10/03/2016 15h09
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (73ª POSTAGEM)
NÍVIA MARIA VASCONCELLOS (1980) poeta baiana, é professora e mestre em literatura e diversidade cultural. Ganhou, em 2007, o 7º Festival Vozes da Terra de Feira de Santana-BA, com a música “Soneto que não queria existir”. Publicou os livros de poesia Invisibilidade (2002), Escondedouro do Amor e Outros Versos sob a Espera (2008) e A Morte da Amada(2013). Integra o grupo de declamação Os Bocas Do Inferno. O amor não está na estrela que, ao cair, carrega o pedido sussurrado, está no olhar que a percebe e espera.
O amor não está nas cartas lançadas sobre mesas postas, está na tensão de quem as ouve e deseja.
Búzios, números e datas não contém o amor, ele não está numa procura.
Rezas, promessas e velas não trazem o amor, só a esperança de encontrá-lo.
Mas, ninguém encontra o amor, ele é(misteriosamente) despertado... num momento de distração e abandono.
CAÇOADA (releitura do poema Consoada, de Manuel Bandeira) A indesejável das gentes chegou (Duríssima... nem um pouco caroável). Eu tive muito medo, Não sorri e nada disse a iniludível. O dia não foi bom, a noite não aconteceu. (Só vieram dela seus sortilégios) E nada estava pronto: campo, casa. A mesa não estava posta, Mas ela veio mesmo assim. Assim, com tudo fora do lugar...
KOPH Amanhã, talvez seja abril, E o pior dos meses se faça, Mas,agora, ao findar-se a noite, Ressuscitam os girassóis e, O poeta, de peito aberto, Entre as molduras da carta, É a criança que avança Em minha direção.
Mesmo que amanhã haja corpos a enterrar E digam em alta voz: HURRY UP PLEASE IT’S TIME, Hoje há felicidade e o sol encharca o dia de êxito ........................................................................................... Quando a amada morre, Não é seu corpo que fenece, Mas o desejo que existia por ele E tudo o que era romance e espetáculo.
Não é a mulher que padece Quando a amada morre, É o amador que deixa de existir E tudo é enterro, tudo é luto.
Não há coisa mais triste Do que uma amada que morre E que, quando morre, mata.
Quando a amada morre, Parece a poesia E viver é expiação e tormento.
Mas tudo revive quando, Como um susto, outra amada surge E com ela (de novo) o encanto.
MAH LUPORINI, (19 ) poeta paulista, é jornalista. Natural de São José dos Campos, reside em São Paulo. Colaboradora da revista eletrônica Mallarmargens, editou seu primeiro livro de poemas Ausências, (2010) de forma independente. Tem trabalhos publicados em sites de literatura. Seu segundo livro, Traço de Sombras, foi publicado em 2014. CANTOS PAULISTANOS I Na Bela Cintra Com a Alameda Santos corpos traduzem sombras desenhados pelo giz da noite como uma pintura de Modigliani Amor blindado nos teus lábios Quero-te no desequilibrio do meu riso II Consolação de tornozelos soltos no girassol da noite Sobre nós, as palavras deslizam junto ao casaco de oito pernas meu espírito se despede Tenho que voltar ao mosaico do meu corpo III Ensaio de outros eu Na poltrona do meu ego pêndulos dos corpos na cômoda do tempo transpondo a imagem de quem sou PARA JACK KEROUAC Encolho as noites de setembro No mural da tua pele Os outros em mim quebram O silêncio no sapato da noite
SIMONE TEODORO(1981) poeta mineira, estudou letras na Universidade Federal de Minas Gerais, foi professora de literatura e fez mestrado na mesma instituição. É leitora compulsiva de poesia. Distraídas Astronautas (2014) é seu livro de estreia. Atualmente coordena as atividades de incentivo à leitura da Biblioteca Pública de Belo Horizonte. Mas confessa: “poderia ter sido engenheira, lutadora de MMA, freira ou saxofonista. Uma vida só não basta: sou poeta. “ NÃO ERA Não era vento: Era ser forte Era ser fraco E, às vezes, sem rumo.
Não era chama: Era um gosto na língua Era umidade entre as pernas Era angústia de amar.
Não era outono: Era a superfície da pele Alcatifada por rugas.
Não era um trilho de trem Uma estação ferroviária Um aeroporto Nem mesmo o mar Com um barco distante: Era a vida que restava Acorrentada à ausência.
Não era chuva: Era tristeza pura. E só.
DISTRAÍDAS ASTRONAUTAS O céu sempre me pareceu tão masculino todo azul e com um deus morando dentro (segundo as narrativas da mãe quando eu ainda era o inchaço em seu ventre e captava sussurros pelas viscosidades da placenta). Um deus de barba branca no trono, ela dizia. Trovejante voz paterna ordenando o alternar dos dias e das estações e dos tons de azul do céu que sempre me pareceu tão masculino Porque lá tinha um trono. Porque lá tinha uma ordem. Porque lá tinha um grito. Mas então vem a lua e um império inteiro desaba. Odores de fêmea umedecem os ares. A lua, inchada como a barriga da mãe quando me contava mentiras A lua, pálida ou vermelha ou quando uma sombra ameaça sua estranha claridade. E de perto (bem de perto) -Por dentro- Uma profusão de chagas escancaradas Crateras sobre as quais distraídas astronautas de tempos em tempos vêm pisar alargando feridas fincando bandeiras enlouquecendo Para, em seguida, desaparecerem para sempre.
