza não mais nos confundirão... Minha querida e bondosa Mama, (Oberneuland, 20 de dezembro de1904) Como sempre, no dia 24, às seis horas, pensarei em você e rogarei a Deus que prepare em seu íntimo uma hora de muita paz. Uma hora regida por uma infinda confiança, que soe como sinos natalinos. Tenha o espírito alegre, amada Mama. Pense em sua querida Roma e isso também será uma parcela de sua festa, se você endereçar uma breve carta a si mesma contendo uma única palavra: Roma. Minha querida e bondosa Mama, (Wospswede, 20 de dezembro de1905) ...Enfeitarei a árvore de Natal por volta das cinco horas; se você, mais ou menos a essa hora nos dirigir suas orações, então elas encontrarão no meio do caminho nossos pensamentos que estarão à sua procura, a fim de levar-lhe o perfume, o brilho e a paz natalinos: e como são dádivas de coração para coração, naturalmente não existe distância; na sua reclusão você será, sim, abraçada por nós, e perceberá como estamos impregnados do espírito de Natal que também nos envolve. Minha querida e bondosa Mama, (Capri, 19 de dezembro de 1906) Aconteceu o que eu temia: os novos livros não chegaram e, mesmo se vierem a chegar nos dias vindouros, não tenho a esperança de poder colocá-los a tempo na sua mesa de Natal. Portanto, estou de mãos abanando. Ainda dei umas voltas esperando poder lhe comprar uma lembrança de Capri como presente provisório, mas preciso sinceramente confessar nada ter encontrado, porque fora da estação as lojas maiores cumprem uma espécie de férias invernais. Logo, me perdoe se pareço ainda mais miserável que de hábito: na verdade estou sempre chegando com o mesmo coração com o qual chegava como criança e, você não perdeu a confiança nesse coração, devido às complicações acumuladas pela vida entre duas pessoas próximas que raramente se vêem. Não é verdade? Pois ele está novamente ao seu lado como sempre com os votos sinceros e calorosos, sem algum pedido especial desta vez, mas sim partilhando a paz das horas sagradas, quando todas as máquinas do mundo param e nada está em movimento, salvo os corações, que batem mais rápidas, festivas, misteriosas palpitações de esperança e bem-aventurança pura e silenciosa. Ambos solitários desta vez, nós estaremos especialmente próximos na noite de Cristo e você com certeza sentirá como meu desígnio a encontra quando você o busca no preâmbulo de suas orações. Minha querida e bondosa Mama, (Oberneuland, 21 de dezembro de1907) Todos os nossos mas efusivos votos para o momento sagrado de seu Natal. Você sabe, claro, como nós também nesse particular nos afinamos de maneira profunda em compreensão mútua, e o quanto sua solidão evoca uma série de relações misteriosas que talvez possam ser irradiadas com essa potência exclusivamente por quem está só. CARTA DA EUROPA AO MEUS PAIS
Tenho, sinto e vivo saudades maravilhosas de vocês. A cada momento --fácil ou difícil, belo ou feio, agradável ou desagradável-- volto à vocês. E esse voltar é muito parecido com este meu voltar às Igrejas antigas --e aos símbolos mais permanentes que permearam a minha vida de criança. Deixando marcas e ressoando preces pela vida afora. Publicado por Rubens Jardim em 30/12/2010 às 12h49
25/12/2010 15h17
POETA, DIPLOMATA E CAPITÃO DO MATO
"Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural. Foi o único de nós que teve a vida de poeta. Eu queria ter sido Vinicius de Moraes". Com essas palavras, sem disfarçar sua imensa admiração pelo amigo, Carlos Drummond de Andrade ressaltou o aspecto mais ousado e controvertido de Vinicius. Um poeta que surge nos anos 30 tratando das questões mais complicadas do ser humano: o mistério, a paixão e a morte. Segundo José Castelo, seu biógrafo, Vinicius foi um homem que viveu para se ultrapassar e para se desmentir. Para se entregar totalmente e fugir, depois, em definitivo. Para jogar, enfim, com as ilusões e com a credulidade, por saber que a vida nada mais é que uma forma encarnada de ficção. Foi, antes de tudo, um apaixonado — e a paixão, sabemos desde os gregos, é o terreno do indomável. POEMA DE NATAL Para isso fomos feitos: Para lembrar e ser lembrados Para chorar e fazer chorar Para enterrar os nossos mortos — Por isso temos braços longos para os adeuses Mãos para colher o que foi dado Dedos para cavar a terra. Assim será nossa vida: Uma tarde sempre a esquecer Uma estrela a se apagar na treva Um caminho entre dois túmulos — Por isso precisamos velar Falar baixo, pisar leve, ver A noite dormir em silêncio. Não há muito o que dizer: Uma canção sobre um berço Um verso, talvez de amor Uma prece por quem se vai — Mas que essa hora não esqueça E por ela os nossos corações Se deixem, graves e simples. Pois para isso fomos feitos: Para a esperança no milagre Para a participação da poesia Para ver a face da morte — De repente nunca mais esperaremos... Hoje a noite é jovem; da morte, apenas Nascemos, imensamente. Publicado por Rubens Jardim em 25/12/2010 às 15h17
22/12/2010 21h53
O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças
e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.
