Rubens Jardim

A poesia é uma necessidade concreta de todo ser humano.

Meu Diário
27/07/2012 12h11
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (24)

 

CARMEM LÚCIA FOSSARI (1954) poeta catarinense é mestre em Literatura Brasileira pela UFSC com opção em Teatro, diretora de espetáculos do DAC - Departamento Artístico Cultural da UFSC, diretora e fundadora do grupo de pesquisa Teatro Novo. Escreveu, encenou e dirigiu várias peças que foram premiadas. Publicou Heresia(2011) após testar a receptividade de seus poemas em blogs e sites da internet.

POEMA PARA FERNANDO ARRABAL

Uma borboleta voou desde as ferrugens

dos carros de teu cenográfico mundo
de tantos que o gestastes em teu sangue espanhol
do confronto, do teu exílio e retorno ao páis
que te deu três irmãos d.arte, naquilo que a familiaridade
nas identidades de quem rompe e reinventa
os traduzem,
por isto digo-os teus irmãos
aqueles que a linguagem, em igual
visceralidade tua,moeram as confortáveis
imagens e palavras e destruindo-as emergiram ao novo,
obrigando-nos redescobrir angulações do olhar e
do pensamento.

Dali, um salvador
onírico,
picasso, um pablito dos poblitos que choraram nele
quando pintou guernica, e tu
fernado, de madre filho de carmen
do pai que a ideologia te roubou a ti
dos afagos, dos beijos e carinhos
e tu que da palavra edificastes uma florestas de páginas impressas
ao drama aquarelastes o teu humor
de olhares de todos os peixes
nadando nas aquosas bocas, babilonicas
arquiteto da não arquitetura, o revoltoso sem armas
o capaz de embriagar-se a falar com o deus
em ejaculatórias de rios nascentes do oceano
arrabalesco de tuas imagens , multiplas de ti mesmo
voando sobre uma jogada de xadrez
cavalgando o touro da infancia que sempre volta

Depois que tomado de sangue e tempo,
te escorrem do peito as palavras com que nos colocas a coroa de espinhos
nesta cruz de vivermos em solidão do existirmos assim tão desprotegidos,
embora as armas e as guerras possam sob tua arte virarem um pic nic.
Arrabal de coração menino de afetos e afagos aos que te leem mais atentamente
provocas o pánico aos resistentes defensores
da ordem estabelecida hierárquica… Tu não a credulas
e nos abençoas ao milagre de
podermos por ti esquecermos as absolutas certezas
os absolutos sentimentos e nos permitirmos a dádiva da dúvida,
da inquietação.

Tu és o terceiro espanhol, forjado na espanha pós guerra civil
e todo o pó e lágrimas se uniram em argila
onde esculpes na solidão humana,a ferida aberta
por habirtamos aos tempos de uma torre de babel.

Canto para ti, porque acendes o amor , que lorca tão bem o cantou,
mas tu, o acendes em fogueira ,
que são muitas, crepitantes chamas
queimando nossas entranhas em fogo pánico
para que não nos esqueçamos, que na brevidade , não cabe nenhum poder,
sim desafiarmos , todos eles, anarquicamente.

Desde nosso mais íntimo forum patafísico, que o humor é a única ponte que atravessa o medo, o terror
e tatua ao desejo que a vida é uma flor que mastigamos
em viver, mas reservo para ti as pétalas rubras
que a emoção de ler-te as perfilam num colar da palavra
liberdade.

POESIA À FEDERICO GARCÍA LORCA

Em ternura tuas palavras

Ainda ressoam

Ecos, e, se tuas
As palavras

Porque desvendas e,

Por teu sentimento

Revelam-se, são nossas

As palavras

Que precisamos ouvir

E evocam também as

Nossas “veias abertas”

E, então vem à cena:

“ LA BARRACA”

Nos bairros e vilas camponesas

Eis o lazer pensante,

Chegando cedinho

Antes mesmo que a

Nova ordem social

Traga:

Sopa quente

A todas as mesas!

O teu Teatro, chegou

Trazendo vida à quem

Tem que ter esperanças!!

E,o outro tempo, que

Também passará...

Há de chegar breve,

E vai soprar nos ouvidos

Em sussurros

LIBERDADE

(carícia comum)

Olho agora teus olhos

Negros,

Tão negros e belos

Que não conheci,

Mas que os vejo, emergem

Impressos, fotografias

E, eles ainda falam

Mesmo, depois de serem fuzilados,

se alam do papel memória e,

Contam as nossas incontáveis

Desesperanças.

Só estes teus versos fortes

movimentam e penetram

E dizem que a força do trabalho

De sol a sol, dos homens, das mulheres,

E (que horror) das crianças,

Silenciam gritos!

Só eles falam à todos nós

De que é inabalável o movimento

Do movimento

Que chega da força coletiva

Para que este mundo, do não

Seja ontem.

Agora choras porque te roubam

A tua vida

E os teus olhos negros se fazem silêncio.

S i l ê n c i o

Mas as nossas vozes de trabalho, não te silenciam

E, gritamos ensurdecidas,

ensurdecidos, até que

Por tuas palavras resgatamos

Que há outro caminho, por onde caminhamos

E caminhamos em ti abraçados

LORCA, LORCA!

....Continuamos.

 

TRAVELLING

Minha vida em viagem etiquetada
Sob a mala que transporta
Mundo afora
Tantos mundos
De meu ser
Que já nem sei
Quando minhas mãos de
Espanto e surpresa
Retiram da bagagem
Mala aberta
Outros livros de poesias já nascidas

A bagagem de poemas já bem sei
Estão antes de ser e inda depois
Seguirão em viagem sem retorno
E noutras mãos e destinos seguirá
A mala com outras etiquetas de destino

Em deslocamento segue, um pouco de ausência,
Outro tanto de presença
Mais ainda de presente em futuro almejando
A rota da viagem vislumbrar

E, da poesia que emerge mala aberta
Um doce ar perfuma
As palavras e nelas,
Embrulhadas em fina lamina
Roça ao sangue em gotas minha pele
Não sangra de meu ser mais que a sensação
De ver pouco a pouco a vida
A esvair-se.
Detenho de aspirar doce perfume, do amor
Que muda todas as rotas
E faz eterna a nossa tão pequena rota
Debaixo da mala etiquetada
Que ora segue em seu destino de encontro.