JARDINAGEM II O jardim era belo Visto por qualquer passante. Visto de qualquer ângulo, era incrivelmente belo. Tulipas Gérberas Miosótis E cravos. De qualquer ângulo, Não havia dúvida. Mas não para quem ousasse se deitar Entre os canteiros. Não para quem atraído pelo pulsar das cores enxergasse o jardim pelo avesso ao se aproximar demasiado deixando o olhar escorrer por um caule até encontrar sob a umidade da terra fixadas monstruosas raízes.
SOBRE ARDER Eu sei Ousei flertar com claridades Mas sou filha do breu E agora me recolho Barroca e contorcida
(Minhas frágeis asas de cera...)
E ela era um verão Inteiro em minha cama Ardendo Publicado por Rubens Jardim em 10/03/2016 às 15h09
22/02/2016 01h02
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (72ª POSTAGEM)
ELIZABETH VEIGA(1941) poeta carioca, estreou em livro em 1972, com o volume Gosto de fábula. Vinte anos depois veio A paixão em claro e dez anos mais para a publicação de Sonata para Pandemônio(2002).Em 2007, A estalagem do som. PERDA Da primeira vez que me quebraram toda dobrei os joelhos, caí sem joelhos, me dobrei toda sobre o vazio dos braços. Os ossos tiritavam, a cabeça estalava um sino: toda um estaleiro sem navios, só pavios de viagem, toda uma estalagem bêbada de sombras e sinas, não sabia mais quantas primaveras fazem um cisne, não sabia beber a não ser com as mãos em cuia, eu era um pires com a cara redonda que os gatos lamberam e fugiram, um piano com febre em desarticulação nervosa, uma pátina derretida, uma patavina atarantada com os caracóis da poeira sumida no horizonte.
SONATA ACHINCALHADA 1 (coisas de superegos) Canonizaram o esqueleto da burra. Entronizaram-lhe os quartos traseiros num andor. Suas mandíbulas atarracadas silvam bênçãos. Condenaram-na ao inferno.
2 (esquisitices de ego) Na algibeira da muleta carrego a panela de pressão social fervendo, e uma xícara de chacota sem açúcar. E resfolego, mula, sem pretender o Olimpo das belas letras, vou trôpega, vou pelo avesso empacada. Quem quiser que funcione: eu sou um parafuso a menos da máquina do mundo.
CONTEMPLAÇÃO DA OVELHA Tão de banda, comovia, tão folclore de branco nos pêlos era grisalha nervosa, nas patadas de cabrito, tosquia das nuvens do sonho, tão sweater parecia vermelha tão sweeter de ternuras obsoletas, negra de pêsames e algias, ovelha nas orelhas abaixadas, nos quadris redondos e na postura de galinha choca envergonhada, derramada de lã, enovelada debaixo dos cabelos, era a ovelha de noiva cerzindo meias e remendos, tremida nas lágrimas de um copo d´água.
O AMOR O amor subverte todos os espaços, ocupa o relógio inteiro: explode as horas que não são suas. O amor dissolve o diário, calendário, lenda, brinca do que não existe. O amor rasga o fogo com os dentes: a surpresa ilumina.
HILDA MACHADO(1952-2007) poeta carioca, foi professora, estudiosa de cinema e cineasta premiada. Não publicou nenhum livro e foi descoberta pelo pessoal da revista Inimigo Rumor que publicou, em 2004, dois poemas de sua autoria. Mais adiante, em 2009, vieram à luz mais 9 poemas inéditos publicados pela Modo de Usar&Co. MISCASTING “So you think salvation lies in pretending?” Paul Bowles estou entregando o cargo onde é que assino retorno outros pertences um pavilhão em ruínas o glorioso crepúsculo na praia e a personagem de mulher mais Julieta que Justine adeus ardor adeus afrontas estou entregando o cargo onde é que assino
há 77 dias deixei na portaria o remo de cativo nas galés de Argélia uma garrafa de vodka vazia cinco meses de luxúria despido o luto na esquina um ovo feliz ano novo bem vindo outro como é que abre esse champanhe como se ri
mas o cavaleiro de espadas voltou a galope armou a sua armadilha cisco no olho da caolha a sua vitória de Pirro cidades fortificadas mil torres escaladas por memórias inimigas eu, a amada eu, a sábia eu, a traída
agora finalmente estou renunciando ao pacto rasgo o contrato devolvo a fita me vendeu gato por lebre paródia por filme francês a atriz coadjuvante é uma canastra a cena da queda é o mesmo castelo de cartas o herói chega dizendo ter perdido a chave a barba de mais de três dias
vim devolver o homem assino onde o peito desse cavaleiro não é de aço sua armadura é um galão de tinta inútil similar paraguaio fraco abusado soufflé falhado e palavra fútil
seu peito de cavalheiro é porta sem campainha telefone que não responde só tropeça em velhos recados positivo câmbio não adianta insistir onde não há ninguém em casa
os joelhos ainda esfolados lambendo os dedos procuro por compressas frias oh céu brilhante do exílio que terra que tribo produziu o teatrinho Troll colado à minha boca onde é que fica essa tomada onde desliga
CABO FRIO Nuvens passageiras miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste queda de folhagem muda retórica
O Sudoeste dá rédeas à repulsa nuvens erráticas devoram rivais Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor
Em dia sem vento a falta de engenho permite purezas de sabão e macieiras em flor talco no chão do banheiro sorvete marca Aristófanes
Mas quase sempre ele pisa seus véus
Duas mãos de cinza desmaiado sobre fundo esmaltado é perícia renda luxo magnífico e corrupto realização elegante de algum mandarim leque de plumas de avestruz tintas de rosa levemente agitado diante da luz
O CINEASTA DO LEBLON “Aquele que escavar em sua consciência até a camada do ritmo e flutuar nela não perderá o juízo.” Nina Gagen-Torn