Torturado pelo passado, assombrado com o futuro e testemunha lúcida de si mesmo, Carlos Drummond de Andrade é o poeta definitivo de seu tempo. Escreveu versos inesquecíveis sobre o mundo, sobre Itabira e sobre a situação do ser humano em confronto com as mudanças.Não posso deixar de citar aqui algumas preciosidades:“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.” O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.”“Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor.Nele não cabem nem as minhas dores.”“Sou tão pequeno (sou apenas um homem) e verdadeiramente só conheço minha terra natal, dois ou três bois, o caminho da roça, alguns versos que li há tempos.” ORGANIZA O NATAL Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom. Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo. Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento. A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro. A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém. Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz. O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor. Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível. A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã. O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive. E será Natal para sempre. Carlos Drummond de Andrade Publicado por Rubens Jardim em 22/12/2010 às 21h53
16/12/2010 20h34
UM MENINO JESUS SEM MOLDURAS E SEM ALTARES.
UM MENINO JESUS QUE BRINCA, SORRI E É
A ETERNA CRIANÇA, O DEUS QUE FALTAVA O nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, dizia que teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança.E como dezembro é o mês em que comemoramos o nascimento da criança mais célebre da humanidade, o menino Jesus, resolvi abrir este espaço para o Natal. E para iniciar as celebrações natalinas escolhi um poema de Alberto Caeiro --um dos heterônimos de Fernando Pessoa--gênio literário que só foi plenamente reconhecido após a morte. Em vida publicou apenas um livro, Mensagem(1934) que ganhou o prêmio de "segunda categoria" do Concurso Antero de Quental. O vencedor de "primeira categoria" foi Vasco Reis com o livro Romaria. O que deixa claro que as avaliações críticas quase sempre não conseguem dar conta do recado. Aliás,será que existe alguém hoje que sabe quem é Vasco Reis? Mas vamos deixar isso de lado para mergulhar nos versos de Caeiro e nessa fascinante imagem de um menino Jesus sem molduras e sem altares. Um menino Jesus que brinca e sorri e é a eterna criança, o Deus que faltava. Poema do Menino Jesus Num meio-dia de fim de Primavera Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à terra. Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de longe. Tinha fugido do céu. Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No céu tudo era falso, tudo em desacordo Com flores e árvores e pedras. No céu tinha que estar sempre sério E de vez em quando de se tornar outra vez homem E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Com uma coroa toda à roda de espinhos E os pés espetados por um prego com cabeça, E até com um trapo à roda da cintura Como os pretos nas ilustrações. Nem sequer o deixavam ter pai e mãe Como as outras crianças. O seu pai era duas pessoas - Um velho chamado José, que era carpinteiro, E que não era pai dele; E o outro pai era uma pomba estúpida, A única pomba feia do mundo Porque nem era do mundo nem era pomba. E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. Não era mulher: era uma mala Em que ele tinha vindo do céu. E queriam que ele, que só nascera da mãe, E que nunca tivera pai para amar com respeito, Pregasse a bondade e a justiça! Um dia que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar, Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu E serve de modelo às outras. Depois fugiu para o Sol E desceu no primeiro raio que apanhou. Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural. Limpa o nariz ao braço direito, Chapinha nas poças de água, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos cães. E, porque sabe que elas não gostam E que toda a gente acha graça, Corre atrás das raparigas Que vão em ranchos pelas estradas Com as bilhas às cabeças E levanta-lhes as saias. A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas Quando a gente as tem na mão E olha devagar para elas. Diz-me muito mal de Deus. Diz que ele é um velho estúpido e doente, Sempre a escarrar para o chão E a dizer indecências. A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E o Espírito Santo coça-se com o bico E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. Diz-me que Deus não percebe nada Das coisas que criou - "Se é que ele as criou, do que duvido." - "Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória, Mas os seres não cantam nada. Se cantassem seriam cantores. Os seres existem e mais nada, E por isso se chamam seres." E depois, cansado de dizer mal de Deus, O Menino Jesus adormece nos meus braços E eu levo-o ao colo para casa. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural. Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre. E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E outra a tudo que existe E assim vamos os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que é saber por toda a parte Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena. A Criança Eterna acompanha-me sempre. A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado. O meu ouvido atento alegremente a todos os sons São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. Damo-nos tão bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa, Graves como convém a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo o universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixá-la cair no chão. Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens E ele sorri porque tudo é incrível. Ri dos reis e dos que não são reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos comércios, e dos navios Que ficam fumo no ar dos altos mares. Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com a luz do Sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos dos muros caiados. Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E às vezes acorda de noite E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar, Põe uns em cima dos outros E bate palmas sozinho Sorrindo para o meu sono. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno. Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama. E conta-me histórias, caso eu acorde, Para eu tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar Até que nasça qualquer dia Que tu sabes qual é. Alberto Caeiro Se vc quiser ver e ouvir a Bethânia dizendo esse poema é só clicar ou copiar o link abaixo. http://www.youtube.com/watch?v=gWI1gs0dJYk Publicado por Rubens Jardim em 16/12/2010 às 20h34
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