 

VOLTEIO

Difusa imagem
retornas
escorrendo na taça
gota a gota
como numa parede translucida
tuas palavras embebem
no vinho da memória
e te encostas na minha epiderme
de saudades
Voilá!

RITA MOUTINHO (1951) poeta cariosa, jornalista e pesquisadora, é formada em comunicação social pela PUC-RIO, colabora em jornais e revistas e orienta oficinas de poesia. Estreou em 1975, com Hora Quieta, livro que teve muito boa repercussão crítica. Seguiram-se A Traça(1982), Uma ou Duas Luas(1987), Vocabulário, Um Homem(1995), Romanceiro dos Amantes (1999) e Sonetos dos Amores Mortos(2006).

A PAZ NÃO FAZ BARULHO

À noite nascem as horas de viagem:

carrego o dia em bagagem até o cimo

da falésia e lanço os desatinos em mergulho.

 

Só então as límpidas águas do escuro

alvam o futuro das dissonâncias do dia.

O choro estia e durmo: a paz não faz barulho.

 

VELEIRO

Posso ser veleiro,
mastro, parte ossificada,
velas, sensibilidade,
casco, verdade.

Não multiplico pães nem peixes,
choro onde me sangram as chagas,
singro humana pelos mares,
faço imagens, não milagres.

Mas se você se fizer veleiro,
eu andarei sobre as águas.

 

SONETO DUPLO PARA YANG E YIN

A arte de amar nos nasce espontaneamente,
é uma fonte que brota em nosso corpo ermo,
é ímã que magnetiza, acopla e inda freme
almas em cio, ímpares de aconchego.
As carícias ebulem, há licor pras sedes,
e lá se vão conversas e sempre é cedo.
Paixão vem em torrente tal vem o sêmen,
manifestam-se límpidos os desejos.
Em distância os amantes abrigam um ao outro,
não acontecem elipses, são unidade,
cada encontro é viver verdades do sonho.
Amar carameliza o olhar, e uma clave
pauta as palavras ternas do íntimo forno.
O estado de amar é um sol escarlate.

...........................................................................

A arte de desamar é árdua e espinhosa,
é por um longo tempo abraçar um cardo,
é como sair de uma dança de roda
que no eixo tem roldana ainda no passado.
Um maquinismo pára, o corpo se ignora,
e o espírito procura restaurar cacos
em rede neuronal, memória, que adoça
com momentos azuis a hora do cansaço.
Também cria-se um ódio, põe-se uma laje,
e o sofrer se apresenta menos penoso.
Não é. Há que enlutar, sentir a dor da ave
que se privou de uma asa em meio da viagem.
A arte de desamar dói, é ir do eco ao oco,
dói admitir o fim de uma eternidade.

SONETO DE UM SÁBADO SURREAL

Tu, anjo do “Teorema” e também bruxo,
cevada nas carícias, fel na fala,
pastor de pedras, âncora de surtos,
córrego azul, raposa, avenca, magma.
Eu, certa belle de jour, sal de soluços,
frasco de versos, útero de asas,
peregrina das noites, nau sem prumo,
alma de nácar, águia, orquídea, calda.
Nas vísceras do oceano nos amamos,
embarcamos um no outro noite adentro,
espumando os delírios mais insanos.
Depois, viraste tronco, e eu, filodendro.
Amores podem ser longos e poucos,
mas pelo menos um tem que ser louco.

 

MARILDA CONFORTIN (1956) poeta catarinense, prosadora, analista de sistemas e funcionária pública aposentada, vive desde 1975 em Curitiba. Já ministrou várias oficinas deu palestras e fez leitura pública de poesia em teatros, bares e praças. Representou o Brasil em encontros de poesia no México, Nicarágua e Portugal. Em novembro deste ano estará no XX Encuentro Internacional de Mujeres Poetas en el País de las Nubes, Oaxaca, México. Publicou Busca e Apreensão(2010), Lua Caolha(2008)

 

Gostosa!

Bela cantata!
Me allegro,
ma non treppo.

 

Per ver tendo te

Disseco-te
verso
per verso

 

Brinde

Poesia é uma Flor Bela que Espanca,

golpeia, fere, maltrata.

Poesia quando ataca provoca cirrose,

divórcio, neurose, taquicardia, tuberculose…

Poesia mata!

Por isso, os grandes poetas estão mortos.

Por isso, os poetas vivos são assim tão… tortos.

Só loucos, vivem a poesia em sua essência.

Em sã consciência,

a hipocrisia desta vida é insalubre,

arde feito urtiga e é mais fria

do que a vodka que consumia Maiakowski.

Por isso eu ergo uma taça, e faço um brinde:

A todos os malditos poetas

seres visceradis pelo avesso,

não servis,

vis citados,

anônimos e abominados

que rabiscam e recitam seus manuscritos

pelos botecos,

sebos,

saraus e feiras

livres prisioneiros da poesia.

Aos benditos que publicam e são lidos,

e aos ficam empoeirados,

empoleirados nas prateleiras,

criando teia,

esperando que um dia alguém os leia.

Aos que travestem a poesia com barro,

tinta, efeitos virtuais,

acordes musicais

e cantam, pela vida sem serem ouvidos.

Um brinde aos que partem cedo,

com medo de verem suas almas

sendo dissecadas por críticos estúpidos.

Poesia é de quem precisa dela, já dizia Neruda.

Se você não precisa,

não leia,

não ouça,

não toque!

Ela é como um feto:

precisa de calor e útero

e não de um fórcipe obstetra.

E mais um brinde

A todos aqueles que atuam à luz do dia,

nesse imenso palco,

de paletó, gravata, saia justa, salto alto,

e esperam impacientes a aposentadoria

para enfim, declarar seu amor pela poesia.