O brilho de laranja ao sol amendoeira rubra e pavão oculta sobressaltos faustianos encenam-se dramas na alma suadas peripécias lágrimas mímesis em sítios escusos está a mocinha raptada por um turco e a nudez do missionário espancado folheia-se uma antologia de acidentes títulos afundam e no lodo personagens sem nome e escândalos de fancaria
O comércio incessante distrai das caudalosas sociologias do fracasso idades do ouro perdidas terror espetacular recorta o esforço de colosso trágico alçar-se acima da imensa massa de vencidos violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa carnaval exterior que é dublagem
Nos domingos de lua cheia um infante sôfrego obriga a minuciosos tratados miuçalhas monopólio asperezas contrabando e então razias de corsário
na lua nova cruzo a cidade pra beijar a sua boca transpor morros e encontrar a elevação tropeça-se em pétalas de rosas em trufas visitas ao paraíso as quartas-feiras são turvas e trazem as penas do inferno telefonemas seus telefonemas meus telefonemas da outra e a ex compomos o obrigatório conflito repetir com honestidade a velha trama até que ao fim do primeiro bimestre erra-se no açúcar escorrega-se na farsa e mudam-se todos para a novela das 7
Homem da lua fantasia de rudes hormônios o bicho se coça fervor marcial e bico de passarinho cavalo rampante que rasga com as patas convenções de estilo atravessa pontes queimadas alcançou o vale feroz terremoto maior que o de Lisboa arrasa cidadelas afrouxa parafusos e do colchão abala a mola-mestra
ouviu, carro? tribos bárbaras desabam sobre a minha Europa
ouviu, montanha? mudaram os livros que eu agora levo pra cama antigas lendas fabulosas uma grosseira rapsódia cinco escritos libertinos eu bebo como num banquete em Siracusa e gozo como as prostitutas de Corinto palmeira, ouviu?
O NARIZ CONTRA A VIDRAÇA como a paisagem era terrível mandou se fechassem as janelas o nariz contra a vidraça e o fla-flu comendo lá fora genocídios, promessas, plenilúnios O festim de Nabucodonosor, a vitória dos pó-de-arroz as dores do pai e os gritos de amor são agora aquarelas pitorescas
O nariz contra a vidraça melhor ainda atrás da persiana ela com seus preciosismos unhas feitas entre desfiladeiros de livros barricadas contra o sublime e o medo
Discreta voyeuse o sofá combinando com o tom das exegeses a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos perífrases sobre paninhos de crochê e em vez de carne poemas no congelador
Anônima, dizia sempre à manicure e apesar das mãos que enrugam as unhas bem curtas e o esmalte claro, por favor
Um dia, o leite derramado na cozinha, saiu garras vermelhas, bateu à porta do vizinho JULIANA KRAPP(1980) poeta carioca, é jornalista e mestre em comunicação social pela UERJ. Participa do grupo CAC (Comunicação, Arte e Cidade).Inédita em livro, tem poemas publicados em revistas como Inimigo Rumor, Germina e Poesia Sempre. A ESTRUTURA ÍNTIMA DAS HORAS Acontece apenas no mar de concreto protendido à beira da estrada e apenas quando a estrada tem algo de fogo ensurdecedor:
um lagarto, osso de candura, rompe a respiração da tarde, penetra em todas as substâncias — as rochosas e as celestes, os líquidos escuros e sua pantomima de espelhos
Enquanto tudo ao seu redor é ênfase (profusão de tecidos lancinantes), o seu avesso é puro vidro ardoroso: quer partir entreabrir-se em sulcos lentos, desdobráveis
Você, ao volante, não percebe mas isso tudo é como nós dois, na Cinelândia, às cinco horas de uma tarde de verão, com uma caixa de alfajores e vontade de café, quando há no ar algo de concha, estiramento, zona cega: a experiência do precipício
PUNÇÃO campanários. isso sim é uma casa não aqui onde os objetos sequer conspiram onde a pele não se reconhece pele e não se engendra cápsula de outra cápsula posse de um único mistério com seu agravo inabalável. uma casa
requer formas como dormideiras que se recolham à carícia quando todas as carícias são íntimas é tão surrado reconhecer nas paredes que a única propriedade possível é a fuga e mais ainda o sono profundo e que sobretudo os mais elaborados sinais de chuva não passam de sentinelas resfolegando seu passo de partida
esta casa não é minha: não se alcança daqui o brejo afetuoso ao fundo de todas as coisas não se vê o fosso translúcido extorquindo das frestas as esquadrias
tampouco há cantigas emudecedoras quando as horas se constrangem ao toque ou ao contato do antebraço com o repuxo invisível do acrílico
nesta casa (assim como em todas as outras) só resiste a ânsia de um veneno afogado em seu desleixo por lãs e puxadores um veneno tão debilitado e circunstante inabitável quanto a certeza de que há ainda no mundo tanto tremor por tão pouca terra
FALÁCIA Você falou que gostava dos nomes que parecem interrompidos Conrad, Murdoc Eu disse sic. Não atenda, por favor. O céu não entende de marte, mas você disse e marte ficou estranha, um olhinho exasperado enciclopédico como o sexo que fizemos depois. De certa forma precoce, ficou revoando no papel pardo da janela até encontrar uma fissura — toda vidro, toda alhures
Você falou plâncton, lítio (rocha sedenta) árduos assassinos de aluguel espreitando nas masmorras e, num murmúrio: “treliças” “orquídeas” arrebite para que se ache um ponto de fuga, um ósculo rude boca vulva narinas — orifícios de luxo espiando de soslaio fluxos de palavras novas e líquidos pela metade. Você falou alcagüete e adormeceu com a mão um pouco trêmula sobre a minha perna.
PRETEXTO o olho da rua é seco, sarcástico do mesmo gênero das abotoaduras e toucadores
de tudo resta sempre o seu mistério virgem a beleza de íris os ares encardidos a córnea tal qual um diadema espavorido sobre nossas cabeças
então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia e travou o zíper sobre a pele POLLYANA QUINTELLA (1992 ) poeta carioca, é historiadora de arte e co-editora da revista Usina. Cursou a PPGArtes da UERJ e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Trabalhou em diversos museus: Dom João VI, Museu de Arte e na Chácara do Céu. Não tem nenhum livro publicado. DEPOIS DE ARTAUD “Detemos as palavras nos seus pequenos odores de trufa sem descer em seus ossários?” Artaud estou numa tarde muito quente em que pessoas tiram a pele de palavras e expõem seus ossos como coisas cruas contorcendo-as em carne viva enquanto me cumprimentam (ao cumprimentar escondem as palavras debaixo da língua e emitem sons estranhos códigos vazios entre bomdias e obrigados) pra que serve essa coisa de língua que falam a dos bonsdias e obrigados não conhecem são eles que são conhecidos pela língua porque do bomdia não sabem do d ou do dia (então como explicar essa substância venenosa que vomitam todos os dias?) e agora assombrados por esta coisa que os conhece não querem línguas escavadas não querem línguas cariadas querem dentistas da língua profissionais que lhes tapem os buracos ambíguos dos seus enunciados de noite pesadelam com línguas que perfuram órgãos e palavras que engasgam para matar sensatos e acordam comprometidos a aprender latim ou qualquer língua sem nativos e nunca mais usar as aspas na esperança de fundar significados imobilizados com seguros de vida pensam estar livres da maldição mas temem que o estupro do corpo das palavras traumatize seus sentidos seus certificados suas consoantes e seus acentos numa grande explosão vulcânica e sanguinária já não se entendem os dentistas estão loucos a lava das palavras lambe chão e sulca coisas e derrete mundo os dentistas estão loucos correm para tratar dos dentes por onde elas passam antes que apodreçam o espírito
2. diante do espelho finalmente a garota era preciso isto: embaçar a retina desconhecer os poros usuais pela investigação da imagem irreconciliável da máquina corpo os encaixes falhos (os deslizes da engrenagem os lapsos venosos) um medo do mecanismo que sou —— o que é isto —— que enguiça no instante imponderável que enferruja e destroça os hábitos e um dia escangalha as funções sem mais nem menos assim pelas rédeas da contingência eu que conheço pouco eu que no espelho fico até estranhar tudo longos e largos minutos pergunto ao relento o que faço com isto
4. encontrava-me baldia terra salgada de fronteiras estéreis buscava em par de olhos os sonhos desabrigados a pele vestida de miudezas frescas nua do profundo e de repente o garoto rondava meus cantos ermos minhas quinas pontudíssimas minha janela dura defeituosa sem que eu pudesse casar as mãos nas suas mechas negras violentas de vida estive então a cuspir tudo a enquadrar o mundo e arredondar as ruas estive a dançar nas bordas do risco pra fecundar meu cultivo de ramagens inexplicáveis e é a entrega uma selva que sacode o horizonte.
5. dois corpos num outono movediço. (arranha na canela um vento dos penhascos sólidos, e marrons das folhas secas desidratadas) preveem juntos uma vida de estações de azuis e amarelos invernos alérgicos primaveras claras verões alquímicos vislumbram os ciclos coerentes dos astros que não veem e resistem às catástrofes que varrem os homens-cidade
Publicado por Rubens Jardim em 22/02/2016 às 01h02
01/02/2016 14h43
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (71ª POSTAGEM)
CLAUDIA SCHROEDER (1973) poeta gaúcha, é formada em publicidade e propaganda pela PUCRS .Publicou um livro aos 14 anos e outro aos 17 na sua cidade natal, Santo Ângelo. Hoje é Diretora de Criação de uma agência de propaganda e mãe de Theodoro. Publicou o livro de poemas Leia-me toda (2012) ÚNICO No fundo, no fundo no fundo do útero da banheira plástica do berço e da casa somos só eu e você. Qualquer terceiro nos sobra. PÁLPEBRAS Quando as pálpebras dobram duplamente é porque estou velha. É porque estou anja, calejada, já eterna. É porque sou passada do tempo mesmo que o cônjuge me ache linda ao vento. Quando o espelho mostra que o meu piscar faz duas dobras eu vejo tudo o que sobra tudo o que fica e o que me conforta. Vejo que o tempo não passou: está passando bem na minha porta. Mas não tenho mais fôlego para trocar de endereço. Ele me acha, mesmo assim: tem um pacto com os correios dos anos. E então eu tento não piscar resoluta para que as pálpebras não se dobrem absolutas. Mas elas o fazem bem no risco entre a sombra e a pele virgem: uma dobra entre a fronteira da maquiagem e da estiagem do tempo sobre a minha pele. Quando há dobras nas pálpebras o meu eu se dobra para o tempo agora. EM BRANCO As minhas canetas sem carga deixaram tudo em branco: os bilhetes as cartas o papel da pipoca perdido no banco. Só podiam ver o escrito tocando os dedos. (O afundar da ponta da caneta sem tinta deixou escrito o que eu tinha a dizer: todos os meus segredos.) E a vida ficou em braile às avessas. EU Eu só queria que você olhasse para a minha alma e visse a calma a cama a ama a dona a chorona a fraca a frágil a mesma.