A todos aqueles que,

entraram na fila errada,

e estão neste mundo por engano

só para diversão dos deuses.

Não escrevem, não cantam,

não esculpem nem declamam.

Mas sentem, amam e acolhem

anonimamente a poesia em seus ventres.

Um brinde a todos os recipientes!

 

Suicídio

Com agulhas de crochê

a velha senhora

mata horas.

CRISTINA BASTOS (1960) nascida em Uberlândia, Minas Gerais, a poeta vive em Brasília desde 1972. Formada em Educação Artística, exerce também as atividades de artista plástica e fotógrafa. Participou de algumas antologias e publicou dois livros: Decerto Deserto (1992) e Teia (2002). Segundo o poeta Salomão Sousa, assim que publicou seu primeiro livro ela passou a ser considerada uma das importantes vozes da nova poesia de Brasília.

Não importa

Não importa

se não comando

meu forte é ver navios

 

em sossego

sei sorver,

 

se sopra

brisas

se venta,

tempesteio.

 

Não importa

se sou mestre

em arrasar passados,

 

só no meu mapa

Mexo

é minha

a história que calo,

 

na loucura

sei sorver,

 

o mel, o veneno

do meu prato.

 

Limpidez

Quando

o profundo

 

não diz o máximo

com o mínimo

 

interdito

 

mesmo o emaranhado

pode ser sucinto

cristalino.

 

Qualquer Coisa

Vasa pela fresta
do vaso quebrado
o verbo,

não carece mais
que um insípido objeto
para ser

verso
transbordante


Aceito

Se estranha a teia
assimilo o asco
do desconhecido,

aranha enorme,

uma batalha disforme
entre verbo
e a garra do instinto

 


Publicado por Rubens Jardim em 27/07/2012 às 12h11
 
10/07/2012 10h47
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA(23)

LOURDES TEODORO (1946) nascida em Formosa, Goiás, reside em Brasília desde 1959. Escreve e publica desde a adolescência e já  foi Incluída em antologias poéticas no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos. É doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Paris, Sorbonne, e autora de quatro livros de poemas: Água Marinha ou Tempo Sem Palavra(1978) e Canções do Mais Belo Pecado(1996) são dois deles.

à sombra dos embondeiros do recife V

toma da máscara

a forma exata,

veste tua real aparência,

medita.

deixa cair

a suposta essência,

sê trigo e coquelicot:

aceita a passagem gratuita

                   da brisa

dorme, que sonharei contigo.

 

à sombra dos embondeiros do recife VI

         carta sem destinatário.

não sou trezentos,

         tampouco tenho em mim todos os sonhos do mundo;

custa-me ajeitar os ombros,

         com todo esse peso das mãos de uma criança,

querendo eternamente ser em mim.

dancei na praça:

os meninos de rua

soltaram o corpo comigo,

súbito, sem loló ou crack,

viraram folha, docemente ao vento!

 

paisagem litorânea

 

os arranha-céus subiram aos morros,

                                para ver o mar

e os negros

                mudaram-se

                                para a avenida  Copacabana.

as usinas e as fábricas

               lançaram-se dos penhascos,

a ponte se dissolveu na bruma

                                e jangadas povoaram

                                a baía, inocentemente.

 

O corpo, o nada.

                                 a joão cabral de melo neto.

o segredo do tempo

 - a pedra -

a coragem do tempo

- a pedra -

a riqueza do tempo

-a pedra -

a frieza do tempo

- a pedra -

a erupção do tempo

- a pedra -

a construção do tempo

- a pedra -

o silêncio do corpo 

- a pedra -

o peso sobre o nada

- a pedra.

 

 ARRIETE VILELA(1949) poeta, cronista e contista alagoana. Professora aposentada da Universidade Federal de Alagoas, onde trabalhou com a autoria feminina na Literatura Brasileira, foi eleita para a Academia Alagoana de Letras em 1996. Sua obra recebeu inúmeros prêmios, pela importância de sua obra, como o da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, em 2002.

NÃO DEVIAS

Não devias enamorar-te assim
das minhas palavras: são fios
que tecem a renda com que adorno
as entardecidas beiradas dos meus dias
e tecem, igualmente, a rede com que caço
borboletas que, à tua semelhança, voejam
solitárias ao redor do meu mistério.

Não, não te devias exibir assim
à beira do poço: és pássaro de pequenas asas,
e basta um descuidado sopro da minha poesia
para fazer-te ver o céu menor do que uma lágrima.

Não devias jogar-me à passagem
– e assim, à vista de todos –
belas metáforas: esmago-as com amorosos gestos,
para que gotejem em mim o sumo das folhas
da pitangueira com seu cheiro de infância
reencontrada na tua ausência.

Poupa-te, anjo de flores que só duram um dia.
Passa à margem do que sou,
protege esses teus olhos de mares transparentes
e não queiras entender o meu silêncio, a minha recusa
nem os sutis precipícios sobre os quais vivo
e escrevo.

Protege o teu coração
e não atices a colmeia que espreita,
para além da cerca viva de papoulas,
a dor nos descuidos da alegria amorosa.

 

POEMA 25

O Poema não devia esfolar a Palavra

que há dentro de mim,

pois se destrançam, assim, os fios de sisal

que prendem memória e realidade.

 

O Poema devia aliviar essa fascinante

e atormentada relação com o que sou,

com o que não sou,

numa dualidade quase fluida,

quase erótica.

 

O Poema não devia deserdar-me

do sonho comum,

das pessoas com seus olhos de isca

e de fastio.

 

O Poema devia esvaziar-me da Palavra

e de suas resistências,

para que eu seja apenas devaneio

à-toa.

 

POEMA 1

Quantos adeuses devo dizer-te?

Não sei.

Mas te deixo um presente:
os textos fundadores
(ou fraudadores?)
de mim e de ti.

Talvez queiras mudar-lhes
as entrelinhas...

 

POEMA 2

Sou cria
revelada
da palavra
que intercepto
em mim

e cumpro o destino
de ser cardo
e não avidamente
flor.

XENIA ANTUNES(1949) nascida no Rio de Janeiro, a poeta mora em Brasília desde os anos 60. Escreve poesias, contos, crônicas e artigos. Tem dois livros publicados: Parto Normal e Exercícios de Amor e de Ódio (1980). É também artista plástica e fotógrafa. Integrou a chamada geração do mimeógrafo e participou de inúmeras antologias.Segundo o poeta e crítico Antonio Miranda,o poema Maria dos Prazeres é um clássico da cultura de Brasília.

 

A respeito do enjôo matinal nada a fazer.

Decididamente, café e pasta de dentes

nunca tiveram nada a ver entre si.

Mas pior é o espelhinho

aquele que fica logo acima da pia do banheiro

esse agente da CIA incorporado à náusea cotidiana.

Não se vê nele nada além da fotografia

que ilustra a cédula de identidade.

E ele te cospe crimes, antecedentes criminais

e ainda te diz a idade do criminoso.

 

É preciso que vistas um vestido amarelo,

ordenes teus pelos e batas a porta,

rápida,

atrás.

 

MARIA A DOS PRAZERES

Cada vez que me possuem

cada vez fico mais pura

mais casta

mais virgem

 

Cada vez que fico nua

cada vez sou mais louvada

beijada

aleluia

 

Cada vez que eu me entrego

cada vez eu sou mais santa

mais salve

rainha

 

Cada vez que estou parindo

cada vez sou mais mater

mais ave

maria.

 

MÃOS 

São mãos nos meus cabelos, nos meus olhos, na minha boca são mãos treinadas em percorrer a carne viva

mãos que procuram a parte escondida

são mãos acostumadas, salientes,

que me desenham flores no corpo todo

que me ativam a glândula

são mãos que mentem o gesto

escondem de mim o resto

e, depois das mãos

os pés acima de tudo.

 

Ai, estão me machucando!

 

EXERCÍCIO DE ÓDIO

é porta de igreja

é só pra olhar

põe o dedo na chaga não

olhe e se contenta em olhar

deixa o sangue brotar

deixa o dinheiro na lona

deixa o miserável na zona

deixa e deixa o membro sofrer

deixa e deixa o bicho comer

é porta do inferno

é fogo na brasa

é ferida magoada

é jejum madrugada

é frio

é fome

é porta fechada

pra tua passagem

deixa andar

deixa azar

desgraçar

não vá confirmar

o dia

a pontaria

a afronta não conta

o perdão já não há

é só pra olhar

sem espanto

que teus olhos ainda vão ver tanto!

 

CYANA LEAHY-DIOS (1950) poeta soteropolitana é niteroiense por opção. Escreve ensaios, ficção e poesia. Autora de dezenas de artigos, capítulos de livros e textos apresentados em congressos nacionais e internacionais. Publicou Biombo(1989), livro de estréia na poesia. Seguiram-se Íntima Paisagem (1997), O Livro das Horas do Meio(1999), Seminovos em Bom Estado(2003) e (Re)Confesso Poesia(2009). Conquistou prêmios literários no Brasil e na Inglaterra.

Da gata

Era uma vez a gata.

Prenha gata.

Sozinha no fim-de-semana

deu à luz quatro gatinhos.

Sem trauma, sem parteira, sem curativo.

Agora cinco gatos vagueiam pelo palácio

Saudáveis. Negros. Independentes como nunca fui

 

aula de pintura

enquanto enrubesço

me ensina a pintar com o corpo

me ensina a perder os medos

e a poder sujar as pontas dos dedos

as unhas e as palmas das mãos

nas tintas de todas as cores

enquanto enrubesço em vinho tinto

sê meu mestre

amor

 

cena sertaneja

Serpentes negras foscas invadem

ameaçando o sertão

incompreensíveis na paisagem

avançam canaviais adentro

rebolando sinuosas no ventre

miserável. A fome

se instala às margens de

mãos e rostos enegrecidos

 

Sol, fuligem e muita dor

sugam canas impróprias

não mais caules em fruto

apenas seca matéria-prima

rostos e mãos carregam armas

afiadas (para o trabalho) e cegas

(na parelha com a justiça)

 

A serpente asfáltica

plana e lisa ressalta na paisagem

(estrada do coronel

asfalto do coronel)

fazendas canaviais usina.

Por enquanto a Miséria estende o braço

e implora por mais um dia

 

Casamento

Eu faço a festa:

faço, cozo, sonho a seresta

enquanto você dorme.

Preparo, congelo, apronto

enfeito ajeito me sujeito

você já se banha.

Me arrumo, me enfeito,

só não me perfumo,

e afino os instrumentos.

Recebo, sorrio, sirvo,

também bebo, também como,

e controlo sua performance.

Madrugada, todos idos,

Você, bêbado, dorme

e eu desfaço a festa...


Publicado por Rubens Jardim em 10/07/2012 às 10h47
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21/06/2012 13h01
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (22)

SONIA PEREIRA (1952) poeta paulista, é arquiteta formada pela USP e também compositora. Organiza e participa de saraus e oficinas literárias em São Paulo. Já participou de várias coletâneas e obteve algumas premiações. Publicou dois livros: Conta Gotas (1998) e Maldições e Outras Crueldades (2004). Atualmente produz seus próprios livros e integra o grupo lítero-musical Sampestre.

 

RESISTÊNCIA

A fresta do muro

é suficiente. Cabem:

a lua e o sol poente

 

FÁLICA

Falo de mim,

sempre falo.

Deslizo em meus

vãos

desejos de

línguas e mãos

ávidas

e falo,

sempre falo.

 

ALVORADAS

então bebo
o descompromisso
do amanhã
o dia engendra coisas
à minha revelia
e tudo é
bem maior que
a mesquinhez do destino
e se anuncia na bruma
surda
tola
linda
de hoje

***************************************

A preocupação com a grana

me engana

a pena falha

a poesia engasga

o peito se retrai.

Vazio,

o bolso gargalha.