Por fora sou uma. Por dentro sou tantas aos prantos (Mas só de vez em quando). ADRI ALEIXO(1975) poeta mineira, é formada em letras pela UEMG e escreve poemas desde a juventude. De vez em quando arrisca alguns contos. Possui textos publicados em jornais locais e no espaço virtual Pétalas Poéticas. Publicou os livros de poemas: Des.caminhos(2014) e Pés (2015). CONFISSÃO Você pensa, mas pouco me sabe talvez saiba daquele nosso crepúsculo que o rosa-azul-lilás é a cor que me furta e algumas bobagens que disse pra te distrair mas não sabe que se saio ao sol é porque me chove e me alago de ti nem que meu solo é grave. Sou teu verbo: defectivo. O que não confesso inscrevo em versos. Eu, precipício você, cântaro amor.
CALEFAÇÃO Os pés cansados: cadafalso, candelabro. Pisar minúcias nas costas, o mundo os filhos nos braços.
E você diz que a mulher deve ter pés delicados.
VOO vê, são flores mas parecem palavras voando à procura de pouso
REGOLITO Quando saio, nunca sei aonde vou me perco entre as ideias do caminho. Meus pés querem céu meu corpo, um canto ribeirinho. Se volto, é porque um astro me prende ao chão.
O antúrio sempre me cumprimenta à porta. LOU VILELA( ) poeta potiguar, é administradora especialista em logística. Vive no Recife desde a infância. Possui poemas publicados na agenda da Tribo (2012/2013/2014), e em diversos sítios na internet. Foi incluída no livro Maria Clara – uniVersos Femininos (2010). Publicou o livro de poemas Pulgas de Concreto(2014) IX a moça da saia vermelha nada me dizia estava ali, impassível, em sua beleza ácida queria voar não havia asas apenas poesia – ponte aérea entre vãos e todas aquelas vozes celulares ar rarefeito unindo motivos, vidas, saguão TARDE GRIS não me tomes por triste quando relato o meu, o teu - o nosso cansaço entrecortado animosidade gutural não me tomes por triste só poeira, olhar alérgico descompasso trans.formação não, não me tomes por triste cada veio, cada rasgo provém de um tempo que esfola e abriga REFLEXOS é esse teu olhar invasivo que atordoa...
essa tua tatuagem olfativa que embriaga...
tuas unhas que marcam, tua saliva que cura.
são os teus trejeitos que ins.piro, os teus trajetos que invado entre mentes dentes dedos e falo. enquanto transbordas me alago.
FLUIDEZ Acordei com o sal da palavra. Logo hoje, dia de deslembrar, Invade-me traçado Um corpoema. Acordei com o sal da palavra. Toda a metáfora liquefeita Entre os vãos De minhas coxas, Vontade de escorrer Sem margens. SILVANA GUIMARÃES (1969).poeta mineira, é socióloga e escritora. Organizou e participou de algumas coletâneas, entre elas, Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014) e 1917-2017 — O Século sem Fim (Org. Marco Aqueiva, Patuá, 2017). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Lança seu primeiro livro, de poesia, em 2018. habeas corpus nada como a esperança para curar as dores de uma era oca: beco da morte-sem-saída
nada como o ódio para acelerar o rumo de uma história infeliz de busca & apreensões
[quando a minha fome beija a sua sede meus olhos se encontram com meus olhos
minha alma fareja o que sobrou dos restos mais humanos do corpo ultrajado: o meu]
descarregaram a ira em apenas um que era multidão: ela atira tinta em vez de sangue
aqui não é paris: mas a estrela brilha sobre os ratos de ocasião: dizem que vão pegá-los
que venham os bárbaros: inda que seja tarde que cheguem com mais fúria: com mais medo
banquete a mesa posta cerejas lichias uvas castanhas ameixas pão
o corpo morto abocanhado vida-vísceras cristo-a-cristo
repartido em vinho comungado no pernil
o estupor nos fios de ovos no arroz com passas & nozes
nas asas fincadas ao meu redor mamuskas a trisavó cresceu com a mania de recolher nuncas a bisavó passou a vida colecionando nãos a avó, entre rezas, reunia quimeras a mãe empilhava lamúrias ela habituou-se aos muros a filha junta janelas a neta, pássaros CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA impossível fechar as pernas e matar a borboleta que voa voa voa entre elas
Publicado por Rubens Jardim em 01/02/2016 às 14h43
14/01/2016 13h52
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (70ª POSTAGEM)
SOCORRO LIRA (1974) poeta paraibana, é psicóloga, foi professora e organizou grupos de mulheres, com vistas à ocupação de terras na região do Brejo Paraibano. É pesquisadora, compositora, instrumentista e cantora com vários discos gravados e inúmeras apresentações em shows. Seu primeiro livro de poemas Aquarelar, foi publicado em 2007 e A pena secreta da Asa, segundo livro, veio à luz em 2015. A cor que me deste em rosa me despertou assim despetalada já meio parto dessa madrugada nasci doente de amor, passada da minha hora de nascer e à luz de uma velinha que cobriu o mundo e deu-me a sombra dada ao vagabundo que tem o céu por casa sem o ter e o azul por manto protetor para vestir a pele quando a dor o visitar na hora de viver