 

MÁRCIA MAIA (1951) poeta pernambucana, é médica e participou de várias antologias, no Brasil e Portugal. Edita os blogues Tábua das Marés e Mudança de Ventos. Teve poemas publicados na revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, 2001. Já publicou 6 livros: Espelhos (2003), Um Tolo Desejo de Azul(2003), Olhares/Miradas (2004) e Em Queda Livre (2005), Cotidiana e Virtual Geometria(2008) e Sem Amém (2011).

 

A chuva enxágua as calçadas
da sexta-feira
deserta.

Encharcada, a miséria se abriga
sob os pórticos das igrejas
antigas
pintadas de novo

— preciosamente preservadas —

sombria imagem de esquecidos.

Não há páscoa, nesta cidade
de vivos-mortos.

Sem ressurreição e sem saída
aqui é sempre
— e todo dia —
sexta-feira da paixão.

INTIMIDADE

se tocar um blues
e eu estiver de azul
como a tarde
me beija o pescoço
me explora o decote
( aos amigos se permitem
certas intimidades ).

mas,se tocar um tango
dança comigo
me beija na boca
quem sabe me ama
( que não é de ferro
a amizade ).

depois
tomar café com leite
e pão torrado

e seguir sendo amigos
por infinitas outras tardes.

 

ÍNTIMO

sentes?

esse arrepio que disfarço
essa chuva que dentre as pernas
se me brota
umedecendo-me secretamente
o descompassado bater do meu
coração urdindo
jam sessions de desejo
dentro em mim
enquanto olhar sereno riso
nos lábios
todas as tuas histórias escuto
sem que te apresse
sem que me apresse

sentes?

 

MUDANÇA DE HÁBITO

desistiu.

cortou os cabelos, encurtou
as saias, trocou a cor do
batom e o número do telefone
celular.

esqueceu promessas e juras
- mentiras antigas -
bem como a cor dos seus olhos e
o tom grave da sua voz

: a dele.

tratou de, em paz, viver a vida
:a sua.

as cartas, entretanto, guardou
para o caso de arrependimento
futuro ou se viesse a pesar a solidão.


MARY CASTILHO (19     ) poeta paulista, foi criada em Catanduva e reside em São Paulo desde 1981. É professora pós-graduada de literatura e língua portuguesa. Publicou o livro Cântico dos Destorcidos,(2005) com apresentação dos poetas Álvaro Alves de Faria e Mariana Ianelli. Tem participado com regularidade de leituras e saraus. Tem livro pronto a ser publicado: As Mãos e o Sal.

 

RAÍZES

No pescoço de meu avô,
eu lia o tempo
nas fendas e rugas
quadricularmente marcadas.

Nas suas mãos,
com cheiro de curral,
sem ajuda cigana
liam-se palavras da terra.

Nos olhos verdes de meu avô,
nunca entendi a luz opaca
timidamente mostrando
nossas origens reais.

Os pés de meu avô,
de tanto fincarem-se ao solo,
plantaram-se.
Arvoreceram-se.

E ainda hoje ali está
- carícia alento-
das copas verdes da árvore
a sombra de meu avô.

 

Cântico dos pães

                                                                                    "Recebe o batismo e lava

                                                                                      os teus pecados “(At 22, 16).

 

Quando amasso o pão

volto-me às mulheres, minhas ancestrais.

 

Enquanto misturo os ovos e a farinha,

faço poemas e canto baixinho

para não acordar a massa

que descansa enquanto cresce,

assim como crescem minhas palavras.

 

Na janela, violetas roxas silenciam-se

ao me verem antiga e alimentadora.

Eu nunca me mostro assim,

sem letras, entre silêncios,

sacramentada pelo pão fermentado.

 

Minhas ancestrais sorriem,

pois sabem que permaneço pura

e envolta pelas paisagens simples

do adro, do sino, do gado, da água e do pão

ao lambuzar-me como estou.

 

Faço delas minha proteção.

Depois me batizam na lida da casa,

molham meus cabelos com a água do tempo,

ungem minha testa com o sal da poesia,

e eu passo a entoar o cântico dos pães

 

DAS LEMBRANÇAS

Uma a uma contemplo
as fotografias na caixa
habitada por fungos
e antepassados.

Cobrem-se por tênue véu
do presente sob os arcos
formados pela sombra do abajur.
Tento colocar-me nos intervalos
fixados e presos pelo tempo do retrato.

Ninguém me cede lugar.
Sabem que não faço parte
da seriedade dos corpos rijos
sob sedas e camafeus,
e nem tenho o olhar turvo
dos mortos que ajudei a enterrar,
ato que refaço agora com a tampa
da caixa de retratos.

 

Eternizando
      
Sou mulher,
e, como um rio, carrego
a eternidade em mim.
      
Com a força infinita da vida,
atravesso o espaço limitado
e me transbordo sem deixar
que impurezas das margens
maculem meu leito de água.
          
Como se expandisse por corredeiras
saltos, pedras e vales,
me deságuo,
ao buscar a palavra
que se materializa
e se faz vida.
          
Encontro-me como um rio e carrego
a eternidade das palavras em mim.

 

 

NOÉLIA RIBEIRO (19   ) nascida em Recife foi morar, ainda pequena, com a família no Rio de Janeiro. Com 12 anos mudou para Brasília, onde vive até hoje. Fez letras na UNB, especialização em língua portuguesa e inglesa. Participou do livro Salada Mista com os poetas Sóter e Paulo Tovar. Em 1982 publicou seu primeiro livro, Expectativa eem 2009, Atarantada.

 

GRÁVIDA

Dentro de mim

o ser busca espaço
empurrando órgãos
até chegar ao coração
e tornar-se filho.

Fora de mim
observo meu companheiro
intrépido
à espera de multiplicação.

Acima de mim
meu irmão de sangue
encontra Deus
para reger a comunhão.

Mas eu permaneço assim:
em estado de graça
e completamente estarrecida.

Alguém me empresta um projeto de vida?

 

DEVER DE CASA

A porta de minha casa
separa vontades e deveres.
Estes cumpro fielmente
enquanto o pensamento voa
demente.

À porta de casa,
ainda hesito.
Guardo as asas
e inicio o rito.

 

CÓDIGO DE BARRAS

A primeira foi o beijo.
Depois vieram a indiferença e as diferenças,
colocadas lado a lado.

Houve também melancolia
e desprezo velado.

Da mistura dessas barras impenetráveis
resultou o código do nosso amor chinfrim:
sem começo e sem fim.

 

VERSATILIDADE MATERNA

O filho grita,
a filha chora,
o gato mia,
o pai canta.

A mãe pede um minuto de silêncio
para fazer tudo isso ao mesmo tempo.

 


Publicado por Rubens Jardim em 21/06/2012 às 13h01
 
27/05/2012 00h48
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (21)

AMNERES, poeta paraibana, mora em Brasília desde 1979.É formada em letras e em jornalismo pela UNB. Promove e participa de leituras públicas. Publicou Humaníssima Trindade (1993),Rubi (1997), Razão do Poema (2000) e Entre Elas (2004). Estreou com a antologia Emquatro (1985) em parceria com mais três poetas brasilienses.

Soneto

Antes que o tempo transborde

antes que a nascente estanque

antes que o desejo murche

e o outono se achegue. Antes

 

Que os olhos se embaracem

sob o impacto da velhice

(como se a alma dançasse

e o corpo só assistisse)

 

Antes que a luz esmoreça

antes que o dia anoiteça

toma-me, amor, uma vez mais

 

Antes, amor, que eu te esqueça

antes que a chama adormeça

como a espuma se desfaz.

 

Gaivota

Como uma corça,

A poesia me alcança

E sopra em mim brisa morna,

Sereno, centelha, esperança.

 

Como uma puta,

A poesia se apossa de mim,

Carne viva, e me excita

E de esperma me ensopa.

 

Como uma rosa,

Uma mina, uma luz,

Pedra preciosa,

A poesia seduz.

 

Como uma Lãmina,

A poesia em mim corta,

Faca afiada me esgarça

E me encharca e me aborta.

 

Como enseada

De aldeia remota,

a poesia gaivota em mim voa

e liberta e arrebata.

 

Como uma enchente

Na veia dos dias,

A poesia transborda,

Torrente, vazão, travessia.

 

Auto-retrato

 

Eu sempre andei assim

quase absorta

quase abstrata

quase perdida

 

Eu sempre entristeci

quase obscura

quase culpada

quase escondida

 

Eu sempre amei assim

quase obscena

quase extremada

quase exaurida

 

Eu sempre percebi

ser esquisita

quase obtusa

quase maldita

 

Eu sempre fui assim

quase uma atriz

sonhando ser o amor

e ser a amada

 

Eu sempre fui assim

quase exaltada

quase encantada

quase feliz.

 

VERA AMERICANO,  poeta mineira, residiu entre Goiás, Rio de Janeiro e, mais tarde, em Brasília. Estudou Letras na UNB, e fez mestrado em Literatura Brasileira na PUC/RJ. Atualmente, trabalha na Consultoria Legislativa do Senado Federal, na área de cultura e patrimônio histórico. Publicou os livros A hora maior (1970) livro premiado pela UBE e Arremesso Livre (2004)

Duplo mortal

Postar-se

no desvão

entre dois argumentos,

por dois segundos.

 

Respirar

economicamente

entre duas palavras,

duas ondas

muito crespas.

 

Decidir

em sânscrita ilusão:

viver

ou deixar para mais tarde.

 

Pequeno Roteiro Tenso

 

A palavra exata

Desferida

Do último pavimento

Abre uma cratera

Extravagante

na certeza absoluta.

 

Cratera

 

Daqui

pode-se ver:

a eternidade

termina

logo ali.

 

Filme noir

 

Um silêncio oco, de catedral,

passos ressoam,

uma porta bate.

 

Se você não percebeu,

fui eu,

definitivamente.

 

CLAUDIA ROQUETTE PINTO (1963)  poeta carioca, formou-se em tradução literária ,dirigiu o jornal cultural Verve e começou a publicar nos anos 90. Já tem cinco livros de poesia publicados: Os Dias Gagos (1991),  Saxífraga (1993);  Zona de Sombra (1997); Corola (2001 – Prêmio Jabuti de Poesia/2002) e Margem de Manobra (2005).

POEMA SUBMERSO

olho: peixe-olho que
desvia a mão enguia
a pele lisa a
té o umbigo e logo
a flora de onde aflora
(na virilha) o
barbirruivo a
ceso bruto an
fíbio: glabro

dedos tão tentáculos
e crispam esmer
ilham dorso abaixo a
cima abaixo brilha
o esforço — bravo
peixe tentando escapar       mas

ei-lo ao pé da frincha que
borbulha (esbugalha?)
roxo incha e mergulha em
brasa estala
e agora murcha
peixe-agulha e
vaza
vaza

 

a Novalis

 

Ainda úmidas sobre a folha,

orvalho escuro que pousa

na pele,

imperiosa e nua.

Mal desgarradas da pena,

cada pequena curva

tatua as ideias na superfície ácida.

Isto imagino,

se te vejo debruçado

sobre a mesa o penhasco

olhos anoitecidos

despencando no hiato das ventanias.

Isto, enquanto imprimo

os teus Hinos à Noite

nestas folhas ordinárias,

palavra por palavra coagulando

na brancura ininterrupta, saídas

da boca da máquina

como uma carta pela fenda da porta

duzentos anos mais tarde e

úmidas, ainda.

O torneado...

O torneado hábil das palavras

o dissonante vão das consoantes

não podem mais – nem por um instante –

buleversar o meu pequeno alento.

E já nem tento, ainda que fugaz

fosse o prazer no momento do encontro

satisfazer com tais materiais

minha volúpia pelo contratempo.

Abandonar o ritmo, eis tudo:

mudar de logradouro – ou de logro –

que isso de escrever é jogo

perdido de antemão, no mano a mano.

Mas sem ressentimento: o mais são nuvens,

e todos os poemas um engano.