O QUE É NOSSO Tornar universal um amor que é meu tomar do universo uma dor que é sua tirar da vida o pão de cada dia palavra por palavra – a poesia
A LÍNGUA Revirando gavetas do tempo retirando poeira dos cantos reencontro você, bem no ponto, que paramos de andar adiante e escrevemos um pequeno conto... Com a vida, a nossa, escrevemos poucas linhas pra contar o quanto foi de prima, de cara, o encanto registrado no canto da alma onde fala, o amor, esperanto
EU Sou das rodas e da feira da tapioca e beiju da lata d’água, peneira nada mais, além de tu e nem aquém Sou loiceira no barro, moldando a vida farinha de mandioca, na oca, é minha comida Entendo de linha torta e de fazer despedida portanto, entendo de asa assim como de voar – voar é voltar pra casa que não se sabe onde estar mas ir, faz parte da ida assim como o faz, ficar
PRISCA AGUSTONI (1975) poeta nascida na Suiça, vive no Brasil desde 2003. É professora de literatura italiana na Universidade Federal de Juiz de Fora, tradutora e autora de literatura infantojuvenil. Já fez parte de grupo teatral e já foi publicada em Portugal, Suiça e Espanha. No Brasil publicou 3 livros de poemas: Inventário de Vozes (2001), Irmãs de Feno( 2002) e Dias emigrantes y otros poemas (2004). FESTA Cada palavra tem seu espaço.
Mesmo o silêncio tem espessura de homem.
Os tambores escutam em surdina a entrega do corpo.
Eis o cenário onde a palavra se renova
pesando eternidade.
1. após dar três voltas na chave, hermética, a porta de entrada fica ali, branca e pura pomba da asa cortada a insinuar o voo — un vol que havia, a vida que havia antes que o chão não fosse tição ardente sob os pés ou tapete de ladrilhos numa igreja sem fiéis
3. não há lugar digo e repito estou cheia de se onde quando e talvez amanhã tente outra vez toca e vê se tem um canto digo um apenas para a palavra
trégua
4. roçar de palavras é acender a estrela-guia do corpo: dedos e unhas na ponta de cada sílaba são facas sutis ao adentrar a língua para expelir os ungüentos oleosos do texto
VIVIANE BARROSO (1979) poeta carioca, escreve desde os 12 anos e não publicou nenhum livro. Ao pedir sua minibio, ela escreveu-me: “não possuo cursos, nem formação acadêmica e nem trabalho em área ligada à literatura ou magistério. Sou uma pessoa sem nenhuma ligação com o sistema. Sou poeta na crueza do termo e porque esse dom me foi dado”. BIOGRAFIA MUDA Minha linguagem é feita de silêncio. Da densidade sólida Que corrói as paredes De todos os templos. Prece muda, quase um fluído Se esvaindo do pensamento. O verbo que fala de mim, sussurra. Está noutro tempo, Noutra rima, Noutro verso. Verbo imperfeito Que não quer virar palavra: Verbo que cala, Verbo que morre, Verbo que mata. Assim, sou um rascunho Entre junho e julho, Quando o frio é um poema fatigado De esperar o inverno puro de agosto.
EU, PALHAÇO Como um louco eu me enfeito: Espelho de palhaço eu sou! Caí de um circo que por aqui passou E fiquei em mim. Deixei de querer ser outro E virei esse mesmo reflexo De quando nasci - O avesso de um bordado Que ninguém vê. Encanto de cores alcalinas Decapitando a normalidade Adquirida. Sou um verão Que nunca quis ser estação, Mas brinca feliz No calendário ensolarado De janeiros. O POETA É UM MÁRTIR Sempre que há uma ponte DESCRENÇA
LÍVIA NATÁLIA (1979) poeta baiana, é doutora em estudos literários e professora de teoria de literatura na Universidade Federal da Bahia. Realiza oficinas de criação literária e publicou 2 livros: Água Negra(2011) premiado pelo Concurso Literário do Banco Capital e Correntezas(2015). O poema Quadrilha foi colocado em outdoor –programa Poesia nas Ruas --e causou polêmica em Salvador. QUADRILHAS Maria não amava João. Maria guardou todos os seus sapatos.
ÁGUA NEGRA Chove muito na cidade. No asfalto betumoso um sangue transparente, ora de um rubro desencarnado, ora encardido de um cinza nebuloso, é vomitado em cólicas por toda a parte. Das paredes duras vaza um mais escuro que, imagino, seja a água mordendo as estruturas. A água é assim: atiçada do céu, infinita no mar, nômade no chão pedregoso, presa no fundo de um poço imenso: a água devora tudo com seus dentes intangíveis.