O naufrago

No escuro sobre o vazio
sem o feroz feitiço
do exato, exausto
me estico no penhasco,
roto, desacreditado
de um possível ganho no encalço
de tudo o que é fugidio.
Eu me desaproprio
daquilo que tinha por meu,
me escuto uma primeira vez,
estrídulo, estranho.
Se desabotôo por dentro,
o frio, ao menos,
me dá a impressão que eu existo.
Nu e em desabalo
(íntimo, que não me movo)
desfio o percurso de novo,
procuro nos intervalos
onde dorme a explicação
o hiato de titubeio,
o desvio inevitável.
Até isso que formulo
se esboroa e se anula
agora que o enuncio.
Nada me avia.
Queimo até o fim o pavio.

A escada de jacó

Ela estava rindo
- e gargalhava, até -
antes do choro convulsivo
ante o relance
de céu adquirido - pelo corpo?
Sim, o corpo era o caminho
mas outra coisa nela se movera
e agora erguia seu rodamoinho
pelos canais,
enquanto o corpo, outro,
tiritava, transitava sem piloto
do nulo à súbita doçura,
ao tigre, ao terremoto,
à menina que ela tinha sido
- perto demais da zona de perigo,
perto do exílio -
e, um segundo atrás, a escada,
os anjos subindo.

ZÉLIA BORA poeta paraibana, escritora, crítica literária e professora. A autora tem doutorado em Estudos Portugueses e Brasileiros, pela Brown University, USA e atualmente é professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Paraíba. Publicou A Grande Mãe e outros poemas( 2006) e De Eloísa para Abelardo, poemas jamais escritos (2008)

Eis o meu pedaço de mundo

A PALAVRA

vida que me sustenta

meu cotidiano

horizonte de minha vida

e de minha morte

vago nesse mundo das coisas

como o Absoluto

não resisto à experiência dos objetos

que me cercam:

sol

mar

pássaros

estrelas

eis a linguagem infinita das coisas.

 

***

Me possuo,

desabrochada em pura felicidade do momento

pacto secreto da finitude.

Me possuo,

como a erupção do meu absoluto.

Meu Outro,

alma  exilada que agora volta para casa

saciada de tantas viagens

TU,  meu verdadeiro outro

       

***

 Mergulho em ti.

 Sou esse ente desenraizado

 que se dá ao extremo... 

 e convida-te

 a assumir o teu próprio ser

 para além dos nossos corpos.

 Não te percas nas possibilidades

 fatuais, pois

 A MORTE É CERTA.

 Acompanha-me vida minha

 encontra esse outro modo da certeza

 que emerge dessa estranha alegria.

 

A Garcia Lorca

 

Inventei uma dedicatória santa,

como se tu tivesses oferecido a mim o teu último poema.

Assim, pensei arrancar de ti o fluxo poético desta

descontinuidade chamada vida,

interrompido pela morte assassina.

Porém, sabias que bendita e antiga é a morte

e então, aprendeste a aplacar esta agonia difícil

de conter

chamada vida,

comunicada pela ilusão das palavras.

Por isso penso:

é tempo de arrancar de mim essa agonia,

esse amor incurável de inventar,

não mais resistir ao apelo impessoal e

descomedido das palavras

que atordoam o espírito como uma dor pungente

de adeus.

Ainda assim, entrego-me à solidão das palavras.

 


Publicado por Rubens Jardim em 27/05/2012 às 00h48
 
14/05/2012 20h31
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (20)

LAURA ESTEVES (        ) poeta carioca, faz parte do grupo Poesia Simplemente. Seu primeiro livro de poemas, Transgressão, foi publicado em 1997. O segundo, Como água que brota na fonte, em 2000 . O terceiro, Rastros - poemas escolhidos, em 2006,  Finalmente, em 2008, Cinquenta poemas escolhidos. Curadora do Forum Poesia ( UFRJ, em 2005, 2006 e 2007), foi uma das premiadas do “Concurso Contos do Rio”/2004, do jornal “O Globo”.

COMUNHÃO

Minha caneca de ágata
era de um azul-que-não-mais-existe.
Agora, só na minha memória,
nesta vontade de voltar ao Engenho-Novo,
puxar a saia da mãe
e receber a caneca de suas mãos:
o pão molhado no café-com-leite.
Minha hóstia. Aqui, mãe: eu necessito.

 

Lobisowoman

Desvairada, arranho tua aura com unhas de siamesa.
Corça, atravesso tua rua e teu corpo de um salto.
lambo tua nuca com língua de tigresa.
Estraçalho tua roupa com meu canino dente.
Égua, te enlouqueço em meu galope.
Saciada a fêmea, me protejo em teu colo:
mulher/menina/adolescente.
Ah! Mas, não tem jeito...
é da minha essência,
da minha natureza.
Me transformo, novamente:
gata/corça/cadela/égua/tigresa.
E, te devoro num instante,
com unhas, dentes/tridentes,
nessa mesa de banquete.

 

Rastros


Perguntas tanto...

 Queres me conhecer inteira.

Impossível! Impossível!

Existem apenas vestígios.

Em meus andares, vou deixando rastros.

Pegadas que sinalizam quem sou.

É só ficares atento

ao vestido sobre a cadeira,

às dobras do meu casaco,

às sobras do meu sorriso,

ao meu olhar triste e opaco.

É só prestares atenção

ao meu resto de bebida,

intacto, no fundo do copo;

ao que desenho no papel

quando estou bem distraída;

ao jeito como fecho a porta

e como toco a campainha.

Repara aquela natureza morta

junto ao degrau da escada,

meu belo bule de barro,

a colcha de barra bordada

e a flor que murcha no jarro.

Poemas também deixam vestígios.

Metáforas, alegorias.

Por eles, se chega a atalhos,

retalhos de toda uma vida.

Se queres um pouco de mim,

procura em minha poesia.

SUSANNA BUSATO (1961), poeta paulistana, doutora em Letras (UNESP/São José do Rio Preto) e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Professora de Poesia Brasileira na UNESP de SJRP. Prêmio Mapa Cultural Paulista, categoria Poesia, em junho de 2010. Tem poemas publicados na Revista Cult, Revista Brasileiros e nas revistas eletrônicas Zunái e Aliás e ensaios na Cronópios e Gérmina e outras revistas acadêmicas.