OSUN JANAÍNA Descobri que, para mim, ser mulher basta. Para puxar véus, levantar saias pintar as unhas de vermelho feroz – mesmo que seja só para dizer: para. Ou para ver a dança des-contínua do seu corpo sobre o meu (o meu oposto) pelo espelho que se emancipa das paredes deste quarto e desta tarde delicada. Mas sempre ser mulher basta: posto que é inteiro e vão, onda que bate na pedra e despedaça apenas para voltar inteira – afogada – num mar de (in)diferenças onde cada gota solitária e única forma um discurso descomposto, cambiante, plural: mesmo quando me atiro sobre esta pedra, que me rechaça.
ODISSEU Seu corpo cresce em puro júbilo de ser. E só. Sobre a cabeça, dança uma juba arisca alimentada pelo vento e pelos sonhos com que embala o mundo. Seus gestos firmes cortam o tempo, inscrevendo, na pele crua da memória, seu rastro. Sua voz, saltando frenética sobre os átimos, devassa as franjas silenciosas que embainham o mundo. Mas quando seu corpo ressona nos lençóis, onde o espero, é meu o seu silêncio e a calma do depois. É no meu corpo que escreves sua narrativa mais primeira e definitiva. Publicado por Rubens Jardim em 14/01/2016 às 13h52
22/12/2015 12h56
AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (69ª POSTAGEM)
ANA ESTAREGUI(1987) poeta paulista, nasceu em Sorocaba, e vive em São Paulo desde 2005. É formada em artes visuais. Participou da Antologia Portapoema e produziu alguns livros independentes: Para desprender dores (2011) e Poemas de sofá - achados ordinários de uma caipira (2012). Publicou Chá de Jasmim (2014), premiado pelo ProAC em 2013, na categoria poesia. GEOLOGIA essas minhas linhas da mão me dizem que nasci sem sorte pro amor a linha do coração: uma trilha entrecortada descontínua atravessada andarilha seguem até o meio da palma, aos buracos aos tropeços, ainda que sem pedra no caminho do médio ao indicador como se o abismo fosse apenas um vão entre os dedos
POEMAS DE KITNET (lifestyle) na quitinete de 45 metros tenho todas as solidões que envolvem poeiras e buracos desocupados roseira sem flor e rosas avulsas ganhadas no dia da mulher
tem o filtro de barro que não enche sozinho os copos os lírios que nascem e morrem cristalizados em fotografias digitais na velocidade do congelador criar crostas brancas e o teto refletir a rua em formas móveis e geométricas toda noite toda noite tem as janelas dos vizinhos classe média tingindo o escuro com as cores luz do plasma e dos cristais líquidos
os garfos a mais as facas a mais as taças de vinho que esperam os talheres que sobram sou só eu, não preciso de mais que um copo um garfo uma faca um prato e um horizonte entrecortado de prédios desbotados.
UMA PALAVRA PODE SALVAR UMA MANHÃ em algum lugar leio a palavra monóxido. e durante a manhã fico pensando nela como se fosse sólida fico amando ela e ela me deixa bem (talvez me ame) gosto de saber que existe essa palavra: monóxido pra mim ela é inteira feita de titânio e pesa tanto que nem cimento e mesmo sendo gasosa assenta as páginas brancas das coisas que nem foram escritas ainda
NOJO da janela do ônibus enxergo debaixo do pontilhão uma família de mendigos dormindo num monte de colchões finos e sujos misturados a papelão e jornal e sobre o chão porco de fuligem tóxica. os cinco dormem com cobertores novos de motivos infantis ultra coloridos. de relance na contraluz do túnel a imagem é tão bonita: um amontoado de pelúcia artificial com motivos meio nelson leirner meio leda catunda sobre as inúmeras variações de cinza de poeira fumaça fuligem pó. por causa dessas e outras é que às vezes sinto nojo da estética. VANESSA MOLNAR (19 ) escritora paulista, transita entre a poesia e a prosa. É historiadora e publicou em 2008 o livro Crônicas de uma tara gentil, prêmio PAC 2007.Participa ativamente das oficinas literárias na região do ABC, especialmente na Escola Livre de Literatura, em Santo André. Colabora em sites e revistas e mantém o blog O Mundo da Maga. MULHER Quando vai aprender que seu sexo é Terra? Encosta o ouvido em seu ventre de Ariadne e escuta a ausência do tempo febril que perfura seu labirinto fechado o eco que rasga o vazio dos teus ossos o silêncio desse Dionísio que te fecunda.
PUTA Sou um martelo, uma lâmina uma corda Instrumento suicida Puta e santa Cadela líquida Agulha de cristal.
Sou uma granada, uma chaga uma morta Instrumento para a descida Puta e santa Sangue e líquen Pedra enterrada no quintal.
Sou uma flor, um poema uma açucena Instrumento para a subida Puta e santa Punhal e carabina e trago dentro da vagina pássaros de sal.
DENTRO Há uma produção noturna de orvalhos inspirada pela impossibilidade da palavra que se encontra costurada na garganta de um cavaleiro marfim.
E essa imagem me cavalga sobe rápida em minhas roxas coxas aniquila minhas vértebras me suja
e me sinto nua feito um feto protegido dentro da barriga do juízo final
e me torno muda como uma criança encontrada viva em uma fotografia de Auschwitz.
BATISMO Com o sêmen do passado eu resgato nossos órgãos divididos entre a Chuva e o Cerrado e me banho de novo na incomunicabilidade de uma tarde esguia. E deixo que me atinja com sua saliva lasciva e que tinja minha vulva com um vermelho marfim E para enxugar os pecados do meu dolorido corpo permito que você seja parido no mais fundo de mim e te batizo de novo e proclamo o fim dos sonhos e te conto que se o mundo não fosse tão líquido nós não seríamos assim. CARLA NOBRE ( 19 ) poeta amapaense, é graduada em letras e especialista em língua portuguesa. Professora da rede estadual, é fundadora da associação literária e teatral Abeporá dsas Palavras, onde desenvolve trabalho voltado para a difusão da literatura produzida na Amazônia. Publicou os livros: Sobre o Adeus e o encelado de Saturno (2007) O amor é urgente e Exageros e delicadezas(2013) Deixo contigo O mistério escuro dos corais
Levo comigo o desejo De que teu barco Permaneça ancorado
Em meu cais
SONETO DA PALAVRA NUA Quero para minha poesia Todas as palavras nojentas As obscuras, as ambíguas Uma linguagem piolhenta
Não me envergonho das minhas escolhas Minha palavra é minha pepita Catarro, mentira, dor, sangue Suvaco, urubus, bruxaria, bauxita
Todas as palavras são bem vindas E com elas as penas, a moela, as tripas E todos os seus sentimentos e suas histórias
Das mais tristes às mais lindas Fico com o verbo parir E toda a sua memória
CANSEI DE SER SEREIA Meu peito é mole, sim Minha boca é carnuda E eu gosto Meu jogo é aberto E eu posso
Minha vontade Bole no mundo
Não sou de esconder as estrias Não tenho medo da celulite
Eu sou Fada Dama da noite Afrodite
Não me venha com papo furado De tia ou madrinha
Minha bunda é caída, Sim, senhor! E não é por isso que eu vou Tapar o sol com a peneira O que eu não tolero É asneira
Eu sou uma mulher inteira Plena de desejo
Não tenho medo de olhar, De arranhar, de gritar... Só não me venha com modelos Que eu não sou de apelar
Eu ando no mundo Com o salto que eu quiser
Eu me jogo do trampolim me atiro sem para quedas fumo tomo gim
Se for preciso mando até a merda
Cansei de ser sereia Viúva negra Bela adormecida Chapeuzinho vermelho Com medo do lobo Eu? Medo? Eu quero é comer o lobo!!!!
Principalmente se ele for mau Lindo E beijar devagar E gostoso...
Eu quero é ser Aranha caranguejeira Quero ser de ostentar Quero ser Mulher Pronta para arrasar.
NÃO TE DEI O MAR Não te dei o mar Porque sou feita de rio Te ofereci minha agua doce Mergulhões Sol quente batendo n’agua Te ofereci meu coração líquido Espalhado em tuas mãos
Não te dei o mar Porque sou feita de rio Te ofereci minhas sementes boiando Minha guerra de peixes e cobras Amazonas que seguem amando
Não te dei o mar Porque sou feita de rio Te ofereci minha boca Te convidei a naufragar No meu vento Na força das minhas marés
Não te dei o mar Mas minha agua barrenta Seguirá sempre molhando teus pés
CLARISSA MACEDO(1988) poeta baiana, é mestre em literatura e diversidade cultural e doutoranda em literatura e cultura pela UFBA. Está presente em diversas coletâneas. É autora de O trem vermelho que partiu das cinzas (2014) e com os originais “Na Pata Do Cavalo Há Sete Abismos” conquistou o prêmio nacional de poesia da Academia de Letras da Bahia(2013) DANIEL Para Gabriel Ferreira Vem descendo da torre como quem desce ao Jardim.
O semblante em asas.
Caminha forte, assombrado de luz, coberto de si.
Na cova, onde pasmado contempla jubas alegres, toca o fogo que aparece: anjo comensal da Graça.
Nessa Fé, toda em redemoinho, já não se sabe quem é anjo, leão, homem ou nada. Todos voam na cova em aurora, todos passarinhos.
FENDA Há tempo o menino ficou lá fora. Espera, espreita a barra da porta, mas já não pode passar.
Todos os longos anos de preparo – escola, dentista, boxe – e a busca pelos jogos de montar, pelo seio roído da mãe que já foi.
Uma vida de busca e solidão, a passagem do peito fechada:
só o túmulo aberto da infância.
EXERCÍCIO Cerrar os olhos para que a última lágrima cresça.
Cerrar os olhos para que o mundo seja memória.
Abrir os olhos para que, afinal, tudo se perca.
AQUELA QUE NÃO QUIS SER... Nunca a mulher eleita a mãe, a caseira. Jamais a primogênita aceita.
Nunca a preferida assumida ou a bela primeira legitimada.
Sempre a repartida, a preterida. Dentre todas inteiras, a fragmentada.
Nela só a astúcia cruel, molemente enraizada.
Só que a vida deu de adoecer nela se putrefar deu de sucumbir, se escrever desabrochar
e desabafando, a jogou bem no meio do mar.
Publicado por Rubens Jardim em 22/12/2015 às 12h56
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