CURTO-CIRCUITO

curto

circuito

raio

trombeta

na tua corrente

elétrica

me viro

capoto

estopim

de baioneta

 

LUA NOVA

a lua 

está cheia

de ti

a lua

que

a mim

nova

mente

nua

de 

ti

 

UM CASO DE AMOR

                                         Para esta São Paulo de 458 anos,a cidade das minhas eternas paixões.

 

Asfalto fuga e fumaça

Suas trilhas nefastas

Perseguem as minhas

Na prega da saia

No beijo do vento

Na flor descoberta

Vermelha no centro.

 

Cidade de azuis clandestinos

Couraça de pó e cimento

Me abraça como um noivo

E me lança viadutos adentro.

 

Me entontece nas curvas

Me sussurra nos trilhos

Encruzilhadas de amor eterno.

 

É assim que te quero

Na volúpia pneumática das esquinas

Inteira como as avenidas

Da minha Paulista humana loucura.

 

VALÉRIA TARELHO (1962) poeta santista, formou-se em direito, mas optou pelos caminhos da poesia. Tem participado de leituras públicas (Casa das Rosas e Itaú Cultural), integra o quadro de colaboradoras fixas da revista escritoras suicidas e publica trabalhos nos sites Blocos, Germina e Usina de Letras. Publicou o livro Sol a Cio(2010) e participou do Livro da Tribo.

 

mil mulheres
se acotovelam
dentro de mim.
mil e uma
me revelam.
nenhuma
sabe de si.

 

tântricos

até não se sabe

quando

o nosso caso

de instantes

o manso toque

até distantes

o fácil truque

de aprendizes

a nossa troca

às no trânsito

 

                      [ e todos os trâmites

                        que passamos

                        somando pânico

                        somatizando [d]anos

                        posterizando a matiz

                        do inconstante ]

 

até quando

não se sabe

estamos

em transe

............................................................................

meu sonho alado
voa alto
desgovernado
quando caio na real
é pena
p r a   t o d o   l a d o

 

VIVIANE MOSÉ (1964 ) poeta capixaba, psicanalista e filósofa, ganhou extrema notoriedade ao trazer temas da filosofia para a linguagem cotidiana em programas de televisão. É nietzschiana –sua tese de doutorado é sobre o grande solitário --e estreou em livro com Escritos(1990). Outros títulos: Receita Para Lavar Palavra Suja(2004), Pensamento Chão (2007) Toda Palavra(2008).

 

Toda Palavra

Procuro uma palavra que me salve

Pode ser uma palavra verbo

Uma palavra vespa, uma palavra casta.

Pode ser uma palavra dura. Sem carinho.

Ou palavra muda,

molhada de suor no esforço da terra não lavrada.

Não ligo se ela vem suja, mal lavada.

Procuro uma coisa qualquer que saia soada do nada.

Eu imploro pelos verbos que tanto humilhei

e reconsidero minha posição em relação aos adjetivos.

Penso em quanta fadiga me dava

o excesso de frases desalinhadas em meu ouvido.

Hoje imploro uma fala escrita,

não pode ser cantada.

Preciso de uma palavra letra

grifada grafia no papel.

Uma palavra como um porto

um mar um prado

um campo minado um contorno

carrossel cavalo pente quebrado véu

 mariscos muralhas manivelas navalhas.

Eu preciso do escarcéu soletrado

Preciso daquilo que havia negado

E mesmo tendo medo de algumas palavras

preciso da palavra medo como preciso da palavra morte

que é uma palavra triste.

Toda palavra deve ser anunciada e ouvida.  

Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas.

Toda palavra é bem dita e bem vinda.

 

PRA LAVAR PALAVRA SUJA

Mergulhar a palavra suja em água sanitária,

Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.

Algumas palavras quando alvejadas ao sol

adquirem consistência de certeza,

por exemplo a palavra vida.

Existem outras e a palavra amor é uma delas

que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,

o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,

depois enxaguar em água corrente.

São poucas as que ainda permanecem sujas

depois de submetidas a esses cuidados

mas existem aquelas.

Dizem que limão e sal tiram as manchas mais difíceis e nada.

Todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em vão.

Mas nunca vi palavra tão suja

como a palavra perda.

Perda e morte na medida em que são alvejadas,

soltam um líquido corrosivo

que atende pelo nome de amargura—

capaz de esvaziar o vigor da língua.

Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho

em um amaciante de boa qualidade.

Agora se o que você quer

é somente aliviar as palavras do uso diário,

pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.

O perigo aqui é misturar palavras que mancham

no contato umas com as outras.

A culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra

e deve ser sempre clareada sozinha.

Uma mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,

que desejo sendo uma palavra intensa, quase agressiva,

pode, o que não é inevitável,

esgarçar a força delicada da palavra amizade.

Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.

Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras

sob o risco de perderem o sentido.

A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva

produz uma oleosidade que conserva a cor

e a intensidade dos sons.

Muito valioso na arte de lavar palavras

é saber reconhecer uma palavra limpa.

Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.

Deixe que se misture em seus gestos

que passeie pelas expressões dos seus sentidos.

Á noite, permita que se deite,

não a seu lado, mas sobre seu corpo.

Enquanto você dorme

a palavra plantada em sua carne

prolifera em toda sua possibilidade.

Se puder suportar a convivência

até não mais perceber a presença dela,

então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra limpa é uma palavra possível.

 

Tudo o que vejo

Era tarde nas janelas da sala,

Um gosto de tarde que eu queria lamber.

Tenho vontade de lamber as coisas que gosto,

Mesmo as que não gosto costumo lamber sem querer.

Às vezes com a língua mesmo.

Molhada e escorrida.

Outras vezes uso a língua da palavra,

Quando tem cheiros ruins

Ou asperezas estranhas ao paladar de minha pessoa,

Ou por nada mesmo por gosto

Passo a língua nas coisas que vejo

E passo as coisas que vejo pra língua.


Publicado por Rubens Jardim em 14/05/2012 às 20h31



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